Na véspera do Dia Nacional do Estudante, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia Filipe Moisés Francisco, que está prestes a concluir o seu doutoramento na área de Engenharia Ambiental, no Porto, e que se identifica como um católico praticante

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Comecemos pelas principais dificuldades dos estudantes. O problema do alojamento está à cabeça desta lista?
Sim. Eu diria que neste momento há uma série de dificuldades relativas aos estudantes. Por um lado, a questão do alojamento, sem dúvida, porque é uma despesa que acresce ao fim do mês, e depois tem que, juntamente com o pagamento de propinas e com todas as despesas que os estudos acarretam, tem de suportá-la.
Isso torna-se muito difícil, se não tiver muitas vezes a ajuda dos pais. Mas diria também que outro dos grandes problemas que existem hoje nos estudantes, principalmente aqueles que estão prestes a terminar o seu período estudante, é a falta de algumas perspetivas de futuro e de estabilidade, num país que ainda não gosta de pagar bons salários. Esta questão da habitação é impossível de se dissociar da questão também do pagamento dos bons salários.
Há aqui é uma questão que agrava mais a situação, porque pelo que é dito, além de serem caros, estes alojamentos são escassos, pelo menos em termos de solução para universitários, e isto ainda faz aumentar mais os preços, imagino. Chegou, aliás, a ser notícia, do abandono de estudantes sem capacidade financeira…
Exatamente. Aliás, repare que nós há dois dias tivemos a senhora ministra do trabalho que deu uma entrevista e disse que não era responsabilidade do governo a questão do alojamento, da habitação, e eu acho que é surreal pensarmos que um ministro pode sequer achar que a habitação não é um problema do governo. Mas a propósito disso que estava a dizer o Octávio, eu lembro-me quando estava a sair da faculdade em 2018, estavam ali a surgir, na zona do Polo da Asprela, alguns prédios, residências que foram surgindo, inclusivamente durante este ano, e estão agora recentemente a ser construídos, lá mesmo à beira da Faculdade de Engenharia, novos prédios. Ou seja, aparentemente a oferta está a aumentar, a questão do preço é que não está a ser controlada pelo mercado, por muito que nos digam que o mercado vai autocontrolar os preços, isso não é verdade. Eu acho que há soluções que têm de ser procuradas, o governo tem fortes responsabilidades nisso, é verdade que vieram com o paliativo da descida do IMT e isso efetivamente ajuda a quem tiver um parceiro ou uma parceira, ou até uma ajuda dos pais para comprar a casa, ajuda a ter um diferencial no preço, mas a verdade é que se pensarmos bem, os mais pobres dos pobres continuam a não ter acesso.
No entender do Filipe, o Estado não está a fazer tudo o que está ao seu alcance para tentar minimizar o problema?
Eu diria que não, até porque imaginamos que nesta questão de baixarmos o IMT, aliás notícias saíram logo de seguida, conseguiu-se aumentar a procura e consequentemente os preços a seguir. Voltaram a subir também. Portanto, acaba por ser um paliativo para alguns, para uma franja dos jovens, mas não resolve o problema no seu todo.
No início referias aqui a um outro problema que caracteriza de alguma forma toda a situação estudantil e que tem a ver com o facto de não haver perspetiva no final de um curso. Por vezes a solução é mesmo emigrar?
A propósito disto, gostaria de dizer, e são notícias recentes, cerca de 60% dos jovens entre os 15 e os 24 anos têm vínculos precários e dessa franja, cerca de 95% dos jovens ainda está a viver com os pais. Isto é algo que nos deve preocupar a todos, mas também a questão da habitação aqui entra, obviamente. Eu acho que hoje nós estamos a viver um período que não é só de agora, pois já vem detrás, mas ainda continuamos e acho que estamos a agravar esta perceção: A valorização do trabalho enquanto valor em si. O Sérgio Godinho tem uma canção que diz que é a trabalhar que a gente paga o jantar, mas é também a trabalhar que se fez a faca para o cortar. Ou seja, isto quer-nos dizer que o trabalho tem um valor monetário, é verdade, mas também tem um valor por si só que gera riqueza para todos nós.
Quando nós dizemos que estes grandes ídolos que nos aparecem, Elon Musk e Bezos e outros, que são os nossos ídolos porque investem e supostamente geram riqueza, é bom pensarmos que quem gera riqueza é quem trabalha para eles. As pessoas todas e jovens que vão trabalhar geram riqueza para as empresas, não são só os patrões que têm as grandes ideias de investimento que o fazem.
