Homilia na Noite de Natal do Patriarca de Lisboa

“A Virgem conceberá…” (Is. 7,14; Mt. 1,23) Homilia na Noite de Natal Sé Patriarcal, 24 de Dezembro de 2007 1. Na noite de Belém, no quadro descrito por Lucas, ressalta a figura de Maria, a mulher Mãe, com toda a ternura que a maternidade desencadeia no coração da mulher, centrada no filho recém-nascido, mas cuja intensidade abraça o mundo. “Envolveu-O em paninhos e deitou-O numa manjedoura”. A modéstia dos meios disponíveis em nada compromete a ternura maternal. Segundo o Evangelista São Mateus (cf. Mt. 1,23), a maternidade de Maria realiza a profecia de Isaías: “A Virgem conceberá e dará à luz um Filho, que chamará Emanuel” (Is. 7,14). Segundo Isaías, este Menino é o sinal, dado a um Rei incrédulo, da salvação de Deus em relação ao Seu Povo. O seu nome, Emanuel, Deus connosco, anuncia a intervenção pessoal e amorosa de Deus na realização da salvação. É por isso que Mateus apresenta como prova da iniciativa criadora de Deus, na maternidade de Maria, o cumprimento desta profecia de Isaías. Segundo São Lucas, o Anjo da anunciação, ao revelar a Maria a sua maternidade, refere a origem e a qualidade divina da criança que vai nascer: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá na sua sombra; é por isso que o Filho será santo e chamar-se-á Filho de Deus” (Lc. 1,35). 2. Há um mistério nesta maternidade: uma virgem é mãe. Os textos bíblicos sugerem-no, a fé subsequente da Igreja confirma-o: trata-se de uma maternidade virginal, expressão, que à luz da realidade humana como a conhecemos, aparece contraditória nos termos. De facto, na ordem normal das coisas, o primeiro dom que a mulher oferece ao seu Filho, na intimidade do amor esponsal, é a sua virgindade. O carácter paradoxal deste mistério, leva uns a negá-lo, interpretando as expressões bíblicas como afirmações simbólicas da beleza daquela maternidade; outros, aceitando o mistério, separam-no da beleza e profundidade do amor conjugal de Maria e José, um casal só a fazer de conta, não tendo nada a ver com aquele Menino que Maria deu à luz em Belém. Nem uma nem outra destas atitudes respeita a profundidade do mistério. A luz que o pode esclarecer, brota da beleza do amor na sua fonte primeira, a comunidade divina, e da verdade profunda da união esponsal do homem e da mulher, que são, no seu amor, a imagem do que Deus é como Deus-amor. Não podemos interiorizar este mistério só a partir de uma visão física da virgindade e da compreensão que dela temos na experiência humana da relação do homem e da mulher. Virginal é, antes de mais, atributo do amor de Deus. Deus é puro amor, totalmente dom. É no encontro mútuo que cada uma das pessoas se encontra, se define e se esgota no acto de amor. Deus não é uma realidade estática; está permanentemente a acontecer na surpresa do amor. O amor virginal de Deus é um amor envolvente, que se expande, criando, e atrai para si, porque encerra o segredo e o sentido da criação. O ser humano é criado com a possibilidade de amar e ser amado; ele foi criado à imagem de Deus. É chamado a participar no amor virginal de Deus e amar o seu próximo em Deus. Segundo a narrativa da criação, é na comunhão homem-mulher que se realiza e exprime esta “imagem de Deus”, esta capacidade de amar como Deus ama: “Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gen. 1,27). O texto do Génesis é rico em detalhes carregados de significado. Só com a criação da mulher o homem atinge a plenitude humana, a sua qualidade de sujeito de amor. Antes da criação da mulher, o ser humano é chamado “Adama”, que quer dizer terráqueo, vindo do pó da terra. Com a criação da mulher, o homem passa a chamar-se “ish”, e à mulher, que ele saúda como “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gén. 2,23) é dado o mesmo nome no feminino, o que permite o autor afirmar que eles não serão dois, mas um só. Em hebraico este nome do ser humano, masculino e feminino, unidos no amor e para o amor, contém as duas primeiras letras do tetragrama divino, do nome de Deus, revelado por Ele próprio a Moisés. Na sua união eles têm algo de divino, participam da realidade de Deus. Como Deus, só se podem reconhecer no amor, são chamados a participar no amor virginal de Deus. Trazem impresso no seu ser o primeiro mandamento da Lei: amar a Deus, amar-se um ao outro. É na força desta união que o homem encontra a sua força e o seu poder: de ser fecundo, de se multiplicar e encher a terra e de dominar sobre todos os seres criados (cf. Gen. 1,28ss). Este