Igreja/Moçambique: «Não há como calar a boca» – padre Kwiriwi Fonseca

Para comentar a preocupante realidade em Moçambique, é convidado esta semana, da Renascença e da Agência ECCLESIA o missionário passionista e investigador sociopolítico

Foto padre Kwiriwi Fonseca

As feridas abertas com o processo eleitoral em Moçambique continuam por cicatrizar e a instabilidade social e política continua a ser motivo de enorme preocupação. As manifestações dos últimos meses em Moçambique, com barricadas, pilhagens e confrontos com a polícia, já terão provocado mais de 300 mortos e 600 pessoas feridas, segundo organizações da sociedade civil. A oposição fala em mais de 4 mil detidos. Sinal da instabilidade, a recente decisão da Procuradoria Moçambicana de abrir um processo contra o candidato presidencial Mondlane por subverter princípios do Estado democrá tico. Enquanto isso, em Cabo Delgado, alegados terroristas islâmicos continuam a criar pânico numa região que ciclicamente é assolada por fenómenos climáticos extremos.

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (ECCLESIA)

Começava por lhe pedir um ponto de situação sobre a realidade social e política do país. A crise que permanece desde as eleições agudizou naturalmente a situação precária e de pobreza da população?

Eu fui a Maputo. A situação em Moçambique pode-se dizer que é relativamente boa, mas ainda está má. Porque eu classifico a situação de estranheza e uma situação depressiva: estranheza, porque os manifestantes tinham uma expectativa que as coisas poderiam melhorar com as manifestações e as reivindicações, porque ao mesmo tempo verificava-se, não sei se seria um teatro, porque havia um clima de diálogos, e aquilo pensava-se que poderia resultar em alguma coisa. E aí, em pouco tempo, o Conselho Constitucional declara oficiais os resultados, e é feita a tomada de posse. Nós vimos também um outro elemento, que é o da expectativa do povo que mesmo ao contrário do que eles esperavam, que era que o candidato deles, como dizem o candidato do povo (Mondlane), mesmo não sendo declarado como vencedor; tinham a expectativa que se poderia montar um governo da unidade nacional. E isso não se verificou.

Por isso, eu considero aqui, talvez, duas situações, estranheza e uma situação depressiva. E verifica-se muitas manifestações, quer de funcionários que não têm acesso ao décimo terceiro mês, quer das pessoas que protestam contra o custo de vida. Há pouco tempo recebi notícia dos ataques em Palma, dos ataques em Meluco, dos ataques aqui em acolá, aqui na região do Cabo Delgado.

Temos, em geral, um problema que ainda não foi resolvido. Problemas antigos, problemas colocados debaixo do tapete, problemas que me levam a dizer que estamos a iniciar aqui em Moçambique, o ano de 2025, com problemas graves.

 

E aumentou a fome, aumentou a pobreza em Moçambique, com os incidentes desde as eleições?

Eu vivi de perto muita fome nas aldeias, sinto vergonha de passar lá. Deveríamos visitar, mas nós não conseguimos resolver todos esses problemas. Aqui na região assolada pelo ciclone não vimos nenhuma ajuda, em muitos lugares ainda não tem chegado a ajuda.

A Cáritas, que tem feito o seu trabalho, não tem cobertura, talvez não tenha muitos fundos. Está fazendo um trabalho muito bonito, está tentando fazer o melhor, mas nós estamos a viver uma crise humanitária.  As palhotas foram destruídas pelo ciclone, muita gente ainda não conseguiu se erguer. Para além disso a chuva demorou a cair e então temos isso, muita fome, questão da guerra, o desespero do povo, a incerteza de como vai ser o país… temos isso.

 

Foto padre Kwiriwi Fonseca

A esse cenário soma-se a instabilidade política. Quando gravámos esta entrevista, o candidato presidencial, Venâncio Mondlane, manifestou-se aberto ao diálogo com o chefe de Estado, com Daniel Chapo, para pôr fim a crise pós-eleitoral, mas disse que ainda não tinha sido contactado. Eu pergunto-lhe se falta vontade política para partir para a negociação. Ainda há pouco referia-se à negociação como uma espécie de teatro. Vimos assistindo a um sinal de hipocrisia, em que realmente nenhuma das partes tem intenção de dialogar com a outra?

Mesmo antes da sua chegada aqui a Moçambique, Venâncio mostrou-se aberto, e quando chegou no aeroporto – eu na altura estava em Maputo – ele disse: se procuravam um Venâncio distante, está aqui em Maputo, eu estou aqui. Mas não houve essa vontade de chamar para dialogar, porque não se pode recorrer somente os candidatos, os líderes dos partidos que estão no Parlamento, eles não são reconhecidos pelo povo. O povo em todo canto, nas aldeias, fala de Venâncio, então hoje tem de ter a coragem de chamar Venâncio para dialogar com ele.

