Igreja: «O modo de gerir a Igreja de Francisco tem a ver com o ponto de partida original que é a vida das pessoas» – padre Jorge Teixeira da Cunha

É já na próxima quinta-feira que se assinalam 12 anos da eleição do Papa Francisco. Tem sido um pontificado marcado por encíclicas sociais, pelo esforço de renovação interna da Igreja, particularmente no processo sinodal e a atenção às periferias da sociedade. É convidado de Renascença e da Agência Ecclesia o padre Jorge Teixeira da Cunha, professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica

Foto: RR/Henrique Cunha

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O Papa Francisco tem insistido na necessidade de proximidade aos mais desfavorecidos, com gestos concretos, sobretudo para com refugiados e imigrantes. Na sua opinião, quais são as grandes marcas deste pontificado?

São várias marcas, eu acho. A primeira é, de facto, a descontração do Papa, o Papa que não veste Prada. É o primeiro Papa que não veste Prada e que não usa aqueles adereços típicos do papado. Portanto, trouxe uma imagem nova, uma descontração nova, uma recusa das representações tradicionais do Vaticano e um regresso ou um ingresso no centro da vida, mais do que no centro das ideias, não é? O mundo das ideias, para ele, pouco significa, ele é um homem do terreno, um homem das pessoas, um homem do concreto, um homem da vida. Eu acho que essa é a marca mais importante: ele vem de longe, vem de outro continente, com outra tradição, com outra cultura e introduziu no papado um outro estilo, uma outra vivência, um regresso à base, porque a vida é a própria base de tudo.

Tudo isso se reflete no seu modo de pensar, no seu modo de agir de uma maneira muito explícita. Eu acho que as marcas mais importantes seriam, primeiro, essa descontração, depois a capacidade de pensar de outro modo. Ele não é um homem de pensamento, é um homem da vida, ele próprio nos seus textos diz isso várias vezes, que a vida é maior do que as nossas ideias.

 

Não é um homem do abstrato, digamos assim…

Não é um homem do abstrato, é um homem do concreto, mas nem sequer é nessa distinção entre o abstrato e o concreto, é entre o vital e o representado, não é? É a vida, a vida das pessoas e, se leram o último livro, uma espécie de memórias que ele escreveu, o ‘Spera’, é um livro delicioso porque mostra aí tudo o que ele é. Ele não é um teólogo, ele é um escritor e um escritor é sempre uma pessoa que vem da vida, da vivência das pessoas, da subjetividade, e isso aí está muito patente. Dá para entender.

Ele pergunta: entendem por que razão a minha primeira viagem foi a Lampedusa? Porque eu sou um imigrante, porque a minha gente viveu o drama da imigração, viveu os naufrágios, viveu os sofrimentos, viveu o desenraizamento, viveu tudo isso a minha sensibilidade não é abstrata para com o drama da imigração. Eu vivi isso, a minha gente viveu isso, nós formamo-nos nessa tradição. Esse livro é delicioso por causa disso, porque é um livro de um escritor, ia dizer, não é um livro de um Papa, é um livro de um homem, de um crente, de um crente e de alguém que está próximo da vida e não próximo das ideias.

Isso reflete-se em todos os textos que ele escreveu: não são textos de uma grande teologia, são textos que tentam compreender e sintonizar-se com a vivência do ser humano dos dias de hoje. Por algum motivo escreveu uma encíclica sobre a amizade, ‘Fratelli Tutti’ – era uma coisa sobre que nenhum Papa tinha escrito até hoje, explicitamente. E a amizade o que é senão a vivência e a proximidade das pessoas e que é a tarefa da fé realizar a proximidade de todos os seres humanos. Eu diria que ele é um homem não da ontologia, mas da fenomenologia, aquilo que vivem os sujeitos, aquilo que vivemos nós. Todo o modo de pensar, o modo de gerir a Igreja de Francisco tem a ver com esse ponto de partida original que é a vida das pessoas, a vida dos seres humanos do século XXI e não propriamente as ideias, as representações. as normas até. Ele foi muito livre em relação a tudo isso, o que lhe causou alguns problemas.

