Homilia na missa exequial de D. João Alves, bispo emérito de Coimbra

Toda a vida dos discípulos do Senhor é uma caminhada em direção a Emaús. Por meio das Escrituras narradas, explicadas e rezadas vai-se acende-se a luz da fé e entra-se em maior profundidade no mistério de Deus que nos envolve. Por meio da Fração do Pão, sente-se arder o coração, mesmo que não se compreenda tudo, abrem-se os olhos para o encontro com o Senhor Ressuscitado e reconhece-se a sua presença no meio de nós.

A fé dos Apóstolos, recebida como dom de Deus, mas também construída como resposta na intimidade do encontro e da relação com a Palavra e a Eucaristia, é sempre marcada pelo solene anúncio da sua ressurreição, tal como concluía o texto do Evangelho que escutámos.

D. João Alves concluiu esse caminho em direção a Emaús, pois chegou ao encontro definitivo com o Senhor Ressuscitado, que durante a vida terrena acolheu por meio da explicação das Escrituras, por meio da fé profunda e comprometida, que o levou ao conhecimento de Jesus Cristo, a andar com ele todos os caminhos da vida e a fazer-se seu servo. Entrou na sua intimidade aquele que, com o Senhor, partiu inúmeras vezes o Pão, se sentou à mesa da Palavra e da Eucaristia para delas fazer o alimento quotidiano, e testemunhou com palavras e com ações a grande notícia de que o Senhor Ressuscitou.

A caminhada cristã iniciada no batismo e vivida nos longos anos de amizade com Cristo, tanto no exercício do ministério de presbítero como do ministério episcopal, chegou agora ao seu termo terreno. Depois da contemplação da glória de Deus na terra, chegou o momento da contemplação da glória de Deus no Céu, a primeira ainda parcial e imperfeita, alimentada pela fé, a segunda já como visão beatífica pela qual se desfazem todos os mistérios e se entra na comunhão eterna para a qual fomos criados.

Damos graças a Deus por este seu discípulo, seu amigo e sua testemunha, D. João Alves, que entregou a sua vida ao serviço do Senhor Jesus Cristo, da sua Igreja e de todos aqueles que foram destinatários da sua ação, de um modo particular a Diocese de Coimbra. Aquilo que somos hoje enquanto porção do Povo de Deus deve-se também à sua fé, à sua dedicação e à sua fidelidade a uma vocação acolhida com amor e vivida com muita generosidade.

 

O texto do Evangelho de S. Lucas oferecia hoje à nossa reflexão alguns pontos importantes, tanto para a nossa vida de pastores como para a vida de todo o cristão, uns e outros chamados a incarnar a mensagem que brota da vida de Jesus.

Na caminhada em direção a Emaús Jesus aproximou-se dos seus discípulos e pôs-se com eles a caminho. Esta é a forma de agir de Jesus na relação com cada um de nós, com os seus irmãos e com o seu povo. Ele começa sempre por tomar a iniciativa de se aproximar de nós. Na incarnação veio ao nosso encontro, tornou-se um de nós, com o único desejo de manifestar o amor do Pai, de nos amar e de realizar a grande obra do amor de Deus, que é a nossa salvação. A cruz e a morte aproximaram-no ainda mais de nós, pois nelas assumiu de modo real toda a nossa fraqueza e miséria. Pela ressurreição aproximou-se de todo o seu Povo para o elevar à glória do Pai.

Somente pondo-se a caminho connosco, partilhando a nossa vida e amizade entra no mais íntimo de cada um de nós; aí se dá a conhecer, aí nos cativa e aí nos conquista livremente para o amor do Pai.

Cada um de nós, cristãos leigos, consagrados ou pastores, é chamado, em primeiro lugar, a deixar-se alcançar pelo Senhor, que vem ao nosso encontro, se aproxima e caminha connosco, quer quando já o reconhecemos quer enquanto ainda se não abriram os olhos e pensamos caminhar sozinhos. Quem teve a graça de acreditar no Senhor e de sentir a sua presença constante nos momentos bons e maus da vida, encontrou verdadeiramente um tesouro ao qual nada se pode comparar.

Cada um de nós que entrou nessa intimidade, caríssimos irmãos, é chamado a dar continuidade a essa atitude de Cristo, como condição imprescindível para realizar a missão que recebeu. Não há apóstolo, nem discípulo ou testemunha, que não esteja disponível para se aproximar dos outros, para ir ao seu encontro e para fazer caminho com eles, no reconhecimento daquilo que eles são, das suas apreensões, alegrias e tristezas, grandezas e fragilidades.

