No dia em que se celebra, na Praça de São Pedro, a Missa pelo início do ministério do novo papa, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o assistente nacional da Pastoral Operária e do Apostolado de Adolescentes e Crianças

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Padre Pedro, nós temos um novo Papa, Leão XIV, que na escolha do seu nome revela uma relação direta com Leão XIII e a ‘Rerum Novarum’. Como é que recebeu esta escolha?
Primeiro, penso que nos surpreendeu a todos a escolha do Papa, esta figura talvez pouco esperada, mas mais ainda pelo nome que ele adota, Leão XIV, que nos fez pensar imediatamente em Leão XIII, na encíclica ‘Rerum Novarum’ e na doutrina social da Igreja. Portanto, a nossa expectativa na Pastoral Operária é que será um Papa da doutrina social da Igreja, um Papa dos trabalhadores, dos operários, um Papa que vai ao encontro da vida das pessoas, promovendo aquilo que ele já mencionou nas suas mensagens: a justiça, a dignidade.
Precisamente, várias das primeiras intervenções do pontificado têm lembrado novos desafios relacionados com o mundo do trabalho e também a inteligência artificial. A sociedade, e a Igreja em particular, estão devidamente despertas para esta realidade?
Ultimamente sim. Nós temos vindo a refletir sobre esta realidade, aliás, a Igreja não quer perder o comboio do mundo, e o Papa, nos seus primeiros encontros com a comunicação social, manifestou essa preocupação. Nós hoje vivemos este tsunami de informação, às vezes com a falta da verdade, do conteúdo, do ser, e vemos que o Papa está preocupado com isso, não apenas com a forma, mas com o conteúdo, a interioridade. Bem, talvez seja este também um dos expoentes da teologia agostiniana – e o Papa é agostiniano – que é a verdade, que é o ser, que é a identidade ou a interioridade. A inteligência artificial e todos estes desafios podem-nos fazer cair neste perigo de perdermos a nossa identidade, e esta crise de identidade, talvez seja aquilo que o mundo vive.
O Papa parece-me que vai neste sentido de procurarmos uma identidade, quem somos, a verdade. Nós, na pastoral operária, olhando para o mundo, vemos grandes realidades que nos preocupam, como as migrações, e o Papa é sensível a esta questão. Outra situação também tem a ver com a habitação, a procura de uma habitação digna, estável, e possivelmente também teremos um Papa que é capaz de nos ajudar e de ajudar o mundo a pensar sobre isto.
Nesse sentido, até projetando os próximos passos de Leão XIV, espera uma nova encíclica sobre o trabalho? Desse ponto de vista, entende que é necessário regulamentar, doutrinar sobre a inteligência artificial e a relação com o mundo do trabalho?
Sim. Após 90 anos da ‘Rerum Novarum’, nós tivemos uma encíclica do Papa João Paulo II, ‘Laborem Exercens’, e desde lá existiram muitas mudanças. O magistério da Igreja ainda não está muito cimentado sobre a inteligência artificial e sobre os novos desafios, mas parece-me que este Papa já tem algo a pensar sobre isso. Portanto, nada será de surpreender que nos apareçam documentos do magistério sobre esta temática.
A formação também pode ajudar, não é?
Sim, exatamente. Nós este ano também estamos a viver um período na pastoral operária de um grande desafio, os 100 anos da JOC (Juventude Operária Católica), que surgiu em 1925 na Bélgica, e a JOC está muito direcionada para os jovens. O Papa também falou aos jovens, no domingo, na sua mensagem, na Basílica de São Pedro, dizendo que não tenham medo. Nós vemos que os jovens sofrem de uma grande incerteza relativamente ao futuro, sobretudo a nível do trabalho, a nível habitacional, é cada vez mais difícil a emancipação, e a mensagem do Papa é esta: não tenham medo. Ou seja, vamos encontrar caminhos de segurança, de estabilidade, de dignidade. Portanto, é um Papa que promete muito.
Acredita que as novas gerações, a quem o Papa se dirigiu nesse primeiro encontro dominical na Praça de São Pedro, se vão deixar cativar pela mensagem e também pela figura de Leão XIV?
Sim, sim, eu penso que sim. Em primeiro lugar pelo seu estilo que, na continuidade do Papa Francisco, é um estilo humilde e simples, que é isto também que os jovens procuram. E depois também numa mensagem que lhes diga algo, que fale à vida concreta dos jovens, que lhes traga esta esperança de que não vamos baixar os braços. Estou agora a pensar numa imagem do Papa Francisco – um Papa cheio de imagens, de metáforas – que dizia que nós, às vezes, vivemos num espírito de parque de estacionamento, parados, estagnados. E este Papa já nos meteu a mexer, e pela sua forma de ser, pelo seu estilo, a sua mensagem, faz-nos mexer, faz-nos ir mais à frente.
Voltando ao tema que marcou o início da conversa, até tendo em consideração o discurso que o Papa fez aos cardeais, pouco depois de ser eleito, em que justifica a escolha do nome, do nome Leão XIV: na sua perspetiva, que grandes desafios, riscos e problemas levantam as novas tecnologias da sociedade? Estes temas, até com a referência à inteligência artificial, também vão marcar o pontificado?
A inteligência artificial levanta questões, por um lado, sobre o risco da procura da verdade e da confidencialidade, e por outro lado, também, a necessidade do trabalho humano. Nós sabemos que a inteligência artificial não substitui a inteligência humana, aliás, a inteligência artificial deve ser vista como um meio, como uma forma de auxílio, de ajuda, tendo em conta a necessidade da nossa humanidade. Por outro lado, também, e logo após as primeiras palavras do Papa, pode fazer-nos ver que a inteligência artificial, que é utilizada para um fim positivo, para ajudar a desenvolver a humanidade, também pode ser usada com um fim negativo.
