Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor do arcebispo de Braga

Encontramos neste Evangelho um interessante encerramento do ciclo da vida pública de Jesus. Quando Jesus e Maria foram convidados para as “Bodas de Caná”, Maria deu pela falta de vinho e pediu a intercessão do seu filho. Jesus respondeu-lhe “Que tem isso a ver contigo e comigo? Ainda não chegou a minha hora” (Jo 2,4). Neste momento não sabemos ainda bem a que hora se refere. Seria a hora de manifestar os seus milagres, a hora de anunciar o Reino de Deus ou, porventura, a hora da ressurreição?

Chegados a esta passagem bíblica, o evangelista João fecha o ciclo com um breve apontamento. “Sabendo bem que tinha chegado a sua hora […] levou o seu amor por eles até ao extremo” (Jo 13,2). É, neste momento, claro que se trata da hora da paixão e ressurreição, a hora de passar deste mundo para o Pai.

Gostaria que nos transportássemos por um momento para o lugar de Jesus. Tendo consciência de que os nossos dias estariam perto do ocaso, o que faríamos? Nos últimos anos têm surgido, na comunicação social, alguns testemunhos interessantes. Referem-se sobretudo a situações de cancro terminal. Uns aproveitariam os últimos dias para se casar, outros para fazerem palestras de motivação, outros para viajarem pelo mundo, outros para se preocuparem com o bem-estar e o futuro dos seus descendentes. Em síntese, diante da morte, a maior parte das pessoas procuraria realizar sonhos pessoais ou cuidar do futuro dos seus próximos. O que fez Jesus?. “Amou-os até ao fim” (Jo 13,2).

O que significa neste caso “amar até ao fim”? Pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, amar até à última hora, até ao fim cronológico da sua vida. Não houve um minuto sem que tenha deixado de amar aqueles com quem partilhou a sua vida ou aqueles que lhe foram confiados pelo seu Pai. Em segundo lugar, “até ao fim” diz-nos que amou com todo o seu ser, com todas as suas energias. Amou sem reservas e com tudo aquilo que tinha para dar. Amou até aquele que mais tarde o entregou. É este amor absoluto, no tempo e na forma, que depois se materializa no gesto do lava-pés.

Porque é que Jesus sentiu necessidade de cumprir este antigo ritual de lavar os pés? Um gesto típico de hospitalidade, sobretudo da parte dos escravos para com o seu senhor. Sabemos bem que nem Jesus é escravo nem os apóstolos são senhores. É com o intuito de dar o exemplo que o faz, ou seja, o Mestre quer deixar um legado de esperança que se perpetue mesmo após a sua passagem. É possível e é necessário um modo diferente de estar nada vida. “Dei-vos o exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15), uma vez que “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (Mc 10,45).

O desejo de lavar os pés, no horizonte de Jesus, é um sacramento, como afirmaram os padres da Igreja e como afirmou S. Bernardo quando disse que o lava-pés é um sacramento a par do baptismo e da eucaristia. Há um horizonte a perseguir e a ser replicado como memorial, isto é, colocar-se numa atitude de serviço uns para com os outros (Jo 13,14-15).

Tendo presente que falamos da última hora de Jesus, não consigo deixar de ter presente no coração todas pessoas que se encontram numa situação de saúde delicada, assim como as suas famílias.

Refiro-me, de modo particular, aos pacientes a quem são prestados cuidados continuados e paliativos. Diversas instituições, assim como quem olha com realismo para o fim da vida, têm alertado que o número de unidades de cuidados paliativos e continuados é insuficiente para acolher todos os doentes oncológicos. O número de casos de cancro e de doença crónica tem aumentado, os pedidos de ajuda têm crescido e, infelizmente, as respostas sociais não dão uma resposta cabal a esta nova realidade. Devemos também lembrar-nos dos idosos. Felizmente tem aumentado a esperança média de vida mas, ao mesmo tempo, isso deve ser acompanhado de um esforço acrescido das instituições em dar resposta às fragilidades típicas desta idade. Uma sociedade que se desresponsabiliza de tratar, com competência e ternura, os seus irmãos é uma sociedade desumana.