 

Vimos várias intervenções do Papa sobre injustiças sociais, sobre a pobreza, sobre as alterações climáticas. Nesta perspetiva também se entende que alguns vejam no Papa uma espécie de um líder político?

As nossas opções pastorais têm consequências políticas sempre, não há dúvida, e é importante que as tenham. E elas têm tanto mais repercussões políticas quanto mais elas são afirmações que vêm da vida real. Quando o Papa fala da pobreza, quando ele fala da marginalidade, quando ele fala das representações económicas que matam, ele está a colocar-se ao lado da vida e da possibilidade da vida. Quando fala das alterações climáticas, ele não é um cientista, nem é um político, mas na medida em que ele toca num problema real do nosso tempo, isso tem repercussões políticas.

 

Mas está a cumprir um papel, um papel de denúncia, não é?

Um papel muito importante e se alguma coisa do Evangelho é, é precisamente uma invenção da vida e das possibilidades concretas da vida em cada tempo. E nisso aí o Papa foi exemplar, ele nem foi um teólogo, não fez os textos mais importantes do ponto de vista dogmático, digo eu. As encíclicas dele não são coisas muito elaboradas como eram as do Paulo VI, são pedaços de vida que ele escreve ou que alguém escreve por ele, mas que vêm, precisamente, da empatia que tem com o nosso tempo.

 

E da atenção à realidade…

Da atenção à realidade e às pessoas.

 

Desde a primeira hora que Francisco se disponibilizou para ser mediador de um processo de paz na Ucrânia e tem repetido apelos à paz entre a Palestina e Israel. Entendem-se algumas críticas à atuação do Papa nestas matérias?

Compreendo, porque ele incomoda as pessoas, mas creio que ele está no sentido certo e a voz dele agora, que está um pouco silenciada por causa da doença, seria importantíssima neste processo que nós estamos a viver. Creio que os cristãos terão muito a dizer sobre este processo que a Europa agora está a fazer, o rearmamento da Europa é uma coisa altamente discutível e eu tenho saudades da palavra do Papa Francisco que nos vem dizer “ó senhores, nós não precisamos de rearmamento militar, precisamos de rearmamento moral”. E é preciso que a Igreja diga isso com toda a clareza. Faz muita falta a palavra do Papa Francisco, que agora está na situação vulnerável da doença.

 

E neste sentido também faz falta, perante o que temos visto, por exemplo, nos Estados Unidos com a nova administração de Donald Trump. Vai ser uma convivência difícil, no futuro?

Sim, eu calculo que, se o Papa durar, vai ser um problema, mas o nosso Papa não é contra o Trump por ser contra o Trump, ele é contra, digamos, a agenda da direita e a agenda da esquerda: ambas são baseadas em descrições da vida que não são autênticas. O ideário da direita que diz “nós temos de voltar às grandes ideias, às grandes normas da vida”. Temos de voltar, sim, em certa medida isso é verdade, mas isso não é o caminho, o caminho do futuro é o caminho da vida, não é? Da vida, isto é, da empatia com as pessoas e da viabilização da nossa vida associada e a construção da paz. Nem a extrema-esquerda com o seu niilismo, nem a extrema-direita com o seu niilismo também chegam lá e é por isso que ele é crítico, tanto da direita como da esquerda. Nós precisamos é de quem seja capaz de inventar o caminho para a vida real e não para a vida artificial ou para a vida representada, para a vida pensada, não, precisamos disso. Nós temos de dizer, os cristãos, com toda a clareza, que pelo caminho do rearmamento, pelo caminho das armas, nós não construímos a paz. Os fundadores da Europa tentaram dizer isso e nós já nos esquecemos disso, eram cristãos todos e católicos: disseram “nós nunca mais queremos a guerra na Europa, nós queremos uma Europa baseada na afirmação dos valores, nós queremos uma Europa baseada no trabalho, na autonomia dos seres humanos, na democracia”. Hoje estamos a deitar isso tudo por água abaixo, vamos rearmar a Europa com 800 mil milhões de euros… por favor, por favor, eu acho que isso não tem nenhum sentido e temos de o dizer, a forma de construir a paz é a defesa social não-violenta, isso é a mensagem do Evangelho.