O Papa diz que para além da questão económica há uma questão de dignificação e de realização humana que está ligada indelevelmente ao trabalho. Não é só efetivamente o facto de a pessoa poder ou não produzir, ou ser julgada por aquilo que produz e consome, é por se realizar. Nestas perspetivas de futuro imediato para os jovens, também falta essa ideia?
Exatamente, e isso tem toda a pertinência o que o Papa Francisco alerta precisamente por isso, porque se o nosso trabalho não for dignificado, se não for valorizado aquilo que nós fazemos, e se nós próprios não formos valorizados desse ponto de vista, continuaremos sempre a viver de forma precária e continuaremos sempre a alimentar este mercado que continuará a ser precário se não houver um forcing, digamos assim, para que os salários sejam aumentados.
Eu devo dizer, por acaso, mesmo a este propósito, que o Papa Francisco tem uma frase numa das suas encíclicas em que diz que nós estamos num período de uma economia que mata, e isto é verdade, isto deve ser seriamente ouvido. Nós estamos numa fase em que os ricos dos mais ricos conseguem convencer a classe média, que é a maioria, de que os pobres dos pobres são os culpados pelo facto da classe média não estar neste momento a conseguir viver com uma qualidade de vida que mereceria, ou com acesso aos serviços que gostaria de ter com qualidade, quando na verdade isto não corresponde à realidade. Esses pobres dos mais pobres continuam a precisar de assistência, e não são de todo os culpados das dificuldades que a classe média enfrenta. E a propósito disso até gostaria de dizer que estes mais ricos, dos ricos que nos convencem disto, são os que geralmente são contra o Estado em tudo e mais alguma coisa, mas usufruem do Estado para fazerem os seus investimentos, e eu devo dizer que a Bárbara Reis do Público escreveu um texto fantástico a outra semana cujo título é: Amazon recebeu 12 milhões ou como os ricos adoram o Estado. E é um texto que eu gostaria de recomendar aos ouvintes a lerem, porque mostra precisamente como o Estado ajuda muito estas pessoas, mas depois elas não gostam muito de redistribuir a riqueza, e isso é um problema para todos nós.
Conversamos num momento de nova crise política em Portugal. Pergunto se esta sucessão de crises é uma preocupação para o universo estudantil?
Eu diria que esta sucessão de crises é uma preocupação para o país no geral, e eu tenho uma opinião muito própria em relação a isto, acho que tudo isto era evitável, nós não precisaríamos ter chegado até aqui. Há notícias de background que dizem que o próprio Presidente da República foi contra a apresentação da moção de confiança.
Nós estamos a falar de facto de uma crise política provocada pelos políticos e não pela conjetura internacional ou por um fator gravíssimo do ponto de vista económico ou militar…
Mas repare que neste caso em particular é impossível dissociarmos as duas coisas, sem falarmos também do nosso caso nacional.
E aí de facto é uma crise que foi provocada pelos próprios políticos?
Sim, sem dúvida, sem dúvida, e devemos dizer que era escusado termos chegado até aqui precisamente, porque não havia razões para isso, por muito criticável que pudesse ter sido o último ano, e é, mas eu diria que esta moção de confiança foi escusada. Sabia-se muito bem o desfecho que ia ter e foi uma falta de responsabilidade do Governo atual termos chegado até aqui.
Ao nível da pastoral universitária, que outros problemas, dificuldades identificas?
Do ponto de vista da pastoral universitária, como eu também já tinha falado com o Henrique, eu tive alguns apontamentos pessoais com a pastoral, nomeadamente na participação na JMJ e também em algumas celebrações do núcleo universitário católico. Eu devo dizer que a pastoral universitária é um bom meio de os jovens poderem integrar-se, até mesmo de se conhecerem entre si e desenvolverem a sua convivência, dentro também dos valores que são cristãos e daqueles que se identificam nesses valores, e isso pode ser fundamental para todos nós. Neste momento, eu diria que a pastoral universitária atravessa os mesmos desafios que a Igreja atravessa em relação aos jovens.
Esta questão da proximidade da Igreja com os jovens tem que ser cultivada, deve ser cultivada. Deveria ter-se aproveitado muito os frutos da JMJ. Não sei se estamos a chegar a esse ponto.
Passados já quase dois anos, achas que vivemos numa certa letargia?