Se ele já se mostrou disponível, então não há que ter medo, nem vergonha. Eu pelo que percebi, o que ele fala é dessa abertura, então não se deve ter vergonha e nem se esconder. Parece-me que há falta de coragem, há falta de vontade, há falta de compreensão de que o povo acreditou na força política de Venâncio, então tem de se chamar. Acredito ser esse o caminho, porque o que se manifesta hoje nas várias cidades são questões sociais. As pessoas exigem o seu décimo terceiro, horas extras. Então, há problemas que acredito podem ser minimizadas conversando com Venâncio Mondlane. Hoje o País precisa de paz.

 

Mas Padre Fonseca, Mondlane também não terá de reconhecer a proclamação dos resultados eleitorais de 9 de outubro para que se possa encetar a tal aproximação de que falava? Porque enquanto esta ferida não sarar, provavelmente não será possível avançar na procura de soluções mais duradouras…

Na linguagem política ele não pode dizer eu aceito, porque seria recuar e dizer que o que estava a defender era tudo uma mentira e eu não ganhei nada. Então ele em nenhum momento, na questão política, ele como o grande líder da oposição hoje, em nenhum lugar pode se pronunciar no sentido do reconhecimento dos resultados. Ele até terminar os 5 anos – se ele disse que não acreditar nos resultados – ele vai continuar a afirmar o mesmo.  Sei que o que é fundamental nesse momento é que seja convidado pelo presidente da República e os dois sentarem-se, conversarem. Dizer “olha de facto nós já estamos no poder, você é da oposição, seu papel é este, este, este nesse período, você faz isto, isto, isto” e também ser ouvido o que propõe, porque desde o dia 9 que chegou e depois da tomada de posse ele não fala mais de golpe, pelo menos eu tenho acompanhado. Eu tenho acompanhado também um trabalho bonito de conversa com os partidos políticos, mas não é suficiente, também tem de se falar com Venâncio, de forma aberta e tudo que se falar comunicar-se para que o povo acompanhe, e aí esse é o caminho para, de facto, ir aos poucos curar as feridas.

 

Nós que estamos a acompanhar deste lado, notamos que em Moçambique a Igreja Católica tem manifestado um enorme empenho na procura destas soluções. A Conferência Episcopal, por exemplo, tem desdobrado os apelos à paz, sensibilizar o respeito pela tolerância, pela dignidade humana, pela vida. Que mais é que se pode exigir à Igreja em Moçambique?

Continuar, continuar a fazer manifestações por meio de conferência de imprensa, continuar a dialogar com o novo governo, continuar a dialogar com o Venâncio Mondlane e com os partidos políticos, este é o papel da Igreja, não deve ficar sossegada, não deve se calar, não deve pensar que já fez tudo, não. A Igreja, enquanto continuar ativa em Moçambique, deve continuar fazendo o apelo pela paz, pela justiça, pelo diálogo, este é o papel em todas as igrejas locais, em todos os lugares. Não se deve pensar que já fizemos o suficiente, não há, enquanto continuar não há como calar a boca, não.

 

O Papa Francisco tem manifestado a sua preocupação com a situação em Moçambique e a experiência da Igreja Católica e a sua capacidade de diálogo é reconhecida em diversos quadrantes. Aliás, numa recente deslocação ao Vaticano, o ministro português dos negócios estrangeiros, Paulo Rangel, assinalou precisamente essa capacidade. Poderá ter mais sucesso uma intervenção externa, como aconteceu em 1992, quando em Roma foi possível assinar-se um acordo geral de paz em Moçambique?

Eu acho que poderia ser um caminho. Somar forças junto com a Igreja aqui em Moçambique, num olhar imparcial, num olhar, digamos, distante, um olhar de fora; acredito que seria um bom caminho. O Papa Francisco, que sabe da situação de facto de Moçambique, desde o momento em que esteve aqui, que era um momento de guerra, ainda com o problema do terrorismo, ele tem recebido diariamente as notícias de Moçambique, e eu acredito que se se organizasse uma comissão que pudesse somar junto com a Conferência Episcopal de Moçambique, para se dar esses passos de diálogo, de conversas com todos os envolvidos, todos os atores políticos, sociais, eu acredito que poderia se encontrar, se encontrar esse processo de cura, porque o povo está muito ferido, o povo ainda não presenciou nada, não presenciou nada dos passos que gostaria de vivenciar. Então, toda mão externa que visa ajudar a resolução dos problemas em Moçambique, eu acredito que se não tiver um olhar muito mais político, só para favorecer um lado, se for um lado imparcial, melhor ainda.

 

Não falamos especificamente da comunidade de Santo Egídio, que sendo uma comunidade católica não é propriamente da Santa Sé, é uma instituição autónoma, que teve um papel importantíssimo nos acordos de paz de 1992 e que sempre acompanhou a atualidade em Moçambique. O facto de poder haver interlocutores com um percurso de seriedade, de isenção e de acompanhamento da realidade moçambicana como a comunidade de Santo Egídio pode ser um fator importante neste momento?

Eu, nos últimos três anos, não sei como é que tem sido a relação entre a Conferência Episcopal e a comunidade de Santo Egídio. Então, a primeira coisa é compreendermos se ao retomar um diálogo, uma missão como essa, como é que seria a aceitação da Conferência Episcopal, tendo em vista que acredito que no contexto que a comunidade de Santo Egídio trabalhou, tinha essa legitimidade, tinha essa tarefa. Não tenho exatamente hoje a noção qual é a compreensão da igreja católica em Moçambique em relação à comunidade de Santo Egídio.

Não sei exatamente. Porque aqui o problema hoje em Moçambique é sério e precisa de uma estratégia muito boa para não se tocar a ferida e deixar-se assim, digamos, ainda sangrar.

 

O padre Fonseca encontra-se em Ocua, em Cabo Delgado, na região fortemente marcada pela insegurança resultante das milícias terroristas e que recentemente voltou a ser fustigada no dia 15 de dezembro por mais um ciclone. Como é que classifica o atual momento aí na região?

A região é bastante pobre porque o ciclone veio, digamos assim, a aumentar um problema antigo. Essa região, aqui na missão teve uma breve passagem dos terroristas e aí o povo fugiu da região e não conseguiu, porque depende da agricultura, não conseguiu cultivar nada. E aí com o ciclone, o pouco que havia foi tudo destruído, então há um problema forte da crise mesmo humanitária, como eu dizia antes, falta de tudo, falta de tudo.

O povo hoje não tem o que comer e as palhotas, muitas delas ainda estão destruídas, muitos ainda não conseguiram erguer com as poucas condições que têm, então aqui a situação ainda não é boa.

 

Para nós essa é uma paróquia especial, porque a paróquia de Santa Cecília de Ocua é a paróquia 552 da arquidiocese de Braga, em resultado de um projeto de cooperação entre a arquidiocese portuguesa e a diocese de Pemba. A sociedade portuguesa, também através deste sinal, pode estar mais sensibilizada para as dificuldades na região de Cabo Delgado, sente-se por aí a solidariedade dos portugueses?

Aqui sentimos bastante, porque a equipe missionária tem feito trabalhos como, não só da evangelização, mas atuação na área social. A equipe tem ajudado bastante na formação de meninas, e já estão a sensibilizar aí os cristãos da arquidiocese de Braga para ajudarem com alguma coisa, então é visível a presença da equipe missionária aqui de Braga, isso tem sido muito bom.

 

Quer a situação política no país, quer a instabilidade em Cabo Delgado, têm por detrás também a componente religiosa. O conflito em Moçambique corre o risco de se transformar também numa guerra religiosa com projetos de poder justificados em nome da fé, como acontece noutros países?

Em alguns momentos nós avaliávamos que poderia chegar a esse nível, mas quando houve, digamos, há alguns meses que parecia que as coisas estavam para melhorar, nós não verificámos isso. O que eu digo como os pesquisadores? Usa-se, digamos, a religião para se esconder aquilo que os terroristas querem.

Eles, nos lugares onde atacam, falam bastante de Ala, falam bastante de estender a religião, mas no fundo eles não vivem nem a religião: Então é possível que haja esse ódio, mas eles não declaram exatamente o que se pretende com essa guerra. Eu percebo que esta é mesmo uma situação político-militar.

 

A religião é um instrumento?

A religião é um instrumento, ou disfarce para que as pessoas pensem que se trata de uma guerra religiosa. Então nós, e muitos outros pesquisadores, acabamos também um pouco perdidos, porque há sinais contraditórios. Há sinais de que de facto são da religião islâmica, mas é um pequeno grupo, radicais, bastante fanático, que vão lá, fazem o trabalho de doutrinação, e também apostam no treinamento militar, e vão atacando. Houve um momento que parecia que estavam enfraquecidos, mas agora já retomaram, então é difícil hoje definir-se que de fato esses têm um aspeto religioso.

 

A nossa pergunta vai também no sentido de perceber se a utilização de símbolos religiosos, também cristãos, no discurso político, não pode criar um fator de tensão suplementar na sociedade moçambicana?

Eu acho que pode sim, por isso é necessário em cada área, em cada paróquia, em cada encontro, falar-se muito desse diálogo inter-religioso. É um elemento que tem se falado, tem de se intensificar, e em nenhuma ocasião deve-se subestimar uma, e elevar-se a outra religião. E ninguém deve levantar a voz tentando criticar uma religião, porque o que se vive nesse período de mais de sete anos é exatamente isso. É possível que tenha havido um pouco de descuido ali, que as pessoas não entenderam que não era importante a religião, mas é a questão da vida humana que está no centro, é a pessoa que professa alguma religião, então talvez não nos lembramos desse aspeto.

Tem de se intensificar o diálogo inter-religioso, a aproximação das pessoas, porque nós vimos nessa mesma região de Ocua, famílias divididas, umas pessoas são muçulmanas, as outras são cristais, outras professam religiões tradicionais africanas, e as pessoas conviviam tranquilamente. Mas de um dia para outro, as coisas mudam, e parece que ninguém quer saber do outro, é um fenómeno a ser ainda estudado.

 

 

Partilhar:
Scroll to Top