Igreja/Cultura: Faleceu o cineasta Manoel de Oliveira

Entrevista à Agência ECCLESIA em 2007 abordou paixão pelo «cinema de artesanato»

Porto, 02 abr 2015 (Ecclesia) – O realizador de cinema, Manoel de Oliveira, faleceu esta manhã, no Porto, com 106 anos.
A Agência ECCLESIA publica de novo a entrevista que o cineasta concedeu em junho de 2007, quando foi anunciado como vencedor do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes, na altura com 98 anos de idade.

Paixão pelo cinema de artesanato

Agência ECCLESIA (AE) – Quem é este Manoel de Oliveira que aos 98 anos ainda respira cinema?
Manoel de Oliveira (MO) –
Sou eu.

AE – Viveu e vive do cinema. Como é que com esta idade ainda consegue transportar a garra e a força para a sétima arte?
MO –
Eu vivo para o cinema não vivo dele. Pelo contrário, o meu cinema vive de mim e eu vivo da minha experiência e do meu conhecimento. Enfim, das minhas paixões de que o cinema se apoderou.

AE – Para si, o cinema é uma paixão?
MO –
Pode-se dizer que é uma paixão… Melhor, é uma vocação. As pessoas estão vocacionadas para determinadas coisas e não para outras. Poderia ser pintor, escultor – gosto muito de escultura – ou escritor. Não fui doado para tal. Sou um mau escritor e um péssimo pintor.

AE – Costuma pintar?
MO –
Não. Desenho apenas décors e alguns apontamentos para marcar as posições. Não têm qualidade artística.

AE – E a nível da escultura?
MO –
Da escultura ainda menos. Em miúdo fazia bolinhas com miolo de pão.

AE – Antes destas vocações foi um desportista vencedor. Como passou do lado físico para o lado estético?
MO –
Não somos senhores de nós próprios. Somos manipulados ou manejados por forças obscuras.

AE – Ou então iluminadoras?
MO –
Sim. Nós somos criaturas. A criação em si, incluindo os animais, está submetida a essas leis e regras inalteráveis e permanentes. Agimos como criaturas.

AE – Criaturas de Deus?
MO –
A ideia de Deus ergue-se, justamente, face ao nosso mundo, ao cosmos. Ninguém nasceu por vontade própria. Fomos colocados cá por vontade do Criador, Aquele a quem chamamos Deus. Somos criaturas limitadas e, de certo modo, indefesas. Só sabemos que quando nascemos iremos morrer…

AE – Com esta idade já pensou na morte?
MO –
A morte é algo que nos acompanha… A ideia, o receio, o pensamento, o medo, o mistério e o segredo da morte. Alguém disse que: «Se Cristo não Ressuscitou, toda a nossa fé é vã». É o segredo da morte…

AE – Com o passar dos anos, nota esta inquietação religiosa?
MO –
A inquietação religiosa nasceu perante o universo e da nossa presença no mundo. Desde os primeiros homens, esse impacto face ao universo e à criação que o rodeia coloca-nos o problema do Criador. A verdade é que a criação é um facto visível.

AE – Um dia afirmou: «Se pudesse já tinha comprado um bilhete para o céu». Ainda pensa com frequência na compra desse bilhete?
MO –
Sim. Não se perde nada com isso. Só se pode ganhar. Se o céu existe… é bom que se tenha o bilhete.

AE – Apelo à sua memória que nos recorde os seus tempos de infância
MO –
Nos meus tempos de infância pensava que iria para engenharia. Era mau aluno e não fiz curso nenhum. Sou mais de intuições. A minha aprendizagem fundamental nasceu da leitura – grande parte dela ligada às coisas do cinema – mas também do convívio, desde muito jovem, com intelectuais. Forneciam-me conhecimentos muito ricos. Este tipo de convívio ainda mantenho, apesar de muitos deles já terem morrido. Tal como desaparecerem os meus irmãos e os meus primos.

AE – Um dos seus irmãos, o Casimiro, matriculou-se consigo na Escola de Cinema de Rino Lupo para aprenderem as primeiras técnicas cinematográficas.
MO –
A escola de Rino Lupo era uma escola de actores. Só tivemos duas lições. Não aprendi nada lá. Apenas diziam para fazer uma cara de terror ou, então, para sorrir. Era apenas ânsia de conhecer.