mandamento, impresso na sua carne, não se reduz à capacidade de procriar. “Neste texto, a finalidade do amor é o amor: separar-se do seu pai e da sua mãe e ser, com a sua mulher, uma só carne” . Depois da queda, o ser humano volta a ser chamado “Adama”. Quebrada a comunhão de amor entre o homem e a mulher, o homem perdeu a sua capacidade de dominar a criação, que se lhe torna hostil. A salvação futura consistirá na recondução do homem e da mulher à participação no amor de Deus. A vitória sobre o mal será vitória da mulher e da sua descendência. Esta passará a designar-se, não pela sua união ao homem, mas pela sua maternidade. A “Adama” é dito: voltarás a ser terra; a mulher é chamada “Eva”, por ser a mãe de todos os seres vivos (cf. Gén. 3,19-20). 3. É, pois, claro no mistério da criação, que o homem, que é homem e mulher, é chamado a participar no amor virginal de Deus, vocação que o pecado comprometeu. O homem voltou a ser “pó da terra” e a mulher, em vista daquela que há-de ser mãe – a virgem que conceberá e dará à luz um filho – chamar-se-á “Eva”, Mãe. Deus é Espírito; o homem é matéria, elevado à dignidade de amar espiritualmente como Deus ama. Na tradição subsequente, foi-se acentuando a oposição entre a matéria e o espírito, a carne e o espírito, atribuindo à natureza carnal do ser humano o grande obstáculo ao amor virginal, participação no amor de Deus. Mas a possibilidade desse amor virginal continua a ser desejo e promessa. Deus anuncia que desposa Israel e Cristo amará a Igreja como uma esposa. A união esponsal, que supõe a redenção e a vitória sobre o pecado, continua a ser expressão dessa participação, pelos humanos, do amor virginal e esponsal de Deus. São Paulo na segunda leitura desta celebração, referindo-se a Jesus Cristo, diz que a graça de Deus voltou a manifestar-se; ela é vitória sobre a impiedade e os desejos mundanos (cf. Tit. 2,12). A descoberta da possibilidade do amor virginal pelos cristãos, concretiza-se, não na materialidade das núpcias terrenas, mas nas núpcias entre Deus e o Seu Povo, entre Cristo esposo e a Igreja esposa, dando realismo presente aos bens eternos que se esperam. Os cristãos, quando se unem em casamento, fazem-no participando das núpcias de Cristo com a Igreja, desejando, com a força do Espírito, fazer do seu amor participação no amor virginal de Deus, dimensão que só será perfeita e definitiva na eternidade. 4. “E a Virgem conceberá!…”. Que o amor virginal de Deus é fecundo, tinha-no-lo Ele mostrado na criação e em toda a fecundidade da acção do Espírito de Deus no coração dos crentes. Em Maria e José exprime-se o primeiro encontro, anúncio do definitivo, entre a fecundidade do amor virginal de Deus e o amor esponsal do homem e da mulher. Que o amor esponsal de Maria e José era virginal, é claramente sugerido pelos textos evangélicos, que não evitam a humana contradição entre casamento fecundo e virgindade. Maria é apresentada como esposa de José; mas quando lhe é dito que vai ter um filho, responde: “Como será isso, se eu não conheço homem?” (Lc. 1,34). Esta qualidade do seu amor, que parece incluir uma forma futura de se exprimir, dramatiza o choque de José quando se dá conta da gravidez de Maria. Só Deus o pode tranquilizar, revelando mais profundamente a natureza do seu amor virginal, participação no amor virginal e fecundo de Deus. “José, não temas receber Maria como tua esposa porque o que foi gerado nela vem do Espírito Santo” (Mt. 1,20). A Maria o Anjo tinha revelado o segredo da sua fecundidade: “O Espírito Santo virá sobre ti e envolver-te-á com a sua sombra” (Lc. 1,35). O nascimento de Jesus não marginaliza a união esponsal de Maria e José. Pela primeira vez, a fecundidade do amor de Deus pode exprimir-se na fecundidade de um casal, cujo amor é participação no amor virginal de Deus. A “Virgem concebeu”; afinal o amor virginal não impede, nem o amor esponsal, nem a fecundidade maternal. Jesus gosta de chamar a Maria “Isha”, mulher (cf. Jo. 19,26). Na gruta de Belém, a mulher, de novo “Isha”, porque capaz do amor esponsal e virginal definitivo, aparece-nos como “Mãe, “Eva”, “Nova Eva”, porque a sua maternidade anuncia a paternidade de Deus, e abre novos horizontes à fecundidade da mulher, no contexto da redenção, em esponsais misteriosos com o seu próprio Filho Jesus Cristo, o que esmagou a cabeça da serpente e abriu para a humanidade a esperança das núpcias eternas. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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