A Fundação Ajuda à igreja que Sofre (AIS) assinala 30 anos em Portugal, a dar voz aos cristãos perseguidos e ao apoio àqueles que mais precisam. A diretora nacional da AIS é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência ECCLESIA)
Falamos num dia em que o Papa está a assinalar uma celebração inédita, uma celebração também ecuménica, que evoca 1600 novos mártires de várias confissões cristãs no âmbito do Jubileu. São números que impressionam. Pode ser um momento importante para recordar a realidade da perseguição religiosa em pleno século XXI?
Eu penso que sim, acho que este encontro, este Jubileu dos Mártires que está a decorrer em Roma é exatamente com esse objetivo, porque muitas vezes nós temos esta ideia de que o martírio, foi há muitos séculos, que hoje não há martírio, e a verdade não é essa. E, portanto, estes números mostram isso. O Papa Francisco, quando organizou o Jubileu da Esperança e marcou este Jubileu dos Mártires, foi exatamente com esse objetivo de mostrar ao mundo que hoje continua a haver mártires, e são muitos os mártires de hoje, infelizmente. Este evento que está a acontecer hoje em Roma é muito importante também para o mostrar.
Essa é uma realidade que está muito próxima do dia a dia da Fundação AIS, mas pergunto se se sente que existe sensibilidade da opinião pública para este tema?
Eu penso que cada vez mais há pessoas que olham e que se preocupam e que tentam saber. E muitas vezes quando vamos a eventos espalhados por Portugal, há muitas pessoas que ficam surpreendidas, como é que hoje há este martírio, como é que há esta perseguição, que não é compreensível, como é que em pleno século XXI possa haver esta perseguição.
E por outro lado, há cada vez mais pessoas mais preocupadas, mais interessadas, mais envolvidas, e eu penso que isto, tem sido sublinhado nos últimos pontificados, em que se tem falado muito sobre esta questão do martírio, dos mártires de hoje. O Papa Francisco de facto, chamou regularmente à atenção para esta questão, e o Papa Leão também o tem feito. Por isso eu creio que é um tema que cada vez mais as pessoas vão ficar envolvidas e este acontecimento de hoje vai certamente chamar uma vez mais a atenção para isto e para nos alertar que existe esta perseguição e que é preciso não ficar indiferentes a este sofrimento e lutarmos com as nossas armas, que no nosso caso é simplesmente fazer divulgação, informar, dar a conhecer, para que isto não fique no esquecimento, não fique no anonimato de todo o mundo.
Como assinalamos no início, hoje é um dia especial para a Fundação, que reúne em Fátima amigos, benfeitores, celebrando 30 anos de presença em Portugal. É uma presença já consolidada, sente de alguma forma que as pessoas conhecem o trabalho da Fundação AIS?
Sim, sem dúvida, hoje de facto é um dia muito especial para nós. Nós anualmente encontramo-nos em Fátima por volta do dia 14, porque foi o dia em que o nosso fundador consagrou o nosso trabalho, a Nossa Senhora de Fátima, e, portanto, anualmente vamos a Fátima neste dia para renovar esta consagração do nosso trabalho à Nossa Senhora de Fátima. Este ano tem uma particularidade que assinalamos de facto os 30 anos de presença em Portugal e tem sido de facto 30 anos em que primeiro com muitas dúvidas, com muitas incertezas, mas hoje temos um grupo de pessoas, de amigos, de benfeitores, que reconhecem o trabalho, que conhecem o trabalho da AIS e que querem continuar e estar connosco também neste dia para celebrar. E isso tem-se notado também na generosidade dos próprios benfeitores, dos próprios amigos, que tem crescido ao longo dos anos e, portanto, esse reconhecimento do nosso trabalho, desta nossa missão em favor dos cristãos perseguidos, tem sido reconhecido ao longo dos anos e por isso é muito bom hoje estar com todos os amigos e benfeitores da AIS em Fátima.
E, portanto, tem havido solidariedade com os cristãos perseguidos?
Sem dúvida. Aqui em Portugal de ano para ano tem aumentado esta solidariedade, claro que com muitas dificuldades mas ouvimos muito frequentemente benfeitores dizerem que passam por muitas dificuldades no dia-a-dia mas nada comparado com as situações que nós falamos e por isso despendem do pouco que têm, dão para ajudar estes cristãos a sobreviver para que a igreja possa permanecer nos seus países e isso tem sido muito bom ver. Que de facto há este reconhecimento, esta credibilidade também. Saber que efetivamente os nossos apoios chegam à Igreja, chegam a estas pessoas que nos pedem ajuda, isso tem sido muito positivo e faz com que cada vez mais pessoas ajudem e que queiram ajudar então os nossos projetos.