AE – Quando foi para essa escola, já tinha tido uma experiência no filme «Fátima Milagrosa»?
MO –
Participei como figurante nesse filme realizado por Rino Lupo. Eu, o meu irmão e outro amigo éramos os pretendentes de uma menina rica que tocava piano. Como o cinema era mudo, sorríamos apenas para a menina.

AE – Os elementos das tertúlias (José Régio, Casais Monteiro, Leonardo Coimbra, Delfim Santos, Lopes Graça e Gaspar Simões) foram importantes para a sua visão do mundo e transmitir esse mundo nas salas do cinema?
MO –
Devo-lhes muito da minha cultura. Toda essa gente já lá vai mas vieram outros… Actualmente, tenho o Pe. João Marques que é um historiador. É o meu conselheiro histórico. Não faço nada nesta área sem o consultar. Há um filme – «Non ou Vã Glória de Mandar» – onde ele e outro historiador fazem a «découpage» para que não existam erros históricos.

AE – Já realizou dezenas de filmes. Qual deles é a obra-prima?
MO –
É o próximo. Estou a acabar de filmar «Cristóvão Colombo – o enigma». É baseado num livro de Manuel Luciano da Silva onde se chega à conclusão que, afinal, Cristóvão Colombo era português. Achei interessante a ideia – não importa que seja português, italiano ou espanhol – porque o que conta é o feito. A programação e criação do sistema dos descobrimentos. Fernando Pessoa disse: «Os descobrimentos, mesmo aqueles feitos pelos estrangeiros, serão sempre portugueses». O sistema é português.

AE – Os portugueses foram os pais dos descobrimentos…
MO –
O infante D. Henrique – era aqui do Porto – determinou as coisas com muita inteligência. Instalou-se no Cabo de Sagres e foi a Génova (Itália) buscar os capitães que conheciam melhor as navegações – feitas, sobretudo, no Mediterrâneo – e trouxe-os para Sagres. Havia método. Não foi apenas uma aventura.

AE – O seu cinema também é aventura. Está para além do horizonte?
MO –
Tudo está para além do horizonte porque não sabemos o que é o futuro. O futuro é sempre um devir… por vezes parado mas, sobretudo, inesperado. Não advinhamos e não sabemos o passo que damos amanhã. Muitas vezes, enganamo-nos no caminho, esquecemo-nos. A nossa memória começa a falhar com a idade porque somos limitados. Sem memória não sabemos quem somos, onde estamos e o que fazemos.

AE – É o único cineasta no mundo que ainda vem do tempo do cinema mudo. A técnica trouxe novas realidades e alterações para a Sétima Arte?
MO –
Trouxe mas também prejudicou.

AE – Aponte-nos alguns pontos positivos e negativos desta evolução.
MO –
A arte é expressão enquanto a técnica pertence ao campo da ciência. A técnica pode ajudar ou prejudicar na expressão. Actualmente, o cinema está mais baseado nos efeitos técnicos do que na expressão artística. Eu opto mais pela simplicidade da expressão dos gregos (da Antiga Grécia) e do realismo da Renascença do que pelos efeitos espampanantes que não dizem nada. Eles distraem o olhar e exploram, por vezes, o próprio sentimento. Esta exploração do sentimento e sofrimento é, muitas vezes, perversa. É masoquismo.

AE – Nunca esteve tentado a realizar este cinema comercial?
MO –
Não estou contra isso nem a favor. O que é o cinema comercial? O comercial é uma indústria. Eu amo e estimo o cinema de artesanato.

AE – Onde reside a diferença?
MO –
A indústria repete a mesma coisa milhares de vezes. O artesanato nunca repete. Existem sempre diferenças nas peças de artesanato. O cinema é um pouco isso… Não sei se há uma deontologia cinematográfica mas muito poucos realizadores no mundo são capazes de distinguir nos seus filmes o que é privado e o que é público. O privado não se mostra. Eu incluo-me nestes realizadores tal com o Hitchock, Buñuel, John Ford e Orson Wells. Já os gregos diziam: «Medeia mata os teus filhos mas não em cena». É bonito e significativo. Não explora a violência pela violência, o sexo pelo sexo. O fundo do sexo é a multiplicação da espécie e não o prazer em si.

AE – Situa-se nessa escola que privilegia o público?
MO –
Não é uma escola mas uma deontologia cinematográfica. Um respeito pela ética.

AE – Há falta de ética no cinema?
MO –
É um ponto delicado e complexo. A literatura é mais aberta a este aspecto. A literatura não é pública enquanto o cinema e o teatro são públicos. A literatura é íntima. Quem tem um livro, mesmo de bolso, tem um companheiro e nunca está só. Não é a mesma coisa que o espectáculo.

