«Na cruz, Deus não desistiu de nós»
- Hoje, a Igreja cala-se. Não proclama, contempla. Hoje, a Palavra fez-se silêncio e o Verbo calou-se na cruz. Mas nesse silêncio de dor, escutamos a palavra mais profunda que Deus nos podia dizer: o Seu amor fiel até ao fim. Contemplamos Cristo suspenso entre o céu e a terra. O seu Rosto, sempre radiante de beleza, agora sangra, mas sangue de vida doada; o seu Corpo, tão vigoroso e desenvolto, agora treme de dor, numa louca compaixão pelos pecadores; a sua voz, outrora clara e cristalina, agora é débil e silenciosa pelo mistério incomensurável onde mergulha; os seus lábios, que mostravam a água-viva da eternidade, agora estão feridos e ressequidos na desmedida comunhão com a humanidade. A Cruz sustenta-O, porque Ele sustém todas as cruzes da vida. A cruz, instrumento de suplício, torna-se trono de salvação.
A morte, aparente derrota, torna-se início de uma vida nova. E, por isso, nesta hora escura, resplandece uma luz: a da esperança que não morre.
A cruz não é o fim, é o cumprimento do Amor. E é aqui, precisamente aqui, no alto do Calvário, que se revela a vitória da obediência de Jesus ao Pai, e da fidelidade de Deus ao Filho amado. Essa fidelidade que é rocha firme em que podemos construir a nossa vida.
- A obediência de Cristo é esperança do mundo. São Paulo dirá que Jesus, «que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio […]. Humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz» (cf. Fl 2,6-8). No Getsémani, Jesus luta, chora, vacila. Mas entrega-Se: «Faça-se a tua vontade» (cf. Mt 26, 42). A obediência de Cristo não é submissão cega, mas confiança plena e radical no Pai. E por isso é fonte de esperança, porque Ele passou pelo sofrimento sem ceder à revolta, passou pela cruz sem renegar o amor.
A esperança cristã nasce deste sim de Jesus. Porque Ele obedeceu, nós podemos confiar. Porque Ele não fugiu, nós sabemos que não estamos sós no sofrimento.
- Na cruz, muitos viram fracasso. Mas quem tem olhos de fé, vê cumprimento: as promessas de Deus não falharam, apenas foram além do que podíamos imaginar. Deus não libertou Jesus da cruz – libertou a humanidade n’Ele, através da cruz. E assim revelou o Seu amor inabalável pelos homens. Na cruz, Deus não nos poupa à dor, mas promete que a dor não terá a última palavra.
A cruz é o sinal definitivo de que Deus não abandona os seus filhos, mesmo no mais profundo sofrimento. E é esta fidelidade que sustenta a nossa esperança, mesmo quando tudo à volta parece ruir. Não podemos deixar de afirmar: é na fidelidade de Deus que se fundamenta a nossa esperança. Por isso, voltemos para Deus. N’Ele, cada pessoa individualmente ou em grupo, as famílias, os bairros, as aldeias e as cidades e toda a sociedade podem encontrar o fundamento para a labuta diária. Sem Deus, tudo é pequeno demais, pouco demais, mesquinho demais. Só o amor expresso na Cruz do Senhor oferece razões de viver.
- Hoje veneramos a cruz. Tocamo-la, beijamo-la, ajoelhamo-nos diante dela. Não por gosto no sofrimento, mas porque nela está a nossa salvação. A cruz ensina-nos a não fugir da dor, mas a enfrentá-la com fé. Ensina-nos que só o amor verdadeiro salva. Que perdoar é possível. Que recomeçar é possível. Que a fidelidade é possível, mesmo no meio das desilusões e das injustiças.
Nesta Sexta-feira Santa, cada um de nós traz consigo as suas cruzes: a dor de uma perda, o cansaço de um caminho, a solidão de um silêncio, a vergonha de um pecado. Estão aqui também as dores da humanidade: das vítimas do ódio, da violência e das guerras, que mancham de sangue e luto todo o mundo. Mas hoje, olhando para o Crucificado, sabemos: não estamos sozinhos.
- Queridos irmãos, a esperança cristã nasce na cruz. Não numa vitória exterior, mas numa fidelidade interior. Não numa fuga da morte, mas numa vida entregue. Cristo venceu, não saindo da cruz, mas permanecendo nela por amor. E é esse amor fiel, radical, gratuito, que nos salva. A Paixão do Senhor é a Sabedoria da cruz; a Paixão do Senhor é a nossa glória na eternidade.
Hoje, a Igreja cala-se. Mas o silêncio não é vazio: é gestação de uma palavra nova. A esperança está viva. Ainda não a vemos plenamente, mas sabemos que a aurora vem para abraçar um novo dia.
Amanhã, aguardaremos em silêncio. Mas já com os olhos voltados para o túmulo vazio, junto a Maria, Mulher da Esperança, aquela que nunca perdeu ou deixou morrer a fé, permanecendo junto à cruz do seu Filho. Porque Aquele que passou pela morte é o Vivente. E quem acredita n’Ele nunca está perdido. A cruz é a nossa esperança. Porque nela, Deus não desistiu de nós. Ámen.
+Rui, Patriarca de Lisboa
Sé Patriarcal, 18 de abril de 2025