O Padre Rui Pedro, missionário scalabriniano e antigo diretor da Obra Católica Portuguesa de Migrações, fala da sua experiência junto da comunidade lusa no Grão-ducado
Agência ECCLESIA (AE) – Como tem sido esta experiência junto dos emigrantes no Luxemburgo?
Padre Rui Pedro (RP) – Continuo um homem do sul. França, Portugal, Itália e Cabo Verde foram até agora as minhas terras solarengas de missão. É a primeira vez que a Igreja me envia no frio norte da Europa para acompanhar as comunidades migrantes: uma exigente mudança no meu caminho de padre missionário.
Vivo na fronteira do Grão-ducado com a França e Bélgica: região marcada, no passado, por numerosas minas de ferro, fábricas, metalurgias e siderurgias onde, ainda hoje, se respira uma cultura operária, cosmopolita porque enriquecida pela presença migrante. O Luxemburgo é diariamente invadido por 150 000 trabalhadores transfronteiriços oriundos dos países vizinhos. Dizem-me que foi aqui, nas três fonteiras, que nasceu a União Europeia.
A cidade onde vivo chama-se Esch-sur-Alzette, a segunda cidade do país e conta 30 000 habitantes provenientes de uma centena de nacionalidades. Sou um dos 110 000 portugueses que vivem neste pequeno país constituído por meio-milhão de habitantes. A minha Congregação tem uma comunidade no Bairro Brill: um bairro tradicionalmente popular, operário e habitado essencialmente por famílias migrantes: ontem predominavam os italianos, hoje, a maioria são portugueses e cabo-verdianos. É na Igreja do Sagrado Coração de Jesus que os lusófonos partilham sua fé com a pequena comunidade católica luxemburguesa.
Estou integrado na equipa pastoral (composta por agentes pastorais luxemburgueses, franceses, italianos e portugueses) e está-me confiado o particular serviço linguístico aos portugueses, cabo-verdianos, brasileiros e outros lusófonos. Num raio de aproximadamente 30 km acompanho cinco comunidades de língua portuguesa que se encontram todos os domingos. Sinto-me feliz por, num momento dramático em que se volta a falar da Emigração, com realismo e sem rodeios, poder dar o meu contributo concreto à nossa gente. E, não apenas aos que para aqui emigraram há 40, 25, 10 anos, mas também àqueles que chegaram há 4, 3, 1 ano ou seis meses. Uns vieram com família, outros sozinhos; uns encontraram o trabalho prometido, outros redondamente enganados vivem o desencanto; uns foram ajudados pelos conterrâneos, outros explorados sem piedade; uns trabalham, mas muitos estão desempregados e outros reformados. Constato uma grande diversidade de perfis, histórias, habilitações e percursos de vida. Julgo que as categorias qualitativas e quantitativas de outrora demonstram-se insuficientes para compreender o hodierno movimento emigratório. Urge construir uma nova conceptualização da emigração, como já o afirmaram, em 2005, os congressistas no Encontro das Comunidades do Porto, organizado pela OCPM.
AE – Qual a importância de um acompanhamento espiritual de quem chega a um novo país?
RP – A Missão Católica de Língua Portuguesa (MCLP) é uma estrutura da Igreja local com uma história exemplar de generosidade, evangelização e bem-fazer social e cultural em prol dos emigrantes e lusodescendentes. O acompanhamento espiritual dos adultos que chegam, dos adolescentes, mas, sobretudo, das crianças, com a oferta da catequese, é crucial para o desenvolvimento da fé e identidade das famílias. Em terra estrangeira, as raízes culturais e referências religiosas e simbólicas natais correm o risco de perder-se, descaracterizar-se ou cristalizar-se face á secularização e relativismo da sociedade. No Luxemburgo, como acontece um pouco por todo o norte da Europa, assiste-se ao eclipse de Deus, à irrelevância da prática religiosa, ao enfraquecimento dos laços sociais, ao envelhecimento das comunidades e dos agentes pastorais. Desde há algumas décadas que os emigrantes constituem as comunidades mais jovens, mais praticantes e missionárias da Igreja no Luxemburgo: qual sinal dos tempos a decifrar juntos!
Sem a ação das três Missões – no Norte (Schieren/Ettelbruck), no Centro (Luxembourg Ville) e no Sul (Esch-sur-Alzette) a integração social e eclesial dos católicos lusófonos, nos últimos cinquenta anos, teriam sido mais traumáticas e despersonalizantes a nível da fé e da identidade cultural. Todavia, diante da sociedade e mobilidade em acelerada mudança, as MCLP vivem o difícil momento da atualização e renovação do seu papel de mediação para dar novas respostas às novas exigências da Igreja local e às necessidades novas dos emigrantes. Os novos emigrantes apresentam-se menos visíveis e mais independentes, identificando-se pouco com os lugares tradicionais de agregação: as Associações portuguesas, cafés, clubes de futebol, e a própria Missão católica.
