O conclave elegeu o cardeal Robert Francis Prevost como o novo Papa, Leão XIV. Para nos ajudar a conhecer o pontífice e o seu pensamento, é convidado da Renascença e da Agência ECCLESIA o padre Jorge Cunha, professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
Antes do Conclave, refletia-se sobre se o novo Papa seria progressista ou conservador. Que imagens conseguiu passar o cardeal Prevost, eleito como Papa, nestes primeiros momentos do seu pontificado? Viu esta escolha como uma surpresa ou não?
Sim, eu estava à espera de uma solução de continuidade, é verdade, e, portanto, o Papa Leão é uma escolha sábia do Conclave, porque é um homem que nos aparece com um perfil muito adequado, é um homem de certo modo desconstruído. Eu acho que ele vai desconstruir todas as imagens de confrontação que havia entre progressistas e conservadores, ele aparece como alguém que está bastante preocupado com essencial, sem gordura, e até sem tradição, sem construção intelectual, portanto ele não aparece como um grande teólogo.
E para fazer pontes na Igreja e fora dela?
Sim, vem do sítio certo, vem da América do Norte, vem dos Estados Unidos, mas não é um americano típico, é um americano que conhece o resto do mundo ao contrário do que costuma ser na América. É um Papa que conhece a América do Sul, que é de uma ordem religiosa que inventou a interioridade no mundo, e, portanto, ele consegue conciliar todos esses extremos. E o facto de ser tipicamente americano, faz sobressair o seu pragmatismo e empirismo. Ou seja, tem uma compreensão da Igreja um pouco sociológica, digamos assim, menos mistério, mas mais eficácia. Essa foi a imagem que ele passou. A imagem de um homem que chegou ali sem complexidade, sem complicar, ele veio para simplificar, é o que me pareceu.
Abordou já uma questão que nós teríamos preparado, que é a questão da continuidade, é aquela pergunta que toda a gente faz, mas pergunto: é uma espécie de uma terceira via, ou acredita realmente que vai mais numa linha mais próxima de Francisco?
Eu não percebi que ele se vá posicionar contra Francisco, de maneira nenhuma. Calculo que tenha outra imagem. O Francisco era o impulso, era um pouco até provocador, digamos assim, para fazer andar as coisas. Eu acredito que vai prever as dificuldades, que com toda a sua capacidade de conhecimento do mundo vai prever e vai evitar os obstáculos, e pareceu-me isso, pareceu-me que tem uma agilidade para isso, até do ponto de vista físico. É ágil, é um pragmático, que descomplica, e, portanto, que anda para a frente, que não tem o background de ter uma grande educação, digamos assim, educação teológica, como nós temos aqui na Europa, ele é um homem que vem do mundo livre. As pessoas que já foram à América têm a noção de que a América é um espaço infinito, um espaço de liberdade, um espaço em que a gente pode desenvolver as suas aptidões, as suas capacidades, um mundo que deixa para trás precisamente o mundo europeu, das guerras santas e tudo isso. A América é uma clareira – a boa América -a América profunda, não esta que agora também é vista de longe.
Para levar a América a desempenhar no mundo o seu papel, eu acho que foi uma ocasião providencial de escolher um (Papa) dos Estados Unidos, que pode chamar a atenção para outros aspetos – aquele país tem uma grande missão no nosso mundo de criar a paz, uma grande missão de orientar e, portanto, eu calculo que ele vai ter todas essas virtualidades. A Igreja tem umas reservas inesgotáveis de criatividade, é a ideia que fica, não é? Quando tudo parece perdido, aparece uma pessoa imprevista, imprevisível, que nos dá a ideia de como podemos continuar a viver, de como a Igreja continua, de que uma Igreja é um sinal à superfície da história e que leva para a frente a tarefa de manter o Evangelho vivo, de dar à nossa realidade o contributo do Cristo e da sua salvação. Portanto, eu creio que ele vai desencadear uma grande empatia, vai descomprimir aquilo que estava comprimido também, vai diluir as confrontações extremas que havia. O nome dele deve ter aparecido, por um lado, aos cardeais de Francisco como um nome evidente…
A pergunta ia nesse sentido, quando falava em terceira via era para sublinhar isso que está a dizer. Houve tensões que se foram criando que agora talvez, na figura deste novo Papa, se possam descomprimir….
Eu calculo que sim, que isso vai ter o efeito benéfico. Ele aparece como alguém ágil e isso é muito bom, isso é muito bom para o nosso futuro e para o futuro da Igreja.
A experiência missionária e a proveniência geográfica têm sido fatores muito sublinhados para a leitura desta escolha dos cardeais. A Igreja Católica deixou mesmo de ser eurocêntrica?
É bem possível que sim, é bem possível. De facto, o nosso cristianismo tem-se deslocado à volta do mundo segundo o movimento do Sol e, portanto, o continente americano é atualmente o lugar do catolicismo e é o lugar da fé. Tanto nos Estados Unidos como na América do Sul. E, portanto, a velha Europa, com as suas complicações, com as suas guerras, também com a sua experiência. A fé na Europa é a fé mais elaborada, mais estruturada, mais pensada, aqui é onde o cristianismo deu melhores efeitos, não tenho dúvida disso. E isso é um problema profundo que os outros continentes ainda vão passar. A Ásia não passou, a África não passou, pelo movimento, por exemplo, da laicidade, pela construção da convivência cívica plural. A América passou, porque foram os europeus que foram para lá.
Mas até nesse sentido, pergunto se pensa que isso pode influenciar as intervenções do Papa Leão XIV. Algo que de alguma forma já se viu nas suas suas mensagens para o interior da Igreja, na primeira Missa com a questão do que ele fala de ateísmo prático e depois também com os apelos à paz a nível global. Estas são intervenções que podem ir nesse sentido, de perceber que os problemas do coração da Igreja são de todos e também os europeus estão no coração do Papa?
Creio que sim, não há dúvida que não pode deixar de ser assim. Ele é um homem de formação europeia, um homem descendente de europeus emigrados para a América, mais uma vez, um homem que conhece bem o seu próprio país e que conhece bem a América do Sul e que trabalhou na Europa, formou-se na Europa. Eu creio que ele tem todas as condições para dar esse seu colorido, o seu colorido. Eu calculo que ele não vai ser um impulsivo como foi o Papa Francisco, que partia a direito, que era imprevisível, que era apocalítico. Vai ser muito mais pragmático, vai ser um homem da observação da realidade, vai ser um homem da escolha certa, um homem da escolha menos polémica, vai ser um homem da desmontagem dos problemas complicados que nós temos, tanto em moral como na vida internacional. Eu espero que ele leve a América a dar o seu contributo para a pacificação do mundo e, portanto, convença o presidente e os outros titulares de que eles têm um papel e que não podem alhear-se, já que assumiram responsabilidades; não podem alhear-se do resto do mundo e, portanto, têm de entrar no jogo democrático internacional e desempenhar a sua missão de ser focos de estabilização do mundo e não propriamente de focos de incêndio do mundo.
Queria confrontá-lo com o facto de o cardeal Prevost ter participado no processo sinodal e ter feito parte de dois grupos de trabalho sobre os temas que continuam em debate até este verão. Esta é uma dinâmica que não admite recuos?
Sim, eu acho que o processo sinodal é o processo de participação, de pôr a Igreja a participar, de pôr todos a participar, de ouvir a opinião de todos e de tomar as decisões em correspondência com isso. É um meio de dar um espírito àquilo que já está legislado, dar um espírito novo e de melhorar as formas de participação na Igreja e na sociedade.
Eu creio que a sinodalidade é uma forma de dar corpo e de dar espírito, de dar interioridade à democracia e à participação. É assim que eu a entendo e, portanto, entendo-a não como uma negação da democracia, mas como um aprofundamento da democracia. A democracia é o nome que nós damos à forma justa de ordenar a nossa vida comum. E, portanto, a sinodalidade não se opõe à democracia, mas aprofunda a democracia, desenvolve a democracia, melhora a democracia. Não tenho dúvidas de que isso pode vir a ser uma forma de dar voz a todos os contributos, de pôr no terreno as decisões que nós precisamos para que a Igreja seja relevante e para que a Igreja seja eficaz na sua comunicação do Evangelho.
Olhando para as ameaças a essa democracia a nível geopolítico, as primeiras reações foram no sentido de insistir muito na nacionalidade do Papa, norte-americano que possa abrir perspetivas de diálogo com novas potências, num momento que é de várias crises. Mas do que sabemos, do cardeal Prevost, agora Leão XIV, é que teve posições muito contrastantes em relação, por exemplo, à administração Trump sobre temas como pobres, migrações ou racismo. Vai ser uma relação difícil?
Quer dizer, eu não imagino que seja uma relação difícil. Eu calculo que o Papa vai ser capaz de lembrar aos Estados Unidos e à sua administração que tem reservas de institucionalização muito sólidas. Eu não tenho medo da democracia na América, para dizer a verdade. Posso vir a ser contraditado, mas é um país com instituições muito fortes e eu espero muito que a acentuação que tem vindo a ser desenvolvida seja apenas propedêutica e corretiva em relação a algumas deficiências da nossa vida comum e alguns problemas que o nosso mundo apresenta. Eu calculo que o Papa vai ser um equilíbrio, vai equilibrar e vai lembrar à América que ela foi o laboratório da democracia para lá da intolerância europeia, foi o primeiro sítio onde se pensou a tolerância, em que se pensou a convivência multirracial, multiétnica, multirreligiosa, não no sentido de diluir as nossas convicções, mas de pôr as nossas convicções a funcionar em paralelo uns com os outros, que é isso, o princípio da laicidade. Nós podemos conviver, sendo de etnias diferentes, sendo de religiões diferentes, podemos conviver na mesma instituição política. É isso que construiu a América e que foi originária na Europa, foi experimentado na Europa dramaticamente no século XVII.
O Papa americano terá mais força perante uma administração Trump?
O Papa americano vai ter força para isso, vai ter força para comunicar aos seus concidadãos e ao presidente da América. E, na minha opinião, o presidente da América tem um estilo. É um estilo, mas ele no fundo está em sintonia com a América profunda e a imagem que nós temos na Europa do presidente é um pouco distorcida, é a ideia que me dá. Ele não põe em causa as instituições, ele não põe em causa o funcionamento da democracia, a substituição do poder, o respeito pelos direitos dos cidadãos, nunca pôs isso em causa. Ele põe em causa algumas questões económicas, algumas distorções que nós temos, que são distorções, por exemplo, a respeito das diversidades, a respeito das questões fraturantes que nós temos hoje, que são pensadas com menos interioridade, com menos ética. Eu calculo que ele pode ter esse efeito benéfico e pode levar a América a desempenhar o seu papel de líder do mundo, de administração ao serviço da paz, de inovação da economia, de inovação da tecnologia, de construção de uma tecnologia que respeite e aproxime os seres humanos e não propriamente aquilo que tem sido até agora, portanto, de uma artificialização que põe em causa a nossa interioridade. O Papa é agostinho, Santo Agostinho é o inventor da interioridade, eu creio que ele vai dar esse contributo ao nosso mundo da tecnologia.
Leão XIII é ainda hoje uma referência do pensamento social católico com a sua ‘Rerum Novarum’. Num tempo de tantas novidades na esfera do trabalho e com o advento da inteligência artificial, é mesmo preciso um Leão XIV?
É muito preciso um Leão XIV, que é sucessor de vários, não só do Leão XIII, para mim. Eu espero que ele seja sucessor do Leão Magno, aquele que enfrentou Átila, que seja até sucessor do Leão X, que foi o Papa do Renascimento e que seja também o sucessor do Leão XIII, que é o homem da Igreja que se volta finalmente para observar aquilo que se passa à sua volta.
Nós hoje temos necessidade de uma nova ‘Rerum Novarum’ e de uma nova encíclica sobre o trabalho humano. As inovações que estão a acontecer no trabalho humano são, por um lado, uma fonte de grande esperança para o nosso mundo. O robô vai-nos livrar de muita escravatura do trabalho produtivo, mas o robô pode-nos também parasitar a alma. O robô, quando aplicado à comunicação, quando aplicado à tomada de decisões, vai exigir de nós uma grande capacitação para sermos os inventores do robô, os planeadores do robô, os controladores do robô e, portanto, vamos precisar de uma grande educação moral, de uma grande educação espiritual para não nos perdermos nisso.
Eu espero muito que o Papa, que escolheu o nome de Leão, siga por diante e nos faça, por exemplo, um texto orientador acerca do trabalho humano, do trabalho confrontado com a inteligência artificial, da preservação da liberdade no tempo da comunicação avançada que nos substitui e nos facilita a vida, mas, por outro lado, que pode tomar conta de nós se nós nos estivermos advertidos.
Portanto, nós precisamos de uma grande educação moral, precisamos de um crescimento em espiritualidade, precisamos de pensar de novo a questão da justiça, porque o robô vai substituir-nos na produção, nós vamos ter no futuro o problema da distribuição de riqueza no contexto novo. Temos um grande mundo à nossa frente e o Papa Leão vai ser capaz disso, não tenho dúvida disso, e que vai ter a força de um leão.
Ah, eu também gostava que ele fosse substituto de outro leão, que é o leão das ‘Crónicas de Nárnia’, que é um livrinho que diz respeito a toda a gente, que muita gente conhece, que é um livro de ficção, mas é uma ficção sobre a guerra e sobre as consequências da guerra, e que nos faz pensar que ao inverno da guerra que nós estamos a viver há de suceder a primavera. Há uma personagem leonina que é assimilada ao Cristo, que é o Cristo pacificador do mundo, o Cristo que nos anuncia continuamente a primavera. Espero que seja também sucessor do leão das ‘Crónicas de Nárnia’.
O novo Papa é um religioso que tem como referência espiritual Santo Agostinho, bispo do século IV e V, que inspirou muito o pensamento teológico da Igreja ao longo do século. Nesse sentido podemos esperar um perfil um bocadinho mais clássico, digamos assim, de Leão XIV nas suas intervenções?
Sim, eu espero que ele possa pôr no terreno essas velhas intuições do Santo Agostinho. O Santo Agostinho, como já dissemos, é o inventor da interioridade e da teologia a partir da nossa subjetividade, da assimilação interior do mistério de Cristo. Nesse sentido o Santo Agostinho escreveu as obras mais importantes do cristianismo, as “Confissões”, a “Cidade de Deus”, que são livros orientadores para todos os tempos.
Ele referiu-se logo ao Santo Agostinho, dizendo “eu venho de Santo Agostinho”. E se ele puder dar esse contributo ao nosso mundo será um contributo muitíssimo importante para que a Igreja se situe no seu lugar no coração, que já é uma dimensão que vem de trás. Nós somos do coração, nós não somos da força, nem da política da força, ele disse isso, nós somos do coração, somos da força da razão, somos da expansão das energias infinitas da nossa alma habitada por Cristo. E, portanto, eu espero muito dele nesse capítulo que possa inaugurar uma era com o melhor que tem o pensamento agostiniano. Uma era agostiniana no seu melhor.