Basta pensarmos na guerra, nos ataques cibernéticos, nos ataques que podem existir, devido a estes novos meios que são invisíveis e que são perigosos. Portanto, acho que devem existir balizas, critérios, para sabermos como utilizar estes novos meios.
E pode também aumentar as desigualdades, as injustiças, não é?
Sim, sim, porque a inteligência artificial não está ao serviço de todos. A doutrina social da Igreja prevê o bem comum, a igual distribuição de bens. E a inteligência artificial ainda não está ao serviço de todos. Portanto, há sempre muito caminho que nós temos de pensar e começar a balizar com critérios.
Voltando àquela intervenção do Papa em que fala da necessidade de promover a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho. Ele usa a expressão “outra revolução industrial”, algo que me parece fundamental. Já havia consciência do momento histórico que estamos a viver e do quanto isto vai ser olhado no futuro como um tempo de viragem?
Sim, exatamente, Leão XIII foi um Papa que conseguiu ler a realidade do seu tempo e escreveu no seu tempo, no contexto de uma revolução industrial. Parece-me que o Papa Leão XIV também está a fazer o mesmo, a ler o seu tempo, esta revolução que é industrial, é digital, é tecnológica, e a Igreja como profética que é tem de saber interpretar os sinais do tempo, mas à luz da mensagem de Deus, à luz da revelação. E neste caso também até à luz da própria patrística e do ensinamento dos padres da Igreja, como Santo Agostinho, que procurava no seu tempo também a verdade; aquela verdade que às vezes está camuflada, é apresentada com outros sabores, e o Papa talvez também nos possa ajudar a encontrar a verdade neste mundo camuflado, neste mundo difícil de ser interpretado.
Até diria que o Papa será um grande hermeneuta da verdade e do mundo, à luz da palavra de Deus.
Já há pouco falamos aqui dos jovens, falou também aqui da JOC. Esta atenção aos jovens é um desafio ainda mais particular para a Igreja Católica em Portugal, depois da Jornada Mundial da Juventude de 2023?
Sim, sempre. Eu até pessoalmente quando ouço que os jovens são o futuro, prefiro dizer que eles são o presente, porque o jovem tem uma forma diferente de pensar, diferente do adulto, próprio do seu contexto, dos sonhos, das esperanças que eles próprios vivem, e a Igreja deve também servir-se desta forma de pensar. Faz-nos falta um pouco este espírito juvenil, reivindicativo, até às vezes irreverente, na forma de ser Igreja. Portanto, esperemos que seja um Papa que consiga falar aos jovens, com a linguagem própria dos jovens, nesta procura de uma dignidade, porque muitas vezes a Igreja fala aos jovens de questões teológicas ou de doutrina, mas os jovens também estão interessados em perspetivas de vida, de trabalho, daquilo que realmente eles podem adotar como segurança de vida, como aquilo que é sólido, firme, e acho que o Papa poderá fazê-lo.
Temos feito muitas referências ao Papa Leão XIII, mas realmente, tirando os momentos de aniversário de ‘Rerum Novarum’, provavelmente nunca se terá falado tanto do pontificado dele como agora, nestes últimos dias. Houve um momento histórico em que existiu um afastamento de classes trabalhadoras, que talvez se sentissem pouco representadas no pensamento da Igreja Católica, mas aconteceu esse movimento de ir ao encontro deles, por parte do Papa Leão XIII. Estávamos a falar, por exemplo, também destas questões dos jovens, de pessoas que se sentem, talvez, pouco representadas no discurso ou na capacidade de mobilização da Igreja Católica, mas que foram redescobrindo nos últimos tempos, até sobretudo pelos gestos e pela ação do Papa Francisco, esta capacidade de se sentirem representados de novo na ação e no discurso da Igreja Católica. Isto é um desafio específico para Leão XIV? Esta capacidade da relevância do discurso e de abrir portas à representatividade daqueles que estão à margem da sociedade e que muitas vezes estão sem voz?
Sim, exato. Após o Papa Leão XIII, aparece-nos, o padre Cardijn na Bélgica com a JOC, que vai ao encontro dos jovens, mas sobretudo daqueles jovens com maiores dificuldades, mais excluídos, que passavam por situações de precariedade no trabalho, até ao ponto de o padre Cardijn dizer que cada jovem trabalhador vale mais do que todo o ouro do mundo. O Papa Francisco também, nesta continuidade, vai à procura daqueles que estão à margem. E parece-me que Leão XIV fará o mesmo. Nós sabemos que nem todos os jovens seguem um curso superior, nem todos os jovens se destacam num trabalho ou numa condição digna de vida, e, portanto, também há que procurar aqueles outros jovens. Aliás, à luz do Evangelho, são esses os prioritários da missão. E esperemos que sim, que o Papa Leão XIV tenha uma grande abertura e desafie a Igreja a ir ao encontro destes jovens, e que eles também sejam a Igreja e venham connosco caminhar, porque precisamos de todos.
Pessoalmente, o que mais o tem marcado no novo Papa, desde que Leão XIV se deu a conhecer ao mundo?
Tem-me marcado a sua mensagem assertiva, coerente, também o seu estilo simples, humilde. Parece-me um homem com interioridade, e penso sempre em Santo Agostinho, e na interioridade da vida. Parece-me um homem que tem conteúdo, que tem Ser, e, portanto, esperamos muito dele, porque tem muito para dar. É um homem cheio de Deus, e nós vemos isso.