 

AE – O seu cinema não é intimista?

MO – O íntimo é imperscrutável. Há segredos profundos que não revelamos. O íntimo pertence a cada um e deve ser respeitado por cada um.

AE – Pertence a cada um e ao Criador?
MO –
Um escritor disse: «Tudo está escrito». Todo o mal que se pensou ou todo o bem que se praticou está escrito.

AE – As imagens paradas, os longos planos, os diálogos teatrais e o peso da palavra são marcas dos seus filmes?
MO –
As imagens paradas são fotografias. O cinema dá movimento à fotografia. Há uma diferença da máquina aos pulos e da máquina fixa. Uma vez, Pasolini escreveu: «A máquina em movimento é poesia e a máquina fixa é prosa». Na altura não compreendi bem esta distinção mas suponho que ele é aderente à máquina em movimento porque ele penetrava no íntimo sem a mais pequena cerimónia.

AE – O seu cinema tem esse movimento poético?
MO –
A poesia não precisa de ter movimento. A expressão é que pode ser poética ou não. Esta pode ser histórica ou descritiva. Não é o movimento que dá poesia… É a poesia que dá movimento ao pensamento e ao sentimento.

AE – Estudou no Porto e na Galiza, num colégio dos Jesuítas. Os seguidores de S. Inácio de Loyola tiveram importância na sua formação humana?
MO –
Os Jesuítas eram excelentes educadores, eu é que era mau aluno. (Risos)

AE – Mas os livros do Pe. António Vieira marcaram-no imenso. Fez mesmo um filme sobre este jesuíta do século XVII.
MO –
Para realizar esse filme recorri aos conhecimentos do Pe. João Marques. Não se podem cometer erros históricos. Tanto nesse, como em «Non ou Vã Glória de Mandar», os historiadores acompanharam-me. O que não sei pergunto a quem sabe.

AE – Para tratar o Pe. António Vieira na Sétima Arte é porque notou nele algo de inovador?
MO –
O Pe. Vieira tem dois lados: temporal e intemporal. No primeiro tem um excelente sentido do processo histórico. O lado religioso também é formidável. Ele aconselhou o rei a entregar Pernambuco aos holandeses. Se se concretizasse essa doação, os portugueses teriam boas relações com a Holanda e poder-se-iam fazer bons negócios. Por outro lado, os judeus poderiam voltar para Portugal, visto que foram expulsos aquando a inquisição. Os judeus poderiam desenvolver Portugal e ajudar a renovar a armada que estava bastante destruída.

AE – Era um homem com visão?
MO –
Tinha uma visão política muito sagaz.

AE – Mas foi também um grande humanista?
MO –
Era contra os abusos sobre os escravos. Participei numa conferência no Brasil onde se disse que o Pe. António Vieira defendia mais os índios do que os negros. Os negros quando chegavam à América tinham perdido a identidade, não estavam no seu país. Os índios estavam nas suas terras. É a questão da identidade. Sem identidade não há dignidade.

AE – Em relação aos seus filmes, pode dizer-se que o estrangeiro os descobriu primeiro que Portugal?
MO –
Sim. A França, Itália, Alemanha e Inglaterra. A primeira venda de «Douro, Faina Fluvial» foi feita para a Inglaterra.

AE – O «Douro, faina fluvial» causou-lhe alguns dissabores? Foi apupado e pateado na estreia.
MO –
De modo geral, os meus filmes são mal acolhidos em Portugal. Depois acabam por se impor. Ainda hoje, tanto esse como «Aniki-Bóbó» ainda são muito requeridos. Dizem que os meus filmes não são comerciais mas as distribuidoras não os largam.

AE – A crítica foi agressiva tanto para o «Douro, Faina Fluvial» como para «Amor de Perdição» Não fica magoado?
MO –
Não. Eu sabia que o filme estava correcto. Nas tertúlias da Póvoa do Varzim aprofundávamos muito estas questões. Aprofundei muito o Camilo Castelo Branco que é um grande escritor. Se fosse alemão ou francês estaria nos píncaros. Teve a infelicidade de nascer neste país.

AE – No «Douro, Faina Fluvial» mostrou a realidade da Ribeira?
MO –
Hoje, essa realidade já não existe. Tem uma qualidade histórica formidável. Tem o Douro daquela época (fins dos anos 20). As filmagens foram todas realizadas, em vários dias, depois das quatro da tarde. Tem um fim de tarde muito largo…. (risos.)

