Igreja/Europa: «Queremos a paz, mas uma paz que possa ser aceite pela Ucrânia» – D. Nuno Brás

Os delegados das Conferências Episcopais da União Europeia reuniram-se na última semana para refletir sobre a renovação da Unidade Interna da Europa e no seu empenho em ser um ator global para a paz. O bispo do Funchal e vice-presidente da COMECE é o convidado da entrevista semanal conjunta da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto: COMECE

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Três anos depois da guerra em larga escala na Ucrânia, a COMECE pediu solidariedade transatlântica e mundial para acabar com o conflito através de negociações. O que é que tem faltado para chegar à paz global, à paz justa e duradoura?

Creio que tem faltado precisamente isso, querer chegar à paz e à paz justa e duradoura. Ou seja, nós não podemos querer a paz a todo

o custo, trata-se de facto de uma questão de justiça para com a Ucrânia, obviamente, mas por outro lado precisamos de fazer caminho para a paz. Muitas vezes a Europa também não tem feito este caminho, ou pelo menos não tem avançado neste caminho, instalando-se um pouco naquilo que é o dinamismo da guerra simplesmente. Claro que não podemos deixar de apoiar a Ucrânia, mas ao mesmo tempo também não podemos deixar de perceber que a paz, e a paz justa, é o nosso objetivo e para isso precisamos de dar passos concretos.

 

Estávamos a falar da Europa, mas é inegável que desde que tomou posse a nova administração norte-americana, temos visto também alguns sinais contraditórios em relação a este conflito. Há uma tendência a valorizar sobretudo a parte económica, entre as diversas premissas que podem ser consideradas neste processo. Isso pode ser visto até como algo imoral, num contexto de guerra?

Bom, vamos lá ver, eu penso que sim, pode ser, obviamente. O dinamismo económico e as contrapartidas económicas são realidade e, portanto, são um dos pontos da equação, mas não podem ser a equação. Queremos a paz, mas uma paz que possa ser aceite pela Ucrânia e que possa minimamente fazer justiça ao povo ucraniano que, ao longo destes anos, tem perdido tantos dos seus jovens, tantos dos seus homens e tantas das suas realidades já conquistadas com tanto trabalho.

 

E já que falamos da questão económica, não é uma paz a qualquer preço, não é?

Exatamente, é isso. Creio que é muito importante que isso se compreenda, que isso se acentue. Claramente esta nova administração norte-americana tem uma perspetiva essencialmente económica, essencialmente de negócio, essencialmente de oportunidade para fazer negócio, mas essa não pode ser a única perspetiva, como é óbvio. É natural que possa ser um dos dados da equação. Agora, creio que a grande questão é sempre aquela de uma Europa que é tão complicada nos seus dinamismos – e se calhar não pode deixar de ser de outra forma, pelo menos enquanto tivermos esta configuração da União Europeia – que acaba por ser lenta e por não reagir tempestivamente àquilo que devia. Esta demora europeia sabe a pouco, é pena não podermos reagir de outra forma.

 

Olhando o contexto da COMECE, que tem episcopados do leste da Europa, dos países nórdicos, do Báltico…

A partir desta reunião vamos ter também um observador permanente da Ucrânia, tendo em vista que a Ucrânia fez o pedido de adesão à União Europeia. Estando o processo aberto já, também nós achamos por bem ter um observador permanente, um delegado da Igreja na Ucrânia que possa seguir os trabalhos da COMECE.

 

E que possa facilitar o diálogo, não é?

E que pode facilitar o diálogo, obviamente.

 

Como é que os membros do episcopado destes países que estão mais próximos do conflito, olham para a situação? Percebem, da parte deles, se há uma noção de solidariedade nos países ocidentais?

Sim, isso pareceu-me muito claro logo desde o início: quem acolheu os refugiados ucranianos foi essencialmente a Igreja, institutos ligados à Igreja, recordo de uma forma muito particular a Polónia e as várias dezenas de milhares de refugiados que a Igreja na Polónia acolheu. A Polónia e os países limítrofes, isso foi muito claro desde o princípio e neste momento continua a ser claro: um apoio à realidade ucraniana, não apenas em termos políticos, mas sobretudo, por parte da Igreja, em termos de acolhimento, de disponibilidade para aquilo que as pessoas concretas na Ucrânia necessitam.

 

O aumento do investimento em armamento é uma resposta aceitável neste cenário? Por exemplo, a Europa prepara um investimento da ordem dos 800 mil milhões de euros em defesa. Está a criar-se um clima de rastilho iminente?

Por um lado, isso é uma hipótese, enfim, porque quanto mais armas existem, mais fácil é alguma disparar, claro que sim; por outro lado, temos de ser também realistas e se os Estados Unidos não garantem, em relação à Europa, aquilo que era habitual e, portanto, não garantem a defesa da Europa, a Europa tem de arranjar formas de se defender e isso parece-me também claro. Agora, de onde vem o dinheiro?

 

É desviado, não é? De outros sítios, provavelmente…

Pois, essa é claramente a outra questão, mas creio que também não podemos deixar de ser realistas e, não podemos ser ingénuos e dizer que sem a existência de uma possibilidade da resistência, de resistir a um eventual invasor, a Europa poderá viver descansada e tranquila com toda a sua prosperidade. Isso obviamente, neste momento, não é realista.

