Primeira grande entrevista do pontificado assume «crise», mas rejeita que tema se transforme no «foco central» da vida eclesial

Cidade do Vaticano, 18 set 2025 (Ecclesia) – O Papa assumiu a intenção de prosseguir o caminho deixado por Francisco, no combate aos abusos sexuais, com atenção às vítimas, sem transformar o tema no “foco central” da vida eclesial.
“O Papa Francisco teve uma visão muito boa sobre este tema. Reconheceu a importância do problema mas, ao mesmo tempo, que a questão do abuso sexual não pode tornar-se o foco central da Igreja. A Igreja tem uma missão”, disse em entrevista ao ‘Crux’, portal de informação religiosa dos EUA.
A entrevista à jornalista norte-americana Elise Ann Allen faz parte de uma biografia publicada hoje pela editora ‘Penguin’ no Peru, país onde Leão XIV foi missionário, enquanto religioso agostiniano, e depois bispo, por nomeação de Francisco.
“Conheço pessoas que abandonaram a Igreja devido à dor que sofreram, e a sua escolha deve ser respeitada. Ao mesmo tempo, a Igreja também tem a missão de pregar o Evangelho e, graças a Deus, a grande maioria das pessoas que estão comprometidas com a Igreja — padres, bispos, religiosos — nunca abusaram de ninguém. Portanto, não podemos fazer com que toda a Igreja se concentre exclusivamente neste tema, porque essa não seria uma resposta autêntica ao que o mundo precisa em termos da missão da Igreja”, precisa o pontífice.
Na primeira grande entrevista desde a sua eleição, a 8 de maio, Leão XIV sublinha que esta é uma crise que vai exigir tempo.
“Certamente, existem alguns problemas graves no que diz respeito à proteção de menores e à forma de responder à crise. Considero que esta é uma crise real”, afirma.
As vítimas devem ser tratadas com grande respeito e com a compreensão de que aqueles que sofreram feridas muito profundas por causa dos abusos às vezes carregam essas feridas por toda a vida. Seria ingénuo da minha parte, ou da parte de qualquer pessoa, pensar que [basta] dar-lhes algum tipo de compensação financeira, ou tratar do processo e despedir o padre, como se essas feridas fossem simplesmente desaparecer por isso”.
O Papa defende uma “sensibilidade e uma compaixão autênticas e profundas pelo dor e sofrimento que as pessoas sofreram às mãos dos ministros da Igreja”.
“Esse é um problema que nos acompanha e acredito que deve ser tratado com profundo respeito. Ao mesmo tempo, um dos fatores que complicam isto, e sobre o qual as pessoas começam a manifestar-se cada vez mais, tem a ver com o facto de que os acusados também têm direitos, e muitos deles acreditam que estes não foram respeitados”, acrescentou.
As estatísticas mostram que mais de 90% das pessoas que se apresentam e fazem acusações são vítimas genuínas. Elas dizem a verdade, não estão a inventar. Mas também houve casos comprovados de algum tipo de acusação falsa, padres cujas vidas foram destruídas por isso.”
Leão XIV sublinha que, tanto do ponto de vista civil como canónico, “a lei existe para proteger os direitos de todas as pessoas”.
“Ter, na medida do possível, um sistema de justiça fiável que respeite os direitos de todos leva tempo”, assume.
Admitindo que vários processos demoram “anos e anos”, o Papa recorda que “o facto de a vítima se apresentar e fazer uma acusação e de a acusação ser presumivelmente precisa não elimina a presunção de inocência”.
“Os padres também têm de ser protegidos, ou a pessoa acusada tem de ser protegida, os seus direitos têm de ser respeitados. Mas, por vezes, só o facto de dizer isso causa ainda mais dor às vítimas”, aponta.
Estamos numa espécie de impasse. A Igreja, certamente, tentou criar uma nova legislação que, por um lado, acelerasse o processo e respeitasse especialmente os problemas de que falei antes — as vítimas e a sua dor e o seu direito de que essa dor seja reconhecida em algum tipo de resposta da Igreja —, mas, ao mesmo tempo, respeitasse o acusado.”
Leão XIV admite que, perante as vítimas que tomaram a palavra para falar sobre os abusos que sofreram, “a Igreja nem sempre encontrou a melhor maneira de lidar com isso, de processar isso com elas”.
“Muitos de nós somos, talvez, ainda novatos a aprender qual é a melhor maneira de acompanhar essas pessoas na sua dor. Penso que essa é uma das áreas em que continuamos a precisar da ajuda de profissionais para nos assistir e acompanhar as vítimas”, assume.
O Papa elogia a visão de Francisco, sobre este tema, reforçando a necessidade de acompanhar quem “viu a sua vida profundamente ferida, ou mesmo destruída, pelo abuso sexual”.
“É aí que precisamos de respeitá-los e acompanhá-los. Há muitas outras pessoas na Igreja que têm o direito de ser acompanhadas, no que quer que estejam a viver e a experimentar, e a Igreja também tem de estar com elas. É mais um dos muitos desafios que estou a tentar enfrentar”, conclui.
A conversa – gravada em Castel Gandolfo e na residência do Papa no Palácio do Santo Ofício, do Vaticano – integra o livro biográfico ‘Leão XIV: cidadão do mundo, missionário do século XXI’.
OC
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