AE – Utiliza com frequência a sua cidade como cenário dos seus filmes. Para além desse, recordo-me também do «Porto da minha infância».
MO –
Gostei muito de fazer esse filme. É uma espécie de memória… O Porto está muito diferente. Desapareceu muita coisa. Há muita gente nova que nem sabe quem é Salazar. Eu tenho memórias que ninguém tem e guardo-as.

 

AE – Os seus filmes incomodaram o Estado Novo? Teve problemas com Salazar?
MO –
Eu não tive problemas com ele mas parece que ele teve problemas comigo. Meteu-me uma vez na cadeia. Os meus filmes não aderiam ao Estado Novo. Incomodavam-no porque eu não era propriamente comunista. O fascismo nasceu para contrariar o comunismo. Aos comunistas, eles não incomodavam muito. O facto de ser comunista era conveniente ao Estado, justificava a sua presença. Como não era comunista, estava fora desse campo.

AE – Foi preso?
MO –
Sim, mas por pouco tempo. Fiz um filme onde invoco essa passagem.

AE – Então recorda-se do caso de D. António Ferreira Gomes com Salazar?
MO –
Lembro-me, mas não lidei muito com D. António Ferreira Gomes. Sei que fazia discursos muito demorados e entrava no campo político com frequência. Para mim, a religião está acima do campo político. Se é religioso não é partido político. Muitos confundem religião com os partidos políticos. Era natural que a religião tivesse sido perseguida pelos regimes autoritários. Havia também a subtileza de ser agradável à religião e os bispos tinham de ter a subtileza de se manterem, não arriscar tanto. Isso aconteceu com os Jesuítas no tempo do Marquês de Pombal. É um jogo de equilíbrio.
Tivemos um grande Papa que foi João Paulo II – este também é – que uniu as religiões e não lhes fez guerra. Temos de aceitar todas as religiões porque são diferentes formas de adorar ao mesmo Deus. Isto é profundamente cristão e profundamente humano. As religiões quando se tornam políticas guerreiam-se… João Paulo II foi extremamente sábio.

AE – Este ambiente laicista incomoda-o?
MO –
Esse lado não é democrático. Tirar os Cristos e colocar lá o retrato do presidente da República é… Fala-se em tolerância e liberdade na democracia mas estes actos são contraditórios. O laicismo torna-se intolerante na medida em que agride as outras posições visto que as outras posições não agridem os laicos. A tolerância é extraordinária.

AE – Realizou muitos filmes, foi agraciado em muitos festivais internacionais e nacionais. O Prémio de Cultura Pe. Manuel Antunes é outro a juntar à colecção?
MO –
Tenho muitos prémios. De todo o mundo… Japão, América do Norte, Colômbia, Brasil, Argentina, Canadá, Itália, França, Alemanha, Roménia, República Checa…

AE – Sem esquecer o prémio do Vaticano
MO –
Eu, como pobre pecador que sou, recebi um prémio do Vaticano. Foi o Mons. Foley quem o entregou. Deu-o a um grande pecador. Também recebi prémios dos protestantes e dos judeus.

AE – O seu cinema atravessa o ecumenismo e o diálogo inter-religioso?
MO –
Tive uma educação cristã. A identidade europeia é cristã e nasceu com a bandeira da Cruz de Cristo. Podemos gostar ou não gostar mas não podemos negá-la. O Novo Testamento não nega em nada o Antigo Testamento.

AE – Como reagiu à atribuição do Prémio da Cultura Pe. Manuel Antunes?
MO –
Senti-me imerecedor. Os prémios atribuídos aos pecadores não são justos (risos)

AE – Em relação aos outros prémios não invocou a condição de pecador?
MO –
Os outros prémios não têm o sentido religioso. Eu sou pecador, os meus filmes não.

AE – Não há pecados nos seus filmes?
MO –
(risos). Penso que não.

AE – Ainda há forças para o próximo projecto?
MO –
Sinto-me com forças. Incomoda-me mais a falta de meios. O Estado não se interessa pelas coisas artísticas. Quando o filme «Amor de Perdição» passou em França – todos os jornais falaram dele – foi publicado um livro sobre o Camilo Castelo Branco. Isto atraiu o conhecimento para o Fernando Pessoa.

AE – Onde se inspira para escrever os seus argumentos?
MO –
Acontece…

LFS

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