 

 

Ainda no quadro dos contactos que tem com os responsáveis de outros episcopados, eu pergunto se este novo quadro de relações com os Estados Unidos e com a administração Trump tem efetivamente gerado estas preocupações?

Sim, claramente a nova administração americana é um dado que está neste momento sempre presente nas nossas reflexões, nos nossos debates. A administração Trump foi eleita pelos americanos e, portanto, é um dado com o qual nós temos de contar, não podemos simplesmente demonizar. Agora é um dado com o qual nós contamos e, pronto, é o que é. Acabou. É a expressão também da vontade do povo americano, com algumas coisas das quais estamos mais próximos, como muitas outras das quais discordamos.

 

E fazer caminho aprendendo também com esta nova administração e como se conviver com ela.

Exatamente, como conviver com ela e, eventualmente, até como tentar convencê-la de que não está certa e que não está correta e, portanto, ajudar também esta administração, eventualmente, a fazer caminho.

 

A diplomacia da Santa Sé tem sido muito ativa na tentativa de criar pontos de diálogo entre as partes em conflito, embora nem sempre bem entendida pela opinião pública. Espera que este esforço seja seguido por outros protagonistas?

Bom, esperamos sempre que sim. A diplomacia da Santa Sé tem estado, sobretudo, muito ativa na troca de prisioneiros e creio que aí tem conseguido bastante sucesso. Existiram várias trocas de prisioneiros que foram mediadas pela diplomacia da Santa Sé ou, pelo menos, inspirada pela diplomacia da Santa Sé.

Que bom seria que as várias diplomacias europeias se unissem, não apenas no sentido das trocas de prisioneiros, mas, sobretudo, na possibilidade de caminhar para uma paz efetiva. Creio que, neste momento, a grande questão não é convocar à guerra, convocar ao conflito. Neste momento, a grande questão é como encontrar caminhos que possam ser de paz duradoura para ambos os lados do conflito.

 

Nesse sentido, sabendo que o Papa Francisco continua em convalescença, a sua habitual voz de liderança nestas matérias é hoje ouvida de outra forma. Acredita que as suas palavras e gestos estão a fazer falta neste momento delicado?

Claro que sim. Também aqui, a realidade é o que é. De qualquer forma, eu creio que antes da doença do Papa Francisco, a sua posição era de tal forma clara que continua a inspirar, seja os esforços – que são sempre delicados e que são sempre muito discretos – da diplomacia vaticana, seja as declarações dos episcopados do mundo inteiro e também da posição do próprio Vaticano.

Quanto a isso, creio que o Papa Francisco continua a ser inspirador para todas estas posições e para todas estas intervenções. Creio também que continua a ser inspirador para a própria Europa. E, portanto, neste sentido, é um ponto de referência, sempre.

 

A COMECE debateu desafios económicos e geopolíticos que se colocam ao presente e ao futuro da União Europeia. Como preservar os valores fundadores do projeto comunitário neste tempo de mudanças e desafios inéditos?

Em primeiro lugar, sublinhar esta realidade da paz, que é muito importante, mas, por outro lado, perceber que a União Europeia está a viver um momento em que, se não houver transformação, perderá o seu papel de interveniente ativo na cena mundial. Os próprios protagonistas da cena mundial vão mudando e, não tenhamos dúvidas, se puderem deixar a Europa para trás, não vão esperar um segundo. a Europa precisa, em termos económicos e em termos políticos, de ser mais interveniente, de olhar para a realidade.

Agora, claramente, sempre com o seu ADN. Qual é? Primeiro, uma realidade que garante a paz. Segundo, uma realidade que garante o progresso. Terceiro, uma realidade que garante a paz e o progresso para os seus cidadãos, oferecendo-lhes aquilo que é uma vida minimamente digna, pelo menos para a grande maioria. Creio que este é o grande ADN da Europa e isto não podemos perder.

A própria economia europeia necessita de dar grandes passos. A perceção que há é que se está numa certa estagnação, que não se foi capaz de avançar diante dos novos desafios da inteligência artificial, de todo este mundo digital, de todas as consequências que depois daí advêm.

 

Estamos na reta final desta conversa e a última pergunta tem a ver com o seu território diocesano. Antes das eleições regionais, na Madeira, falava de um certo cansaço no eleitorado, que até poderia representar um risco para a participação democrática.

Tivemos as eleições: como é que vê o próximo ciclo político, que parece garantir uma maior estabilidade governamental nos próximos anos?

 

Eu creio que é isso: esta participação, esta maior participação e esta votação foi precisamente no sentido de garantir estabilidade e, portanto, esperemos que esta estabilidade aconteça. A presença e o diálogo da Igreja na Diocese do Funchal é uma realidade, entre o Governo Regional e a Igreja sempre houve muita cooperação, tenho a certeza que continuará a existir.

Mesmo que o Governo Regional tivesse mudado politicamente, tenho a certeza de que a cooperação continuaria a existir, mas não posso deixar de saudar esta garantia de quatro anos de tranquilidade política que permita responder às necessidades do povo madeirense e à realidade madeirense.

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