A AIS começa num contexto específico de perseguição religiosa no leste da Europa e nós hoje lamentavelmente olhamos para essa região e vemos uma guerra. A situação na Ucrânia tem mobilizado muitos meios, tem criado desafios novos. Quais são as prioridades para quem acompanha a situação na região?
Bom, a Ucrânia tem sido desde 2022 o país que tem recebido mais apoio da AIS e em 2024 voltou a acontecer e creio que este ano continua. Entre as nossas prioridades para a Ucrânia, todos sabemos a situação dramática que se vive, e o nosso apoio é ajudar a igreja a apoiar a comunidade. E ajudamos nas coisas básicas. Estou-me, por exemplo, a lembrar que temos o apoio a geradores, à aquisição de geradores, coisas muito simples para além da aquisição de alimentos, medicamentos, todas estas coisas básicas. Mas há uma situação para a qual tem havido muitos pedidos e que nós temos apoiado bastante, relacionada com a cura dos traumas; apoio para a ultrapassar os traumas. Nós percebermos facilmente que num cenário de guerra, com todas as imagens que nós vamos vendo diariamente na televisão; nós percebemos a dimensão dessa realidade. Os padres e a Igreja são confrontados com pessoas que estão traumatizadas, que precisam de ajuda a nível psicológico. Os próprios padres precisam de ajuda e, portanto, tem sido uma das áreas que nós temos apostado muito e em que estamos a investir no sentido de dar formação aos sacerdotes, aos religiosos, para poderem ouvir estas pessoas, para poder também ajudar a ultrapassar as situações, porque é uma das situações mais graves que temos atualmente na Ucrânia. De facto, estes traumas que afetam crianças, homens, mulheres, idosos, vão alvo da nossa atenção e da nossa ajuda.
O grande fluxo migratório na Ucrânia aconteceu logo a seguir ao início da invasão russa. Nesta altura também canalizam para aí algum apoio ou é residual, nesta altura, a questão dos deslocados?
Não, neste momento para a Ucrânia não. Neste momento a grande maioria dos deslocados já está minimamente organizada e já tem o seu apoio. Pode haver uma ou outra paróquia onde estão comunidades ucranianas que podem precisar de ajuda, mas a grande maioria já está minimamente organizada e já tem o seu apoio. Se me fala em termos globais, sim, é um dos temas, um dos tópicos, uma das preocupações das grandes preocupações que temos atualmente devido ao número tão grande de refugiados e deslocados que temos atualmente no mundo.
E como é que tem acompanhado a situação em Gaza? A pequena comunidade católica tem possibilidade de alguma forma de resistir?
Não sei responder com exatidão essa pergunta. Sei que será muito difícil, isso posso lhe dizer. Neste momento existem cerca de 500 cristãos na faixa de Gaza, todos eles estão ali na paróquia da Sagrada Família com o padre Romanelli e com duas irmãs da comunidade de Madre Teresa de Calcutá, e, portanto, são 500 pessoas. Se nós olharmos para as notícias todas que vamos tendo, será muito difícil a comunidade resistir. Neste momento está como que num enclave, digamos assim, mais ou menos protegido, apesar de a paróquia ter sido atingido agora durante este verão, mas é mais ou menos um enclave em que o padre Romanelli e a comunidade que está com ele têm conseguido assegurar a sobrevivência das pessoas que estão ali. O padre Romanelli e a pequena comunidade têm feito um trabalho extraordinário no sentido de dar alguma normalidade à vida, ter as crianças ocupadas, ter as crianças a continuar a fazer pequenos estudos, a parte da oração, e, portanto, tudo isso tem sido feito por esta comunidade. Em termos de curto, médio prazo, eu penso que será muito difícil, se a situação continuar como está hoje, será muito difícil resistirem a toda a pressão que está a existir na comunidade, mas por agora mantém-se como um farol naquela zona, mas não será fácil a manutenção da comunidade cristã nesta zona.
Também para quem está a ouvir perceber, mas tem havido possibilidade de manter algum tipo de contato com essa comunidade católica em Gaza?
Sim. Nem sempre, mas vamos conseguindo manter a informação através de mensagens do WhatsApp, e continuamos a fazer esse tipo de comunicação, de falarmos regularmente com o padre Romanelli. Sabemos que a situação é cada vez mais difícil. Da última vez que nós falámos com ele, ele dizia que estava a fazer o racionamento dos bens, porque efetivamente não estavam a conseguir chegar os bens, e, portanto, era preciso fazer o racionamento para que eles pudessem durar o máximo tempo para aquele número de pessoas que está ali, mas é muito difícil o dia-a-dia nesta comunidade.
E nesses contactos, embora breves, ainda se notam sinais de esperança ou já ninguém acredita muito nesta capacidade de negociação?
