Fátima, 14 de novembro de 2020
Irmãos e irmãs,
A pandemia que está a condicionar todo o planeta coloca-nos diante da evidência do dom precioso que é a vida humana e de todas as capacidades de que somos capazes para a defender, mas igualmente da fragilidade do nosso ser individual, das nossas realizações sociais, políticas, económicas e científicas, bem como do próprio mundo que habitamos. De certo modo, entrou em paralise quando isto chegou.
Celebrar diante de Deus aqueles que partiram como vítimas diretas e indiretas da pandemia significa reconhecê-los não apenas como números de uma estatística, mas como criaturas amadas de Deus, abrindo-se a um itinerário de vida que vai para além daquilo que conhecemos e podemos nesta terra.
Com aqueles e aquelas que nos deixaram, recordamos também quantos os acompanharam de mais perto na derradeira etapa da vida, a maior parte deles nos hospitais e nos lares, mas muitos no isolamento das suas casas: os profissionais da saúde, os investigadores, os cuidadores e colaboradores de tantas profissões e os que assumem a responsabilidade de organizar todo este esforço.
A sua dedicação, esforço, inteligência e abnegação são a expressão do apreço da nossa sociedade pela vida e de quanto está disposta a investir para defendê-la e apoiá-la, embora, tantas vezes, não seja coerente com esses objetivos.
Além disso, a crise tem-nos mostrado que o sofrimento e a morte não podem ser confinados e que só juntos podemos construir um mundo aceitável para todos, em que nos cuidemos mutuamente. Assim como a dimensão do sofrimento e da morte são universais, assim também deve ser a defesa e o cuidado dela.
Quem dera que sejamos capazes, como país e como humanidade, de manter esta hierarquia de valores, de proximidade e verdadeira misericórdia para com a fragilidade, tantas vezes dramática, da nossa condição humana e do planeta que habitamos.
Se aprendermos desta epidemia a cuidar uns dos outros e juntos deste mundo, teremos feito justiça e boa memória dos que partiram e dos esforços de quantos os acompanharam na última etapa da vida nesta terra.
No entanto, mesmo envidando todos os esforços, chegamos sempre à conclusão de que eles são limitados e, a um certo ponto, param, não podem ir mais além. Aceitar que a vida das pessoas e do planeta é sempre delicada e finita é uma lição desta crise que vivemos. Aceitar e integrar esta finitude num projeto de vida com sentido é a mensagem que nos trazem as leituras que acabámos de proclamar nesta Eucaristia.
A primeira leitura, tirada do livro de Job, certamente uma das obras-primas da tradição literária da humanidade, traz-nos o grito, não de um filosófico distante, mas da dura e dramática realidade de um homem justo e de sucesso, subitamente atingido por uma série de desgraças, vítima finalmente, depois de ver destruída e destroçada a sua família e os seus bens, de uma doença destrutiva que o isola e diante da perspetiva inevitável da morte. É bem a imagem de tantos homens e mulheres nestes últimos meses, mas sempre, de uma forma ou de outra, de toda a natureza humana.
Embora reconheça que não é perfeito, Job não aceita a ideia de que as suas desgraças são um castigo de Deus, com sugerem os que o observam e julgam, apontando o dedo, mas nunca estendendo a mão amiga. Não teoriza a dor nem a injustiça, mas sente-as dramaticamente na carne. O seu grito ecoa por toda a humanidade e por todos os tempos, como aflição, como protesto, como rebeldia, e finalmente como paradoxal confiança: “Eu sei que o meu redentor vive e, por último, sobre o pó se elevará. Mesmo que desfeita seja a minha pele, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos o hão de contemplar e não como um estranho”.
O seu grito é, ao mesmo tempo de protesto pela situação aflitiva em que se encontra, de perplexidade, de incompreensão de si próprio e de Deus, mas igualmente de proclamação de uma confiança que nem ele sabe como exprimir, mas apenas gritar na sua dor. É como o grito de uma criança que nem sabe a razão por que chora, chora porque sabe que a mãe ouve. É esse grito de toda a humanidade, que não se conforma nem resigna, mas que se esforça por cuidar e amparar a vida em todos os seus momentos, e por encontrar sentido na luta por superar todas as crises que vai experimentando. Esse é Job.
Até ao fim da existência, Job não é um resignado, mas um lutador, não é um acomodado, um iludido com falsas esperanças, nem acomodado a soluções e explicações fáceis, mas um peregrino da verdade, da justiça, da vida. Esta é bem a imagem digna da humanidade que sonhamos.
Por outro lado, ele percebe que a vida é um dom absoluto e não apenas uma conquista: ninguém paga o bilhete de entrada nem a viagem de saída. Tudo é um milagre do cuidar e do amparar. Nascemos e sobrevivemos pela ação de outros que cuidaram de nós, porque senão não seríamos viáveis; foram eles que nos acompanharam no desabrochar da nossa vida. Ao sentir a proximidade de concluir o percurso existencial, Job percebe que o que se segue já não pode ser o resultado do engenho, nem sequer do carinho humano. Por isso, grita, argumenta e pede a Deus que faça jus ao seu nome de “justo e misericordioso” e se revele como Criador e Cuidador da sua fragilidade.
Esta é a dupla mensagem que Job nos deixa: investigar, procurar, interrogar-se, cuidar; e, ao mesmo tempo, confiar e abrir-se a um mundo onde só pode ser conduzido pela mão poderosa e carinhosa de Deus.