No desejo de atualizar para a Igreja de hoje as atitudes evangélicas de Jesus Cristo, o Concílio Vaticano II ajudou-nos a dar este passo de gigante: aproximou a Igreja do mundo, pô-la a caminhar com o mundo, revelou-lhe o rosto divino nos rostos humanos, tal como nos recordou de forma lapidar a Gaudium et Spes “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1). Tanto a Igreja enquanto instituição animada pelo Espírito Santo de Deus, como cada um dos seus membros ou cada uma das suas pequenas comunidades sente bem vivo este apelo a sair, a ir ao encontro, a caminhar com as pessoas e com a humanidade, simplesmente para lhe possibilitar esse encontro ardente com o Mestre, com o Ressuscitado.

Por sua vez, o Senhor fez-nos compreender que temos acesso ao conhecimento de Deus por meio das Escrituras lidas, explicadas e rezadas: “Depois, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito”.

O amor pelas Sagradas Escrituras lidas e interpretadas à luz da fé e da razão foi também promovido pelo Concílio Vaticano II, concretamente na Dei Verbum, que diz: “o sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil. 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (S. Jerónimo, Comm. in Is. Prol.: PL 24, 17) (DV 25).

Temos um grande caminho a fazer para nos aproximarmos do Deus, que se revela pelas Escrituras e para conhecer Jesus Cristo, de quem todas elas falam: o Antigo Testamento no sentido de profecia; o Novo Testamento na perspetiva da realização.

O texto do Evangelho concluía mostrando como o Senhor se tornou acessível aos seus discípulos por meio da Fração do Pão, por meio da Eucaristia, o Pão para matar a fome de todos e o Vinho que sacia todos os que procuram o Senhor de coração aberto à conversão e ao amor.

A Igreja não cessa de abrir-nos as portas para o encontro com Cristo, especialmente por meio do sacramento da Eucaristia, o sacramento que alimenta toda a vida de Deus em nós e pelo qual partilhamos já a comunhão com Ele. Também neste aspeto o Concílio nos abriu as portas a uma participação mais viva na imensa riqueza de Cristo que se oferece ao Pai no altar da cruz e se dá aos homens no altar da Eucaristia em que podem tomar parte. O uso das diferentes línguas faladas pelos diversos povos, a pluralidade dos ministérios e serviços, tanto laicais como ordenados, a presença ativa de todos por meio da leitura e da escuta, das palavras e dos silêncios, dos gestos e dos sinais, do canto e da recitação, da partilha e da entrega, exprimem uma Igreja, Povo de Deus, onde cada um põe ao serviço dos outros o que é e o que tem para edificação comum.

Os Onze e os que estavam com eles, anunciavam que o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão. No fundo, toda a comunidade cristã, animada pela fé, se sentiu enviada e protagonista da missão de evangelizar centrada no mistério pascal de Jesus Cristo. O Concílio reavivou na Igreja esta consciência de que a missão cabe a todos os cristãos e que cada um tem a sua parte de responsabilidade na construção do Corpo, de acordo com o dom da vocação que recebeu.

Estas perspetivas que ressaltam do testo do Evangelho de Lucas e postas em evidência pelo Concílio Vaticano II, constituíram pontos fortes do pensamento, da ação e da vida de D. João Alves. Plenamente imbuído da letra e do espírito do Concílio Vaticano II, fez dele a magna carta da sua ação pastoral e procurou pôr em prática as suas intuições fundamentais: procurou abrir a Igreja e levá-la ao encontro do mundo e ao diálogo com o mundo; incentivou o regresso ao Evangelho posto ao alcance de toda a Igreja; levou à descoberta da Eucaristia, como lugar de construção da Igreja e sinal visível da unidade da comunidade cristã ao único Senhor e Salvador; trabalhou por uma Igreja, verdadeiro Povo de Deus, tanto nas afirmações teológicas e doutrinais como no efetivo assumir da corresponsabilidade por parte de todos os seus membros.

No desejo de construir a Igreja no tempo que nos é dado, todos nós, comunidade diocesana, procuremos ser fiéis à linha de continuidade de que somos herdeiros e que teve um ponto alto na reflexão e na ação de D. João Alves, que teve a graça de colher e transmitir à Diocese o dinamismo renovador do Concílio Vaticano II.

Pedimos ao Senhor que nos ajude a prosseguir no caminho de construção de uma Igreja bem enraizada na fé e nas Escrituras, disponível para ir ao encontro de todos os homens e mulheres do nosso tempo e para caminhar com eles em todas as situações. Pedimos ao Senhor que faça de nós uma Igreja viva em todos os seus membros, onde todos têm o seu lugar e sentem a alegria de viver e testemunhar a fé.

Que Maria acompanhe e proteja esta Igreja Diocesana de Coimbra na fidelidade a Cristo e aos caminhos novos que o Espírito Santo em cada tempo nos faz descobrir. Ámen.

Sé Nova de Coimbra, 29 de junho de 2013

D. Virgílio do Nascimento Antunes, bispo de Coimbra

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