Relatório final, apresentado em Lisboa, analisou período relativo a 1950-2022
Lisboa, 13 fev 2023 (Ecclesia) – O relatório final da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, divulgado hoje, validou 512 testemunhos, num total de 564 recebidos, relativos a casos ocorridos entre 1950 e 2022.
O coordenador da CI, Pedro Strecht, disse em conferência de imprensa, na Fundação Calouste Gulbenkian, que estes testemunhos, apresentados ao organismo entre janeiro e outubro do último ano, apontam a uma rede de vítimas “muito mais extensa”, calculada num “número mínimo, absolutamente mínimo, de 4815 vítimas”.
“Não é possível quantificar o número total de crimes”, assumiu o pedopsiquiatra, dado que algumas vítimas foram abusadas várias vezes
A média de idades atual das vítimas é de 52 anos, correspondendo 20,2% da amostra a pessoas com menos de 40 anos.
O pedopsiquiatra assinalou que o número de abusadores, no seio da Igreja, é “baixo”.
“Continua a ser importante não confundir a parte com o todo”, insistiu.
Os testemunhos são de residentes em Portugal e emigrantes, com preponderância de vítimas de sexo masculino (52%); a maior parte assume-se como católico (53%) e há casos em todos os distritos, com destaque para cinco: Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria.
Pedro Strecht falou em “verdadeiras zonas negras”, com particular impacto nas décadas de 1960 a 1990, sendo que quase 25% dos testemunhos diz respeito a casos ocorridos desde 1991 até hoje.
48% das pessoas revelaram esta situação pela primeira vez no contacto com a CI.
Os casos relatados aconteceram, sobretudo, em “seminários, colégios internos e instituições de acolhimento, confessionários, sacristia e casas dos padres”, incluindo, mais recentemente, acampamentos e atividades ao ar livre.
O número total de abusadores não foi revelado, tendo a CI registado que 96% são do sexo masculino e 77% eram padres à data dos atos, com predominância dos “abusos continuados”.
O início dos abusos aconteceu, em média, aos 11 anos de idade dos menores, embora esse número tenha vindo a aumentar.
As vítimas relatam um afastamento da Igreja enquanto instituição e da prática religiosa, esperando um “pedido de desculpa”; 25,8% assume-se como católico praticante.
Pedro Strecht começou por referir que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) “sempre apoiou” este trabalho, agradecendo a todas as vítimas que “ousaram dar voz ao silêncio”.
“São muito mais do que um número ou uma mera estatística”, acentuou.
O relatório, em oito pontos, é visto como o final de uma “longa noite de silêncio”, das vítimas.
“Talvez seja difícil que, a partir de agora, tudo fique igual”, apontou Pedro Strecht.
O organismo, criado pela CEP, foi apresentada publicamente em janeiro de 2022, tendo centrado o seu trabalho na recolha de testemunhos e análise de arquivos históricos de instituições católicas.
A CI é coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht e integra o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos.
Pedro Strecht falou num trabalho feito com “liberdade”, reconhecido como necessário por vários dos testemunhos.
Para o Ministério Público (MP) foram enviados 25 casos foram enviados, no total, devido à prescrição dos casos ou ao anonimato dos testemunhos.
Os alegados abusadores “ainda no ativo” serão identificados, numa listagem a enviar à Igreja Católica e à Justiça, até final de fereveiro, “para a análise que aí se julgar adequada, recomendando, embora, e em ambas as situações, o máximo respeito pelo sigilo desde o início garantido”.
Daniel Sampaio, psiquiatra, defendeu a necessidade de “um estudo a nível nacional”, revelando, após uma análise internacional de 217 estudos, que 18% das meninas são abusadas, percentagem que chega aos 8% no sexo masculino.
O especialista pede uma justiça “célere e eficaz”, destacando que o tratamento dos abusadores exige “psicoterapia intensiva”.
“Não basta um acompanhamento espiritual”, declarou.
Segundo a Procuradoria-Geral da República, em 2019 e 2020, houve 7142 crimes sexuais praticados sobre menores em Portugal.
“A percentagem da sua existência, enquanto praticada por membros da Igreja, é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”, acentuou Pedro Strecht.