É isso também que nos dizem as irmãs de Lázaro, de que nos fala a leitura do Evangelho. É um texto todo ele simbólico, mas muito real, da situação de cada um e cada uma de nós. Estas irmãs têm consciência que a vida é o dom primeiro e fundamental de Deus. Sabem também que Deus se manifestou amigo e próximo em Jesus, amigo de família, que tinham convidado para casa, que tantas vezes tinha partilhado com eles o pão de cada dia. Quando o irmão adoeceu, tinham-lhe mandado dizer: “Lázaro, aquele de quem tu és amigo está doente”. Não dizem simplesmente “o teu amigo”, dizem “aquele de quem tu és amigo” está doente. Por isso, quando Jesus chega, três dias depois da morte de Lázaro, exclamam, em tom de luto, que não está isento de uma confiança ferida e de crítica velada: “Se tivesses estado aqui, o nosso irmão não teria morrido”. Quantas pessoas não têm tido esta experiência nestes dias, à beira de um túmulo dos seus queridos? Por que é que Deus, que o amava, não atuou? Por que é que se mantém silencioso e parece à distância?
Diante da dor das irmãs e da evidência do amigo morto, diz o evangelista que Jesus “se comoveu profundamente” e em seguida chorou. Essa é a expressão de Jesus, um como nós, que passou pelas nossas dores, as nossas perplexidades, que grita ao Pai, até, “por que me abandonaste?”. Esse é o sentir de Jesus perante o sofrimento e a morte. Ele sabe, por experiência própria, o que é o sofrimento e a morte; ama esta família amiga (que somos nós todos), cujo irmão morreu, e partilha o nosso luto, a nossa dor e as nossas lágrimas, como fez ao longo de toda a sua vida, com os doentes, os excluídos, os pecadores. Porque era um homem sensível, sentiu a fome da multidão; porque sabia o que era a dor, aproximava-se dos feridos, dos doentes; porque era alguém que via e sentia o sentido da vida, aproximava-se daqueles que não tinham esperança.
Mas não veio apenas para chorar e partilhar a nossa morte; veio para abrir as portas dessa prisão e grita, diz o evangelista, “profundamente perturbado”, diante do túmulo que, em breve, ele próprio também experimentará: “Retirem a pedra”, retirem o obstáculo desse túmulo que causa horror, separação e rejeição como dizem as irmãs: “Já cheira mal, é já o quarto dia”. É essa porta, diz Jesus, é essa pedra que é preciso arrancar. À voz de Jesus, o morto sai vivo, mas o que a família vê – o que nós vemos e nos causa perturbação – é ainda um morto, envolto nas ligaduras, que são esse modo humano de encerrar os defuntos na prisão subterrânea da morte.
Mas Jesus não vê assim os seus amigos que passaram desta vida. Por isso, dá outra indicação fundamental para esta família amiga: “Desatem essas ligaduras! Deixem-no ir!”. Não teimem em ver aqueles que já partiram simplesmente com o vosso sentir, o vosso saber e o vosso poder. Deus é maior, mais poderoso e carinhoso do que vós. Aquilo que sentis, uns pelos outros, é só o reflexo de quanto Deus vos ama. Vós já não controlais o caminho dos vossos queridos que partiram; eles estão nas mãos do Pai do céu. Cuidastes deles até aqui, mas o amor do Pai é maior do que o vosso e cuida deles por caminhos novos e transformados. Deixai-os ir em paz! Conservai a memória deles com carinho, continuai o bem que eles fizeram; sede misericordiosos com as suas faltas e limites e limpai da vossa mente os litígios e feridas que vos ficaram, pois é assim que Deus faz com eles e convosco.
Hoje, no meio da pandemia, celebrando a memória daqueles que partiram, Jesus vem visitar as nossas famílias feridas pela saudade – particularmente aqueles que hoje choram os seus entes queridos – e, em muitos casos, estão sob o peso de não terem podido dar-lhes a presença e a assistência que desejavam; tolhidas pelo luto que não puderam fazer e que ainda dói. Como em casa da família de Lázaro, Ele que passou pela morte e está vivo para sempre, vem trazer-nos o conforto da sua presença amiga e abrir os nossos olhos e os nossos ouvidos para a grandeza do poder e do amor do Senhor, Criador e Pai do céu. Penso que Ele continua a sugerir ao nosso coração:
“Vinde a mim todos vós que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei” (Mt 11,28).
Vinde, vós que experimentais a dor e a doença, nos hospitais, nos lares ou nas famílias,
Vós que assistis os doentes até à exaustão e ao desânimo e que sois as minhas mãos para levantar, cuidar e acarinhar.
Vós que não suportais mais confinamentos e limitações, e sentis desejo de irrefreável de liberdade, companhia e festa.
Aprendei de mim a cuidar uns dos outros com responsabilidade, competência e generosidade.
Sede portadores de vida e de bem e procurai não transmitir o mal a ninguém, mas ajudai quem precisa e partilhai com aqueles que não têm.
Conservai a memória dos vossos queridos com quem partilhastes a vida.
Eu partilho e enxugo as lágrimas da vossa saudade, pois o Pai do céu é que cuida deles com mão forte, fiel e misericordiosa.
Não vivais angustiados com a vossa vida e o vosso futuro, Eu estarei sempre convosco, mesmo quando vos sentirdes sós e abandonados.
Tende confiança e cuidai uns dos outros e vencereis esta crise como construtores de um mundo mais justo, fraterno e em paz. E sereis peregrinos de uma Nova Cidade e um Mundo Novo, onde vos preparo o banquete da vida que não tem fim.
Amen.
D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa