Homilia na Missa Crismal 2021 de D. Jorge Ortiga

Ser padre com coração

Muitos de nós, sacerdotes, recordámo-nos o quanto a devoção a São José era alimentada na nossa formação. O dia 19 de Março era de festa, com eucaristia e sessão solene. Com ele aprendíamos a ser padres.

O Papa Francisco, por ocasião do 150º aniversário da declaração de São José como padroeiro Universal da Igreja, ofereceu-nos uma Carta Apostólica a que deu o nome de “Patris Corde”, Com coração de Pai. O objectivo era claro: “aumentar o amor por este grande Santo, para nos sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos a suas virtudes e o seu desvelo”.

Porque trabalhamos por uma Igreja sinodal e samaritana, caminhando juntos e oferecendo as nossas mãos para cuidar do próximo, gostaria de colocar o nosso serviço sacerdotal em diálogo com o que o Papa sublinha.

Com ele e como ele, todos nós somos “Pai”, padre, e precisamos de interpretar e de reconhecer que não se trata de uma simples palavra usada pela tradição, como poderiam ter sido outras. Possui uma inequívoca densidade de conteúdo que dispensa grandes atributos. Bastaria que parássemos aqui. A alegria e a responsabilidade de ser pai na Igreja perante um contexto tão conturbado.

Padre significa fidelidade à vocação, de modo contínuo, sem parênteses nem interrupções. No ser padre tudo é importante. Adicionar-lhe o coração especifica o modo de servir e viver o ministério. Com coração de pai, de Padre, mostra o caminho a percorrer. O ministério é exigente. Necessita da nossa inteligência, investida com tudo o que temos, e não de um modo parcial. O sacerdócio, para ser útil e compreendido, necessita de ser exercido com coração. Não é suficiente o funcionalismo, talvez diversamente organizado e modernizado, com tudo minuciosamente considerado. Não basta um estatuto a defender com atitudes mais ou menos clericais. Nem ser funcionário competente e aberto a todas as formas de modernidade, tal como um espírito clericalista que defende o passado.

Hoje, o sacerdócio, à imagem de São José, deve ser exercido com o coração, no sentido da compaixão: proximidade, dedicação, capacidade de se deixar comover pelos dramas e dores, ternura, carinho, solicitude, presença, e também no modo de o viver com paixão, sentido de entre-ajuda, generosidade, gratuidade, ir até às últimas consequências, sempre com alegria. Um coração que não deve ser de pedra mas de carne.

O coração de pai tem diversos atributos. Enumerá-los mostra a vontade de um sacerdócio à imagem de São José. José ofereceu ternura com todas as atitudes e palavras que poderemos imaginar. Há, ou pode haver, um estilo pastoral marcado pela superioridade e autoridade. Importa descer ao nível da pessoa e expressar gestos de afectividade e compreensão. Não somos juízes de ninguém e necessitamos de entrar meigamente nas feridas. A solicitude é sempre eterna e as palavras devem oferecer estímulo e nunca provocar afastamentos. Não precisamos de grandes coisas. Os pequenos gestos falam muito quando estão carregados de amor. Custa um pouco mas valem muito. A ternura aprende-se e o Deus em que acreditamos é um “Deus de ternura que é bom para com todos e a Sua ternura repassa todas as Suas obras” (Sl 145,9). E a ternura “é a melhor forma para tocar o que há de frágil em nós”. “Deus não nos condena, mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos, perdoa-nos”. Sabemos que Deus “pode intervir inclusive através dos nossos medos, das nossas fragilidades, da nossa fraqueza. E ensina-nos que, no meio das tempestades da vida, não devemos ter medo de deixar a Deus o leme da nossa barca. Por vezes, queremos controlar tudo, mas o olhar dele vê sempre mais longe”.

Como nunca, num tempo em que a vulnerabilidade nos afecta, temos necessidade de tocar a ternura de Deus para a oferecermos a todos, particularmente aos doentes e idosos. O coração assinala a lógica do acolhimento e este exige dois comportamentos muito concretos. Caminhando com os outros, teremos de os saber acolher, na variedade das situações, nunca excluindo ninguém, mas atendendo com coração aberto. Todos e tudo tem espaço num coração sacerdotal que não se fecha a ninguém. Não há bilhetes de acesso com condições para entrar. O horário é todo o tempo. O preço é a gratuidade e a alegria de celebrar encontros fraternos na amizade de irmãos.

Mas acolher tem outro significado. Importa acolher a “vida como ela é, aceitando até mesmo as suas contradições, imprevistos e desilusões”. Não há derrotas antecipadas. “Deus pode fazer brotar flores no meio das rochas” e é sempre tempo de recomeçar. Por vezes parece um milagre. Teremos de ouvir sempre “não tenhais medo”. Nunca podemos fugir à realidade que é sempre “portadora de um sentido da existência com luzes e sonhos”. Mas a realidade terá de ser acolhida com um realismo cristão que nos assegura “que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28). E Santo Agostinho acrescenta “incluindo aquilo que é chamado mal”.

Precisamos de acolher a vida. No seu realismo nu e cru. Gostaríamos de outros cenários e previsões. Nunca nos podemos resignar mas a tudo teremos de oferecer um “protagonismo corajoso e forte”. Os resultados não são imediatos. Estando dentro dos problemas, nunca virando as costas e permitindo que a resposta surja da fé teremos a serenidade de José para quem a vida nunca foi fácil.

Damos um passo em frente para afirmar que teremos de ser um pai trabalhador. O trabalho, no ministério sacerdotal, não é uma questão laboral. Entregues, por escolha em adesão a um chamamento, à causa do Reino sabemos que Deus Pai trabalha dia e noite e sabemos que a missão é para todas as horas. Necessitamos de descanso bem organizado para corresponder melhor ao que nos é solicitado. Nunca tivemos nem nunca teremos horário de trabalho. Temos orgulho de ser colaboradores de Deus na tarefa de recriar a Humanidade. Não podemos regatear energias. Tudo o que temos e somos é colocado em jogo para o bem da comunidade. Trabalhar por amor não cansa, embora tenhamos sempre a responsabilidade de cuidar do dom da saúde. São José trabalhou com Jesus. O trabalho do sacerdote já foi muito solitário. Cada um na sua paróquia. Hoje terá de ser sempre com outros, sacerdotes e leigos. Estes não são meros executores de ordens. Enriquecemo-nos com eles e a Igreja será sempre um projecto comum. Se pensarmos que devemos ser um pai trabalhador, saberemos também entregar a vida ao serviço do Reino.

Trabalhar com paixão e alegria já é muito significativo na economia do Reino. Teremos de trabalhar com coragem criativa. As poucas passagens onde São José é referido nos Evangelhos mostram como ele nem sempre se encontra na situação de repetir o que sabia e sempre fez. Belém e Egipto foram lugares de muitas interrogações. Imagino Maria e José a discernirem juntos, num diálogo confiante e uma grande dose de confiança para arriscar. Os caminhos não eram claros. Surgiu a coragem de quem acreditava e ousava descobrir caminhos novos nos quais nunca tinham pensado. As noites foram longas mas acreditaram na aurora, não de um modo passivo mas investindo tudo o que tinham. Foram muitos os momentos de trabalho a dois. Os caminhos não estavam traçados. Acreditaram e deram tudo o que tinham. Mais do que nunca, a missão do padre é a missão de um pai com coragem criativa. Não sabemos o amanhã da Igreja. São muitos os inimigos, à descoberta ou camufladamente. Se assim quisermos investir, Deus encontrará sempre a forma de realizar a salvação que Ele quer oferecer ao mundo. Não temos manuais ou GPS a determinar o caminho a seguir. É preciso muita persistência e resiliência. Não é trabalho de alguns. Toca-nos o agora e só com muita coragem criativa seremos fiéis à nossa vocação e missão.

Damos mais um passo em frente para mostrar o nosso coração de pai na obediência. Não se trata só de aderir a verdades e determinações. Seria muito mais fácil se tudo estivesse determinado. Bastaria ir cumprindo. E como é importante esta atitude de aderir ao superiormente determinado! Não nos ficaria mal se quotidianamente verificássemos qual é a bússola do nosso ser e agir. Talvez nem sempre nos encontremos a percorrer os caminhos da Igreja. Não precisaremos de mais obediência, interpretada no sentido clássico? O itinerário está traçado nos documentos eclesiais, mas o aventureirismo continua a ser a grande atracção. Preferimos linhas paralelas e de descobertas pessoais, quando deveríamos apreciar o lado a lado, com metas previamente definidas, acrescentando mais valia com as nossas qualidades e talentos. Só juntos e fiéis tornamos o testemunho eloquente e credível. A autorreferencialidade não constrói.