 

Desde a histórica Cimeira de 2019, dedicada à crise dos abusos sexuais, temos visto serem tomadas medidas em todo o mundo para promover a proteção de menores e o combate a novos casos, esta também é uma das marcas deste pontificado?

Com certeza, já vinha do Papa Bento XVI, que teve uma coragem fora de série em enfrentar esse problema e esse é um problema de fundo. A Igreja não teve outro remédio senão aliar-se com as forças que emergiram no nosso tempo. Esta geração, nós que estamos vivos agora, temos o mérito de ter descoberto a dignidade da vida infantil, foi Jesus que nos ensinou isso, mas nós demoramos 20 séculos a pôr isso no terreno: a acessibilidade para isso, a legislação. Francisco levou isso para a frente com toda a sua força, com toda a energia, com toda a convicção.

Eu não acredito que nós vamos mudar a nossa alma, portanto a tentação, essa tentação ignóbil de muitas pessoas de viverem as suas relações a partir do poder, isso não vai acabar, agora nós temos de criar mecanismos para excluir esses comportamentos e para livrar a Igreja absolutamente disso. A Igreja sempre teve essa sensação, sempre teve essa sensibilidade, mas hoje nós crescemos para ela e a nossa geração tem a vantagem de ter descoberto a dignidade da vida infantil e de ter convictamente enfrentado esse problema, tanto no clero como nas famílias, como nas agremiações, como em todos os clubes desportivos, porque isso era um problema transversal à sociedade.

 

Nós estamos a olhar para os 12 anos de pontificado do Papa Francisco e sem dúvida que uma das grandes frases deste período foi o célebre “todos, todos, todos”, na JMJ de 2023. As viagens a Lisboa e a Fátima são momentos incontornáveis quando se conta a história do pontificado?

Com certeza, o “todos, todos, todos” é uma afirmação da ordem dessa opção básica que estávamos a dizer: todos, todos, todos pela vida do Evangelho, pela vida em Cristo, certamente. Isso não quer dizer que nós não vamos doravante ter moral e que não vamos ter distinção entre o bem e o mal, isso é evidente para todos, agora há um momento em que nós temos de afirmar que o Evangelho é para todos e que todos cabem na Igreja.

O problema da moral do Papa Francisco foi esse: quando um homem se situa desde o ponto de vista da vivência e não propriamente da lei e da norma, como foi o caso do Papa, ele vai dizer que de facto a salvação é para todos, quaisquer que sejam as suas histórias, as suas biografias, as suas índoles pessoais, as suas opções até, portanto o Evangelho é para todos, é para todos.

Isso não quer dizer que nós não vamos ter uma reflexão abstrata sobre o bem e o mal e não vamos ter também a fundação da norma que nos diz que todos, sim, mas certamente daí estão excluídos os abusadores de crianças, estão excluídos os genocidas, estão excluídos comportamentos e de morais que não são aceitáveis.

 

O processo sinodal que se iniciou em 2021 abre já caminhos para o futuro depois de Francisco. É uma dinâmica que não permite mais recuos?

O processo sinodal para mim teve a ver, da parte do Papa, com um melhoramento da nossa relação institucional. Eu creio que isso não traz nada de novo no sentido em que já temos mecanismos de partilha do poder, já temos direito de participação das pessoas, já temos mecanismos democráticos na Igreja quase para tudo e a perspetiva sinodal do Papa teve a ver mais com o reforço espiritual da existência institucional da Igreja e não propriamente com inovação institucional. Nós temos as leis, do que eu tenho visto não mudou nenhuma lei sobre a participação, sobre os conselhos que nós já temos – conselhos paroquiais, conselhos diocesanos, conselhos de padres, conselhos de leigos – temos tudo isso estatuído. O que ele quis foi, de certo modo, mostrar, agilizar.