Creio, ao mesmo tempo, que tão importante quanto tratar o corpo é tratar da saúde espiritual e anímica destes irmãos. Tive oportunidade, há tempos, de ler o testemunho de uma experiente enfermeira que trabalhou vários anos nos cuidados paliativos. Acompanhava as pessoas nas últimas 12 semanas da sua vida, isto é, aquelas pessoas que viam chegar a sua hora. Desta experiência nasceu um livro que sintetiza “os cinco grandes arrependimentos na hora de partir”. São testemunhos de pessoas que fazem um exame de consciência no leito de morte e pedem que outros não cometam os mesmos erros. E nada podendo fazer para alterar o rumo da sua vida, sentem remorsos.

O primeiro arrependimento é “gostaria de ter tido a coragem de viver fiel a mim mesmo, e não a vida que outros esperavam de mim”. Este é o problema de não sermos autênticos, de vivermos segundo as expectativas dos outros e de nos conformarmos à realidade como se ela fosse uma fatalidade. Somos, neste sentido, apenas e só um produto do ambiente. Quando outros pensam por nós, deixamos de pensar por nós mesmos. Pode ser um projecto familiar, um trabalho, um sonho ou até, quem sabe, uma vocação.

O segundo arrependimento é “gostaria de não ter trabalhado tanto”. Aquilo que começa por ser uma justa preocupação, rapidamente pode tornar-se numa armadilha: garantir um futuro melhor para os filhos, garantir uma reforma, melhorar as condições de vida ou até comprar isto ou aquilo que tanto se deseja. É uma armadilha porque ao invés de trabalharmos para viver bem, vivemos para trabalhar. Como é óbvio, isto traz consequências a nível pessoal, familiar e espiritual. Muitas pessoas morrem amarguradas porque, tendo idealizado um futuro risonho, têm consciência de terem vivido sufocadas pelo trabalho e, inclusive, acabam por morrer sozinhas.

O terceiro arrependimento é “gostaria de ter tido a coragem de expressar os meus sentimentos”. Para muitas pessoas, expressar emoções é sinal de fraqueza. Na verdade, os sentimentos são o motor das relações interpessoais. Quantas vezes não se diz o que se sente e se vive amargurado? Teremos desaprendido a gramática dos afectos?

O quarto arrependimento é “gostaria de ter mantido o contacto com os meus amigos”. Esta é uma realidade tão comum quanto desvalorizada. Temos sempre, ao longo dos dias, tantas prioridades, ocupações e justificações válidas para não estarmos com os amigos e familiares. Mas, uma vez mais, será esse o objectivo de uma vida plena, de felicidade e de entrega aos outros? As amizades não são um acessório da vida. Tal como nas famílias, também elas precisam de ser alimentadas, precisam de tempo e de empenho pessoal.

Por fim, o último é “gostaria de me ter permitido ser mais feliz”. Este é o objectivo derradeiro de todas as pessoas: ser feliz. Talvez por medo, por ocupações exageradas, por condicionamentos externos ou até por uma certa dose de egocentrismo várias pessoas nunca o chegam a ser. Imaginemo-nos chegados ao fim da nossa vida. O que gostaríamos de ter realizado que não fizemos?

Chegados a este ponto, a actualidade do gesto do lava-pés parece-nos mais clara. Servirmos o mundo de toalha à cintura significa gastar a vida pelos outros e, concretamente, o compromisso de humanizar a “última hora” de quem se encontra em cuidados continuados ou paliativos. Nenhum esforço, humano ou económico, é inútil neste sector. Pelo contrário, é uma necessidade imperiosa. Mas, infelizmente, continuamos a assistir a opções ideológicas e economicistas que olham para as pessoas como meros números. Daí que hoje, neste dia do mandato do amor, tenha querido prestar homenagem e gratidão a todos quantos cuidam dos idosos e doentes terminais. Quis, simbolicamente, lavar os pés a doze trabalhadores de algumas Instituições Particulares de Solidariedade Social ligadas à Igreja de Braga. Neles, o obrigado da Arquidiocese a tantos curadores anónimos, no mundo das instituições ou famílias. Que nunca se cansem e que procurem amar até ao fim.

Peço a Deus que a toalha à cintura e o compromisso cristão traga um pouco de luz e de esperança aos pacientes e profissionais dos cuidados continuados e paliativos. Peço-Lhe também que o amor e a presença cristã não permita que ninguém morra amargurado, sem o carinho e amor que merecem somente por serem seres humanos. Que a toalha à cintura simbolize a vida de todos os cristãos

D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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Agência ECCLESIA

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