Igreja «Nenhum fundamentalismo pode ser bíblico» – padre Francisco Martins

Especialista português sublinha «diversidade das vozes» nos vários livros do Antigo e Novo Testamento

Lisboa, 23 jan 2025 (Ecclesia) – O padre Francisco Martins, biblista português, disse à Agência ECCLESIA que a “diversidade das vozes” presentes nos vários livros do Antigo e Novo Testamento exclui a possibilidade de “fundamentalismo” na sua leitura.

“Nenhum fundamentalismo pode ser bíblico”, refere o religioso jesuíta, em entrevista a propósito do próximo Domingo da Palavra de Deus, uma celebração instituída pelo Papa Francisco.

O entrevistado assinala que a própria Bíblia “desconstrói esta tentação do fundamentalismo”.

“Aqueles textos querem apontar para determinados aspetos e se o leitor vai com vontade que o texto lhe diga aquilo que o texto não lhe quer dizer que estas vezes é o problema eu quero fazer perguntas ao texto às quais ele não quer responder. Se isto acontece, o texto habitualmente é forçado a dizer aquilo que não quer”, sublinha.

“Isso é que é o fundamentalismo. O fundamentalismo não é uma forma de leitura, é uma forma de violência”, acrescenta.

O sacerdote conduziu, em janeiro, uma formação sobre a Bíblia e a sua origem, ao longo de quatro sessões – presenciais e online – , com centenas de participantes, nem todos católicos.

“Há muita gente que tem um interesse, diríamos, cultural, literário, pela Bíblia. É curioso, são pessoas que conhecem as histórias, conhecem o texto, mas sabem muito pouco, muitas vezes quase nada, sobre a história por trás dos textos e sobre o processo de elaboração do texto”, indica.

O curso, intitulado ‘A Bíblia não caiu do céu’, aludiu à “diversidade das vozes, até da voz divina”, nos vários livros.

“Isto é o melhor antídoto contra o fundamentalismo. É um livro que tem esta capacidade de falar a várias vozes”, sustenta o padre Francisco Martins.

“Quis mostrar que se trata de um processo, não foi algo que aconteceu de repente, não apareceu a Bíblia do céu, é um processo. E, por outro lado, é um texto perfeitamente, para quem crê, perfeitamente divino, mas também perfeitamente humano”, prosseguiu.

O religioso jesuíta é doutorado em Bíblia pela Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel) e, atualmente, é professor auxiliar na Universidade Pontifícia Gregoriana, em Roma.

O entrevistado sublinha que, ao longo das últimas décadas de estudo, se desenvolveu “a consciência de que o processo é fundamentalmente comunitário”.

O especialista assume que é desafiante “introduzir as pessoas num estilo de literatura e numa forma de escrever que é bastante diferente” da ocidental.

“A literatura, e também a literatura bíblica, que é a altíssima literatura, tem uma relação oblíqua com a história. Isto é, relaciona-se com a história, mas muitas vezes de forma oblíqua, de forma complexa, sofisticada”, acrescenta.

Foto: Agência ECCLESIA/OC

O biblista português recorda que “grande parte do Antigo Testamento é, literalmente, poesia”.

“Tem uma dimensão poética, no sentido de é uma narrativa que cria um mundo e que cria uma dinâmica e que cria de alguma forma uma cultura e uma forma, sobretudo, de olhar para o mundo muito própria”, precisa.

Para o padre Francisco Martins, o objetivo é “ajudar as pessoas a olhar este texto com um olhar adulto”.

“Eu não espero que aquele texto seja uma lista de compras na mercearia, ou que seja um relato jornalístico. Aquele texto cumpre uma função diferente e, de alguma forma, fala comigo de uma forma específica. Eu acho que esta é a grande aprendizagem: como é que chegamos ao ponto onde o texto fala connosco na forma que ele escolheu falar”, explica.

O investigado assinala, ainda, que o enquadramento eclesial e comunitário da leitura da Bíblia “desapareceu”, o que exige hoje uma “pedagogia de leitura”.

O VI Domingo da Palavra de Deus assinala-se a 26 de janeiro, em todas as dioceses católicas, com um lema escolhido pelo Papa Francisco, a partir do Salmo 119: ‘Espero na tua Palavra’.

A celebração acontece ainda no contexto do Jubileu 2025, uma celebração com origens bíblicas: segundo a prescrição contida no capítulo 25 do Livro do Levítico, de sete em sete semanas, no quinquagésimo ano, a “trombeta de aclamação” deveria soar para proclamar um “sábado” de 12 meses, durante o qual a terra devia descansar, as dívidas deviam ser perdoadas e os bens devolvidos à sua propriedade original.

“Este texto é um texto lindíssimo, um bocadinho utópico, é um texto que desenha um ideal importante”, precisa o padre Francisco Martins.

A entrevista com o religioso jesuíta vai estar em destaque na emissão do Programa ECCLESIA deste domingo, na Antena 1 da rádio pública, pelas 06h00.

OC

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