AE – Como acompanha a comunidade portuguesa a situação no seu país de origem?
RP – A Comunidade portuguesa, graças aos media televisivos internacionais, à internet e às frequentes viagens de vai-e-vem, acompanha muito de perto o que se passa em Portugal. A incerta e precária situação económica, com a desumana e prolongada austeridade justificada por políticos, continua a forçar muitos portugueses a abandonar o país. E, aos emigrantes que cá estão há mais tempo – desempregados ou já reformados – por enquanto, a não tentarem o regresso. Seria uma aventura arriscada e votada ao fracasso. Em Portugal aumentam os apelos dirigidos aos emigrantes para captar suas remessas, poupanças e investimentos, mas os emigrantes não veem claro porque, após décadas de pouco investimento nas Comunidades com Consulados inadequados, são apelos que soam a oportunismo económico, desresponsabilização nacional e a demagogia politica.
AE – Qual o papel da Igreja no acompanhamento e preparação dos novos emigrantes, antes da partida?
RP – A Igreja em Portugal, apoiando-se em parcerias eficazes a nível do estudo das migrações, deve mais uma vez dar o exemplo. Deve conhecer em profundidade a atual e concreta situação dos países mais procurados pelos portugueses. Deve trocar experiências e dialogar bilateralmente com essas igrejas para que continuem a apoiar as nossas Comunidades com espaços e recursos, e Portugal envie mais sacerdotes para a Emigração, com vista a manter as que existem e a abrir novas Missões. Só assim, é possível denunciar alguns mitos sobre o emigrar fácil, o trabalho a pontapé (ex. no Luxemburgo), a solidariedade entre portugueses, os apoios sociais dos consulados, as generosas regalias da Segurança Social estrangeira, entre outros. Só assim se poderá atuar em Portugal a prevenção de dolorosas situações de engano, violência, solidão, vulnerabilidade familiar, exploração, desalojamento, fraude fiscal e trabalho forçado. Crimes que vão acontecendo na Europa das liberdades e direitos iguais. Na Europa que prefere falar de cidadãos europeus no seu pleno direito de livre circulação, em vez de emigrantes, termo sempre mais pejorativo. Outro mito a corrigir!
AE – O crescente aumento da emigração coloca desafios específicos às comunidades católicas portuguesas?
RP – Os mais de 120 mil portugueses que deixaram Portugal em 2013 colocam desafios específicos à Igreja, em contexto rural e urbano, litoral e insular. Esta hemorragia demográfica, agravada pela baixa taxa de natalidade em Portugal, fere o país em todas as suas expressões e mutila o seu capital humano. Em Portugal, ocorre conhecer as características da nova e invisível vaga migratória; ocorre fazer-se próximo das pessoas para apoiar os familiares (idosos, doentes e crianças) que ficam para trás, às vezes dependentes dos escassos proventos de quem partiu, isolados, sem o apoio necessário por desconhecimento dos casos por parte da própria comunidade, paróquia ou Caritas. No estrangeiro, ocorre igualmente tornar-se próximo para que a escola deixe de ser discriminatória e seletiva (por causa da língua) para os filhos de emigrantes; para que o trabalho em excesso, às vezes tão desumano porque altamente competitivo, e a vontade de fazer face, no mais curto espaço de tempo a dívidas pendentes ou situações familiares complexas, não roube para sempre a alma às pessoas, não banalize ainda mais a dignidade humana e não dilua os valores cristãos: os únicos a poder garantir a transcendência da vida e alimentar o sonho que todo o emigrante e refugiado acalenta no seu coração: um mundo melhor, uma vida melhor.
Os portugueses não estão ainda integrados nos países para onde emigraram e continuam a emigrar! Termino recordando à Igreja em Portugal portuguesa essa importante tarefa. Refiro-me ao diálogo solidário e periódico com as estruturas das Igrejas que acolhem as Comunidades portuguesas. Nós, missionários dos emigrantes, precisamos de mais apoio a nível do discernimento crítico para que a reestruturação interna no Luxemburgo e na Europa que compreende a redução de recursos humanos e financeiros não prive fatalmente as Comunidades Católicas Portuguesas de meios adequados. As MCLP, desde há uma década envolvidas num processo de renovação eclesiológica, inspirado no modelo da “Pastoral Intercomunitária”, esperam ser mais seguidas e acompanhadas pela Igreja em Portugal. Somos um modelo pastoral de acompanhamento espiritual e mediação cultural a reinventar. Com mais razão ainda, num momento epocal de viragem histórica em que o fluxo de Emigração deixou de ser tabu – como o foi nos últimos 25 anos – para voltar a ser uma preocupação nacional.