Esta tarde, a partir das 16h00, o presidente e os membros do Conselho Permanente da CEP – que acompanharam a apresentação do relatório final – encontram-se com os jornalistas, numa conferência de imprensa a realizar na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.
Na Fundação Calouste Gulbenkian está, entre outros responsáveis católicos, o padre Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores (Santa Sé).
A 3 de março, em Fátima, está prevista a realização de uma assembleia plenária extraordinária da CEP para analisar o relatório da CI.
A Comissão Independente cessa as funções para a qual foi designada pela CEP.
“Chegamos ao fim deste longo e também doloroso trabalho com a sensação de dever cumprido”, afirmou Pedro Strecht, realçando que “a dor da verdade dói, mas só ela liberta”.
“Falem, falem, vamos juntos pela verdade”, concluiu, deixando uma “mensagem de esperança” para as vítimas.
A sessão incluiu a apresentação de um vídeo de homenagem às vítimas de abuso sexual na infância, por membros da Igreja Católica em Portugal, com a pianista Maria João Pires.
OC
Notícia atualizada às 11h45
O estudo inclui “todas as ações e práticas de natureza sexual” que a Lei portuguesa qualifica como crime, com menores de 18 anos de idade.
Álvaro Laborinho Lúcio falou num “dever moral” e “dever cívico” de denúncia, por parte dos responsáveis da Igreja, independentemente da natureza pública dos crimes. O especialista falou das penas e prazos de prescrição, na Lei portuguesa, a qual determina que as vítimas, sendo menores, podem apresentar queixa até perfazer 23 anos. “Esta idade deve ser aumentada”, sustentou Laborinho Lúcio, apresentando como proposta os 30 anos. No Direito Canónico, a prescrição acontece 20 anos após a vítima completar 18 anos de idade, por decisão do Papa Bento XVI. A CI apresentou os critérios da sua abordagem quantitativa e qualitativa, nos inquéritos, bem como os critérios de validação dos testemunhos. “Não se podem fazer quaisquer extrapolações para o universo geral”, sublinhou Filipa Tavares. No decorrer dos 12 meses de trabalho, foram feitas entrevistas a bispos e superiores de institutos religiosos, além da análise dos arquivos históricos, com a consulta de várias séries documentais, com “graus diferentes de confidencialidade”. Para Pedro Strecht, com este estudo, que contou com a validação da Santa Sé, “fez-se história”. Do estudo exploratório dos arquivos da Igreja Católica em Portugal foram relevados “traços documentais”, desde 1950. “A Igreja tem informação, essa informação tem de continuar a ser estudada”, existindo um “desfasamento” entre os testemunho das vítimas e as “provas documentais”, assinalou Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, que coordenou o Grupo de Investigação Histórica da CI. Um caso apresentado sublinhou a necessidade de uma resposta “transnacional”, por parte da Igreja Católica, para enfrentar estes abusos. Ana Nunes de Almeida assinalou, em “contraste” com a intensidade dos testemunhos das vítimas, algum “desconhecimento” e até “alheamento” do topo da hierarquia católica, nas entrevistas realizadas aos bispos portugueses, que decorreram no arranque dos trabalhos da CI. “Houve um momento em que a evidência deste problema se tornou irrefutável”, destacou. Para a responsável da CI, registou-se uma “notável diversidade interna” no seio dos responsáveis diocesanos e das congregações religiosas. “A Igreja não falava, não fala a um só voz”, indicou. Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos, sociólogo, elencaram os principais resultados, que tinham sido adiantados por Pedro Strecht, referindo que a maior parte dos abusos aconteceu entre os 10 e os 14 anos de idade das vítimas e nas décadas de 60 a 80 do século passado (60%). 27,5% dos abusos prolongaram-se durante mais de um ano. A conferência de imprensa contou com a leitura de vários dos testemunhos das vítimas, algumas vezes desvalorizados pelos próprios familiares ou outros responsáveis; a maior parte das vítimas (52%) demorou dez anos a contar o que viveu. 23% dos casos ocorreram em seminários, 18,8% em igrejas, 14,3% em confessionários, 12,9% em casas paroquiais e 6,9% em escolas católicas. A CI registou sete casos em que as vítimas se suicidaram, a partir do testemunho de familiares ou análise à informação divulgada pela imprensa. |