 

Que as coisas funcionem…

Nós temos leis, temos de fazer com que elas funcionem, mentalizar os pastores e mentalizar os fiéis sobre a necessidade de dar lugar uns aos outros, de partilhar o poder, de fundar as decisões. O processo sinodal, para mim, tem a ver com isso mais propriamente do que com uma inovação institucional ou um progresso – nós temos tudo isso, temos nas normas de funcionamento da Igreja, no Direito Canónico, isso já estava tudo pensado, é preciso um espírito novo, a sinodalidade é um espírito novo mais do que uma norma nova.

 

No momento em que nós falamos o Papa continua internado no Hospital Gemelli, a recuperar de problemas respiratórios. Até porque estamos em ano de Jubileu, com uma agenda muito intensa e esperando todos que o Papa Francisco regresse a casa, que impacto é que esta situação tem no futuro do seu pontificado?

Tenho dúvidas se nós não estaremos no fim do pontificado, o Papa é um senhor com 88 anos, com uma vida louca – a gente pode pôr-se na pele dele, nós que temos duas décadas a menos ou isso, e ver como é que é possível que ele tenha trabalhado intensamente. Ele agora está um pouco vencido pela vulnerabilidade, pela velhice, de qualquer maneira isso veio lembrar-nos que temos de continuar a viver depois do Papa Francisco, nós temos de continuar a viver depois de todas as gerações, a Igreja não acaba.

O Papa Francisco ficará sempre entre nós como um património, como alguém que inovou o estilo, que inovou até a forma da Igreja se aproximar da realidade, que inovou a moral, que descomprimiu a moral – essa é uma das coisas mais importantes que ele fez, ele descomprimiu a moral. Criou-se uma organização mundial de moralistas, anteriormente os moralistas eram os teólogos mais oprimidos que havia na Igreja e agora tornaram-se os mais livres e os mais capazes, os mais organizados que há, ao contrário dos outros, há uma organização mundial, isso foi uma coisa possibilitada pelo espírito novo que o Papa Francisco trouxe. Temos os fundamentos de novas coisas que tem feito, por exemplo na Cúria e no lugar da mulher – isso está em parte por fazer, mas está começado, deu-nos os sinais de que nós precisamos de uma Igreja com dois pulmões, o pulmão masculino e o pulmão feminino. Isso é uma coisa que ainda fica por fazer, de certo modo, mas ele lançou as bases que o futuro pode aproveitar e não tenho dúvidas de que ele relançou a Igreja. O Papa Bento XVI interiorizou a igreja e mostrou-nos a pertinência da vida espiritual, Francisco mostrou-nos a capacidade da Igreja de se tornar significante no mundo da cultura de hoje e criou uma onda de simpatia pelos Papas que eu não me lembro de algo igual.

Se tivermos de viver sem ele, algum dia vai ser necessário, vamos ter de aproveitar isso e portanto a história nunca recua, a história acentua umas vezes uns aspetos, outras vezes outros, mas vamos ter de viver com a memória do Papa Francisco como aquele que teve a capacidade de ser um pastor próximo, que teve a capacidade de ser um pastor que se sintoniza com o Evangelho, que se sintoniza com a vida das pessoas, um pastor que está na vanguarda da afirmação da capacidade da Igreja de mobilizar, de sintonizar com a vida, de crescer na vida, de aproximar os seres humanos. No tempo da globalização, no tempo da inteligência artificial, ele fala-nos da amizade, fala-nos da proximidade do ser humano, da empatia do ser humano com o seu semelhante, isso é uma coisa que fica como nosso património, que não podemos esquecer com o Francisco ou nos dias que virão a seguir ao papado do Francisco.

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