Falando de São José, o Papa Francisco explicita que ele foi o homem que quis cumprir a vontade de Deus, num permanente fiat como Maria, nem sempre compreendendo o que poderia vir a acontecer. Deus foi manifestando o caminho através de sonhos. O Papa fala de quatro sonhos exemplificando com passagens evangélicas. José, sendo o homem do concreto, foi o homem dos sonhos. Não das utopias abstratas mas daquilo que comanda a vida lhe abre horizontes. Também nós precisamos de sonhos. Saber que a luz, terna e suave, nos quer levar mais longe, a destinos remotos e impensáveis. O caminho não está percorrido. Há muita novidade a esperar por nós e o amanhã será, inevitavelmente, melhor do que o hoje, mesmo que tenhamos de passar por desertos ou ultrapassar tempestades. A vontade de mais e melhor deve ser a nossa companhia diária. Ter uma certa insatisfação que desinstala e abre oportunidades e alegrias impensadas. Saiu, há dias, uma entrevista biográfica do Papa Francisco, intitulada “sonhamos juntos”. O caminho para um futuro melhor. É aqui que nos devemos situar. Juntos acontecerá o melhor para nós, como seres humanos e como sacerdotes da Igreja que amamos.

Aproximamo-nos do fim e sentimos que devemos ser um pai na sombra. Pode parecer custoso. Temos tantos modelos de homens e mulheres, santos e não só, que deixaram rastos na história da Humanidade permanecendo na sombra, não querendo nem procurando, mesmo que inadvertidamente, andar nas primeiras páginas. É fácil querer colher depois de ter semeado, esperar por recompensas humanas ou espirituais. Sem dúvida que é humano o reconhecimento. Só que, interiormente, deve haver muita pobreza. Começamos a não ser considerados. No passado, ainda recente, talvez a motivar os nossos comportamentos, ser Abade ou Reitor era compensador. Havia sempre alguma coisa que alimentava o ego. Perdemos o estatuto, e a alegria está no que vamos exercendo com dedicação e humildade. “Todos podem encontrar em São José – o homem que passa desapercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e um guia nos momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, tem um protagonismo sem paralelo na história da salvação”.

Se fomos descortinando, durante esta reflexão de Quinta-feira, oportunidades para rever e renovar as nossas promessas sacerdotais, ser um pai na sombra ajuda a recentralizar o dom da castidade. “A felicidade de José não se situa na lógica do sacrifício de si mesmo, mas na lógica do dão de si mesmo”. “Nunca se colocou a si mesmo no centro; soube descentralizar-se, colocou Maria e Jesus no centro da sua vida”.

A nossa vocação celibatária deve chegar à maturação do dom de si, mesmo nunca ficando apenas na lógica do sacrifício. Se não chegarmos a esta experiência nunca experimentaremos “a beleza e a alegria” do amor para ficar só na “tristeza, infelicidade e frustração”.

“O mundo precisa de pais, rejeita os dominadores, isto é, rejeita quem quer usar a posse do outro para preencher o seu próprio vazio; rejeita aqueles que confundem autoridade com autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com destruição”.

Este ano, dedicado a São José, deixei uma mensagem para que sejamos capazes de dar à palavra “Padre” todo o significado que encerra. É ternura, acolhimento, trabalho, coragem criativa, obediência, vida na sombra. Percorrendo estes degraus, chegamos a uma síntese: somos pais amados. Amados por Deus, que repousará sobre cada um a Sua paternidade benevolente, misericordiosa, sensível. Um pai de alegria, concórdia, realização, festa. Uma experiência de casa onde se saboreia o amor nos dias sombrios ou de sol, nas noites estreladas ou de temporal. Um recanto de carícias no mundo que tudo promete e dá muito pouco.

Amados por Deus, seremos, também, amados pelo povo que sabe reconhecer o dom da vida, gasta por ele em experiências que nem sempre parecem encontrar recompensa humana. O povo apercebe-se daquilo que nos movimenta. Não corresponde a interesses pessoais mas sacrifícios perante actos de generosidade. Sentimo-lo sempre mas, sobretudo, nos nossos funerais. Aí há muita tristeza pela perda mas também alegria pelo bem que foram recebendo. Talvez os grandes não nos considerem e reconheçam. Os pobres e os abandonados sabem-no mostrar, se a vida foi para eles ou não.

Como São José, um pai amado por Jesus e Maria, mas também pelo povo cristão. Nunca seremos esquecidos pelo cuidado prestado ao próximo.

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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Agência ECCLESIA

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