“Anunciamos, Senhor, a Vossa Morte” 1. Em cada celebração eucarística, logo a seguir à consagração do pão e do vinho, que se transformam no Corpo e Sangue do Senhor, a assembleia que celebra exclama: “anunciamos, Senhor a Vossa morte” (Oração Eucarística), afirmando a relação entre a Eucaristia e a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Neste Ano da Eucaristia, neste dia em que a Igreja não celebra a Eucaristia, e se prostra em adoração da Cruz, meditemos neste mistério insondável da nossa fé, a relação inseparável entre o altar e a cruz. Aliás, na Liturgia da Igreja, o crucifixo é o único sinal não eucarístico que ocupa, obrigatoriamente, um lugar central na celebração. Na simbólica eucarística, devido à importância do símbolo do banquete como sinal sacramental, relacionamos a Eucaristia mais com a Última Ceia, onde ela é instituída, do que com o Calvário. Mas porque a Ceia antecipa o sacrifício da Cruz, como entrega da vida humana de Jesus para nossa redenção, a Eucaristia é o sacramento que torna presente na Igreja, tanto a Última Ceia, como o Calvário. Diz a Encíclica “Ecclesia de Eucharistia”: “A Missa torna presente o sacrifício da Cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, a «exposição memorial», de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da Cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário” . A Eucaristia torna-nos protagonistas do drama do Calvário. As palavras do Senhor, este pão é o Meu corpo entregue por vós, ou que é para vós, como diz Paulo, são realmente concretizadas de forma cruenta, na morte de Cristo. Elas tornam-se vivas em nós quando comungamos o pão eucarístico, recebendo em nós esse Corpo do Senhor que Ele entregou por nós. É como se uma multidão de amigos, crentes e fiéis, estivessem com Maria aos pés da Cruz e recebessem, com ela, no seu regaço, o corpo do Senhor, morto por causa de nós. Na intensidade do nosso coração, a Eucaristia pode ganhar a densidade dramática do sacrifício da Cruz. Citemos, ainda, a Encíclica do Santo Padre João Paulo II: “Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual” . 2. Devido a este realismo sacrificial da Eucaristia, nela a Igreja participa nos sentimentos mais profundos de Jesus Cristo, no momento da sua morte. E o principal é o seu amor a Deus, seu Pai, na intimidade do amor trinitário. O Senhor tinha afirmado, referindo-se à sua morte: Se o Pai me ama, é porque Eu Lhe dou a minha vida, para voltar a recebê-la d’Ele (cf. Jo. 10,17). E aos fariseus Ele diz: “Quando levantardes o Filho do Homem, então sabereis que Eu Sou e que não faço nada por mim mesmo, mas falo como o Pai Me ensinou” (Jo. 8,28). Jesus revela-nos a Sua consciência íntima: a morte na Cruz é um acto de amor ao Pai, é a mais radical expressão, na sua humanidade, do seu amor trinitário, como Verbo eterno de Deus. O Senhor convida-nos a partilhar essa intimidade de amor, tanto celebrando a Eucaristia, como adorando a sua Cruz. Também a adoração da Cruz nos introduz nessa insondável comunhão de amor, onde continuaremos a ser redimidos. Da Eucaristia, enquanto sacramento da Cruz, brota o dinamismo fundamental da nossa fé: a atracção de Deus. Foi o próprio Jesus quem o disse: “ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (Jo. 6,44). Mas essa atracção de Deus Pai, que nos levará a Jesus e à comunhão com Ele, sentimo-la contemplando a Cruz do Senhor ou vivendo-a na Eucaristia, “e Eu, elevado da terra, atrairei todos a Mim” (Jo. 12,32). Estas palavras de Jesus são uma referência clara à sua crucifixão. Noutra altura Ele disse: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim o Filho do Homem tem de ser levantado, para que todo aquele que acreditar tenha a vida eterna” (Jo. 3,14). Jesus confirma que aquela serpente de bronze levantada por Moisés no acampamento e que livrava da