Eu acho que nós ainda não estamos a aproveitar suficientemente bem este período em que temos a graça, porque acho que isto é mesmo a graça de termos o Papa Francisco, neste momento. Porque não estamos a aproveitar devidamente do ponto de vista sinodal, não estamos a aproveitar devidamente do ponto de vista pastoral, toda esta herança, todo este legado que ele vai deixar à Igreja. Acho que a Igreja está a funcionar em várias velocidades, e eu posso-lhe falar mesmo desta questão do sínodo.
Era suposto nós sermos inquiridos nas paróquias e fazer-se um relatório e chegar a Roma. A nossa paróquia não teve nenhum, no meu caso em particular, não teve nenhum inquérito. Eu respondi a um inquérito que estava online, divulgado na Diocese.
Neste segundo ano, supostamente, os trabalhos deveriam ter chegado também às populações, voltaram a não chegar, pelo menos eu não tive essa perceção. O que é que eu quero dizer com isto? Acho que o nosso clero, particularmente em Portugal, e isto estou a falar da realidade que conheço, está muito acomodado, muito fechado nas suas crenças individuais, muita dificuldade em perceber o lado do outro.
Isto vai-nos levar a uma dificuldade relacional com os mais jovens…
Eu diria que tem de haver esta abertura, e o Papa Francisco, que veio trazer a centralidade do Evangelho para a vivência da fé, vem-nos ensinar isto, precisamente. Nós temos de estabelecer esta cultura do encontro com os mais jovens, nas suas dificuldades, nas suas dúvidas, porque a fé sem dúvidas não é uma fé que cresce, e também nos seus desafios que não são os mesmos de há 50 anos, ou há 20, ou há 30.
A JMJ pode ter sido uma oportunidade perdida?
Eu diria que, se continuarmos neste estado de comodismo, poderá ser, infelizmente. É uma pena que tenhamos de dizer isto, mas diria que sim, porque não se está a aproveitar. Quando o Papa Francisco nos diz todos, todos, todos, reparemos que logo de seguida vêm umas vozes a questionar o que é que é o todos, todos, todos. Mas porquê?
Houve muitos “mas”?
Exato, quer dizer, nós quando estamos aqui a querer excluir, e a querer questionar quais são os todos, todos, todos, já estamos a dizer que à partida, há alguns que já estão excluídos, ou que não estão bem, bem, bem dentro. E se isto é assim, eu devo dizer que nós arriscámos, daqui a uns anos, a que a igreja sejam as paredes, e a igreja não são só as paredes dos edifícios, são as pessoas. Eu devo dizer também que o Papa Francisco fez uma coisa importante no outro fim de semana, com o documento que assinou, em que vai fazer, em 2028, uma reunião para tentar perceber se os frutos do sínodo estão a ser aplicados. Acho isto fundamental, mas eu espero que os nossos padres e os nossos bispos façam o seu trabalho, e sobretudo que se pronunciem mais sobre os problemas dos jovens. Eu não ouço os bispos a falarem dos problemas da habitação, dos problemas da precariedade, os nossos padres não estão a falar disso. É importante falar-se. A ação católica que nós tivemos no pós-25 de Abril foi fundamental, perdeu-se, está a perder espaço na Igreja, é uma pena.
Eu pergunto também, até deste ponto de vista, se a dinâmica sinodal deveria ou poderia ter mais impacto na pastoral universitária?
Eu diria que se pode tirar todos os frutos, e mais alguns, dessa dinâmica sinodal. Aliás, há uma série de orientações que o Papa Francisco, em outubro, com o fim da segunda reunião do sínodo, nos deixou, e que a pastoral universitária pode, de facto, ir buscar, para trazer, precisamente, nesta perspetiva de integração e de aproximação da igreja aos jovens. Volto a insistir neste ponto. Acho mesmo fundamental que se fale dos problemas que as pessoas têm hoje, porque uma igreja que não fala dos problemas das pessoas, e que está voltada, única e exclusivamente para as questões da moral, e se esquece que o dia-a-dia das pessoas vai muito além disso, as dificuldades das pessoas vão muito além disso, não pode esperar que os jovens se aproximem. E isto é uma pena imensa, que não se pense de forma estrutural, que se esteja a pensar, única e exclusivamente, nos preceitos que temos.
Precisamos de uma Igreja mais próxima, com mais cuidado aos problemas, para, dessa forma, se aproximar dos estudantes e dos jovens?
Eu diria que sim, sem dúvida alguma. Eu acho que é uma pena quando não se ouve os jovens.