No fim todos têm a esperança de que as negociações resultem e que seja possível chegar a um acordo entre as partes, mas nós vamos olhando e de facto é cada vez mais difícil e cada vez parece mais quase que impossível chegar a um acordo. E se não se chegar a um acordo será muito difícil esta comunidade permanecer nesta região.
Os olhares do mundo tornam a virar-se para o Darfur depois de alguns anos de ausência, consegue explicar a aparente indiferença de tantos perante a crise humanitária que se vive no Sudão?
Isto é um pouco como quando falámos no princípio, às vezes há muita indiferença no mundo relativamente a muitas questões, os cristãos perseguidos é uma das indiferenças. Os vários conflitos que estão a acontecer em África passam-nos praticamente despercebidos aos nossos olhos, não são tema de notícias nos nossos noticiários, nas nossas grandes agências e o Sudão é uma vez mais um país que é praticamente ignorado, portanto a guerra já está instalada há mais de um ano, a verdade é que continua a ser muito ignorado pelo mundo, calcula-se que neste momento já mais de 40 mil pessoas tenham morrido, há mais de 12 milhões de pessoas deslocadas e refugiadas. Nós olhamos para este conflito e não conseguimos perceber como é que ninguém olha, como é que ninguém faz algo para chamar a atenção para este conflito, mas a verdade é que está o conflito e vamos ver o que é que vai acontecer nos próximos tempos, porque algumas irmãs com quem temos falado estão com muito receito que possa ainda aumentar mais este conflito nesta região do globo.
Essa falta de atenção também se nota em Moçambique, até porque no último mês voltaram a ser notícias os ataques terroristas em Cabo Delgado. Este é mais um exemplo da incapacidade da própria comunidade internacional em ser esse fator pacificador?
Sem dúvida, sem dúvida. Nós temos, de facto, como disse, verificado que desde junho têm aumentado bastante, e têm-se intensificado os confrontos, com estes ataques destes grupos terroristas nesta zona de Cabo Delgado, na zona norte de Moçambique. A Igreja diz-nos que há mais cerca de 60 mil novos deslocados desde junho até agora, portanto há mais de um milhão deslocados desde o início deste conflito em 2017 e, de facto, o mundo não tem conseguido encontrar soluções para este conflito, para estes ataques terroristas que estão a acontecer e nós olhamos e, de facto, também não temos visto notícias, não se vê notícias, e ainda por cima nós que somos um país com relações históricas muito profundas com Moçambique e, de facto, não se vê.
Queria aqui chamar a atenção, que o Papa falou de Moçambique agora durante o mês de agosto, exatamente a pedir ao mundo para não esquecer o sofrimento, para não ignorar este sofrimento, para não ficar indiferente a este sofrimento desta comunidade moçambicana. Há chamadas de atenção, mas não têm sido suficientes, porque, de facto, nós temos dois focos neste momento muito graves, o Medio Oriente e a Ucrânia, que, de facto, têm nos levado a estar sempre virados com a nossa atenção para estes dois focos importantes de conflitos no mundo.
No início falávamos da importância que o Papa Francisco teve nos alertas sobre as violações ao direito à liberdade religiosa, que é disso que se trata, e, tivemos agora a oportunidade de ouvir que Leão XIV continuou nessa senda. Neste dia do seu aniversário, pergunto-lhe se o Papa vai continuar a ser esta voz de chamada de atenção e de alerta constante para estas questões?
Sim, eu creio que sim, eu creio que a Igreja está atenta e o Papa está atento a estas questões e vai continuar a ser um fator de alerta e de querer continuar a ser pacificador e de querer chamar a atenção. Não nos podemos esquecer que o Papa Leão XIV ofereceu o Vaticano para ser mediador das negociações para o Medio Oriente, portanto, tudo isto faz-nos crer que o Papa Leão irá continuar nesta linha de chamar a atenção, porque é muito importante termos uma voz como o Papa Leão num mundo que está muito polarizado, é importante ter uma voz mais serena e este Papa é um Papa sereno. É importante por isso continuar a chamar a atenção e de não nos esquecermos, porque eu acho que o mais grave disto tudo é, de facto, a nossa indiferença perante este sofrimento de todas estas pessoas e o Papa tem esta voz poderosa, que é ouvida e que é acolhida e por isso é uma voz que é muito importante nos dias de hoje para trazer também alguma normalidade, se é que posso dizer isto desta forma. Trazer alguma normalidade, alguma serenidade e também olharmos efetivamente para os problemas que estão a acontecer com tantos milhões de pessoas no mundo e que precisam da nossa ajuda para resolver estes conflitos que estão a acontecer, é absolutamente decisivo.