mordedura das serpentes aqueles que a contemplassem, anunciava a sua elevação na Cruz. A serpente tinha sido o símbolo do tentador, na queda original dos nossos primeiros pais. A verdadeira mordedura da serpente é o pecado. Quem contemplar a Cruz de Cristo, sente-se atraído por Deus e liberta-se da mordedura da serpente. Aliás, estava anunciado que o descendente da mulher lhe esmagaria a cabeça. Maria, a nova Eva, corporiza a anunciada inimizade entre a mulher e a serpente, e o seu descendente, o “fruto bendito do seu ventre”, lhe esmagará a cabeça. A luta entre a serpente e a humanidade, entre o demónio e Deus, trava-se na Cruz e quem sai vitoriosa é a humanidade redimida, que volta a deixar-se atrair por Deus. O drama do Calvário é grande demais, ali se jogou o nosso destino, é inevitável e necessário que continuemos a ser protagonistas desse drama. 3. E somo-lo em cada Eucaristia que celebramos. O próprio Senhor fez uma aproximação entre a sua morte e a Ceia, referindo-se à morte como sendo o cálice que tinha de beber. Ouvimos há pouco, na narração da Paixão, Jesus dizer a Pedro: “Não hei-de beber o cálice que o Pai meu deu?” (Jo. 18,11). O Senhor sabe que a sua morte tem a ver com a celebração pascal, assume-se como o Cordeiro sem mancha do sacrifício e entrega-se à morte como quem bebe a taça da Ceia Pascal; Ele sabe que aquela taça é o cálice do seu sangue derramado por todos nós. Porque somos protagonistas do mesmo drama e comensais da mesma Ceia, somos chamados a beber do mesmo cálice. Jesus tinha-o anunciado a Tiago e João, filhos de Zebedeu: “Podeis beber o cálice que Eu vou beber?”. E à sua resposta afirmativa, porventura inconsciente, Jesus confirma: “Sim, vós bebereis do meu cálice” (Mt. 20,22-23). Esta é a experiência de cada Eucaristia, que nós descobrimos, sempre de novo, contemplando o Senhor na sua Cruz: Ele distribui-nos o seu cálice, que contém a sua morte oferecida por amor e diz-nos: tomai e bebei dele vós todos, porque é o cálice do Meu sangue. E é difícil beber o sangue de Cristo derramado por amor, sem oferecermos o nosso próprio sangue, oferecido por amor. A Eucaristia e a Cruz são a denúncia de todas as sabedorias deste mundo, que apresentam a vida como uma experiência agradável, a sorver rapidamente. Aí, toma-se a vida na sua exigência mais profunda, e na dramaticidade fundamental, em que a alegria é uma promessa que brota, quase sempre, da densidade do sofrimento oferecido por amor. Às diversas sabedorias do nosso tempo, que apresentam visões facilitantes da vida e da felicidade, a única resposta continua a ser a sabedoria da Cruz, como já escrevia Paulo aos Coríntios: frente às diversas sabedorias, ele prega um Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que foram chamados, Ele é potência de Deus e sabedoria de Deus (cf. 1Cor. 1,23-24). Por isso o Apóstolo confessa aos Coríntios: “Não, entre vós, não quis saber nada senão Jesus Cristo e Cristo crucificado” (1Cor. 2,2). 4. Contemplemos e adoremos a Cruz do Senhor. Ela é, hoje, na Liturgia, um sacramento de “presença real” da Paixão de Cristo, o cálice do seu sangue que Ele próprio bebeu e que amanhã, partilhando connosco a sua ressurreição, voltará a estender-nos, dizendo: tomai e bebei vós também. Preparemos na adoração da Cruz a maneira nova de celebrar a Eucaristia, nesta Páscoa. Adorando a Cruz do Senhor, ganhará realismo a tal visão silenciosa e densa da nossa vida, que se juntará ao sangue do cálice de Cristo. Na Cruz, do lado trespassado do Senhor morto, São João viu sair sangue e água; do olhar sereno de Maria, a Mãe dolorosa, brota a serenidade da esperança. A luz da Páscoa que, na nossa fé, nos revela como protagonistas da nossa redenção, brilha já, com a densidade do sofrimento, daquele Calvário silencioso onde tudo foi consumado. Sé Patriarcal, 25 de Março de 2005