Igreja/Abusos: Relatório da Comissão Independente exige compromisso para «desocultar» estruturas de poder, manipulação e exploração de crianças

Testemunhos revelam sentimentos de culpa, vergonha e revolta das vítimas

Foto: Lusa

Lisboa, 13 fev 2023 (Ecclesia) – O relatório final da Comissão Independente (CI) para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja em Portugal, divulgado hoje, exige o compromisso dos responsáveis católicos em “desocultar” estruturas de “poder, manipulação e exploração” de menores.

O organismo coordenado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht assinala, no documento entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e divulgado aos jornalistas, em conferência de imprensa, a “resposta ‘clericalista’, até agora predominante, caracterizada por negação, clivagem, projeção e ocultação hierárquica da existência do tema e seu impacto”.

A CI validou 512 testemunhos entre janeiro e outubro de 2022, projetando um número “mínimo” de 4815 vítimas, entre 1950 e o último ano.

Na maioria dos testemunhos (58,5%), as vítimas indicam que sabiam que havia outras crianças ou adolescentes a ser alvo de abusos, sendo que 28,5% declararam que sentiam que eram as únicas vítimas.

O relatório, com cerca de 500 páginas, realça que a apresentação de queixas a membros da Igreja Católica aconteceu apenas em 11,7% dos casos.

“Na maioria dos casos não foi tomada qualquer medida de afastamento do abusador (65,8%), o que a deixa de novo em situação de desamparo e, como já visto, aumenta o risco de o mesmo adulto prosseguir de forma incólume com a sua atividade criminosa”, pode ler-se.

A CI destaca ainda, pela negativa, o facto de, “só em 16,6%” dos casos o abusador ter sido afastado da vítima, lamentando a “inépcia ou negação por parte de membros da hierarquia da Igreja que, em certos casos, haviam sido informados dessas situações”.

“Assistimos a descrições verdadeiramente tocantes sobre o grau maligno de sofrimento infligido a estas pessoas enquanto crianças, claramente agravado pelo contexto em que ocorreram”, indicam os responsáveis.

O documento fala “num silêncio de décadas, em muitos casos até à atualidade”, considerando que “uma atitude clericalista, o desconhecimento ou a desvalorização dos direitos da criança, o fechamento aos olhares de fora” foram fatores que ajudaram à “perpetuação dos abusos” e ao “silenciamento das vítimas”.

Em muitos casos, acrescenta a CI, “foi dada prioridade à defesa da reputação institucional da própria Igreja em detrimento da empatia com a voz, o sofrimento e a credibilidade da vítima”.

“O carácter sistémico dos abusos não pode, porém, generalizar-se a toda a Igreja, pois diz respeito a uma minoria percentual da totalidade dos seus membros”, acrescenta o relatório.

As pessoas abusadoras, membros da Igreja Católica portuguesa ou seus colaboradores diretos, constituem uma franja reduzida de um grande universo em que a esmagadora maioria dos seus membros nunca praticou crimes desta ordem”.

A Comissão nomeada pela CEP admite que, “habitualmente, são as vítimas a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa”.

“O primeiro impedimento à verbalização do ocorrido é devido ao próprio silenciamento que a criança impõe a si própria: sozinha, por forças de coação interna movidas por sentimentos injustos de vergonha, medo e culpa, ou também por forças externas em que pode ser coagida a não falar”, precisa o texto.

Para o organismo, coordenado por Pedro Strecht, “um fator fundamental a esclarecer é a noção de culpa que quase sempre é vivida pela pessoa errada: a vítima”.

O relatório regista “noções de medo, vergonha e culpa tão fortes que podem mesmo funcionar como os maiores desencadeantes do silenciamento”.

A instituição Igreja, através dos seus membros mais sãos, verdadeiramente empáticos, e por isso próximos do outro que sofreu e ainda sofre com este trauma, terá de assumir esse mesmo pedido de desculpa pelos atos criminosos cometidos pelos seus membros que, infelizmente, não terão qualidade nem capacidade psíquica para o fazer”.

Segundo a CI, o que aconteceu neste campo foi “algo de extenso, afetando milhares de crianças”, realçando que “sofrer um abuso sexual na infância ou adolescência, independentemente de outras características que melhor o podem definir, induz sempre um traço de fratura na linha de vida daquele que o sofreu”.

O grupo de trabalho indica que “o perfil dos abusadores é variado”, alertando que, sem “consciência ativa” deste facto, será “sempre extraordinariamente difícil a Igreja prevenir eficazmente a prevenção da ocorrência e continuidade destes atos”.

O documento revela, também, que “os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a ponta do icebergue”.

Ficou cabalmente demonstrado que um número indeterminado de vítimas não reportou os abusos à Igreja Católica; muitas das queixas terão sido tratadas informalmente, não deixando qualquer rasto documental”.

A CI, que hoje encerrou a sua missão, foi constituída por Pedro Strecht (coordenador), Álvaro Laborinho Lúcio, Ana Nunes de Almeida, Catarina Vasconcelos, Daniel Sampaio e Filipa Tavares.

O relatório final realça que o organismo trabalhou com “respeito absoluto pelo seu dever de isenção e independência”, por parte da CEP, “sem nunca ter existido qualquer fonte externa, nomeadamente da própria Igreja, de pressão ou limitação de qualquer dos seus atos”.

A 3 de março, em Fátima, vai decorrer uma Assembleia Plenária extraordinária da CEP, para analisar o relatório.

OC

Proteção de Menores: «Não toleraremos abusos nem abusadores» – D. José Ornelas (c/vídeo)

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Agência ECCLESIA

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