Homilia do Domingo de Ramos do Cardeal-Patriarca de Lisboa

“A actualidade da realeza de Cristo” 1. A Liturgia deste Domingo, com que iniciamos a celebração anual da Páscoa cristã, é claramente a proclamação da realeza de Cristo. A sua primeira expressão é a aclamação messiânica: Jesus de Nazaré é o Messias esperado. Como sabemos, ao longo da história do Povo do Antigo Testamento, foram surgindo várias interpretações desse Messias, esperado como libertador do Povo, que fundamentaram perspectivas histórico-políticas, correntes de espiritualidade, relação entre o presente histórico de Israel e a dimensão escatológica do Povo da Aliança definitiva. Para o messianismo oficial, o Messias é o Rei Justo, descendente de David. Esta perspectiva real foi muito adulterada pelas visões políticas de cada circunstância. Ele seria o libertador político do Povo oprimido pelas potências estrangeiras e, vencidos os inimigos do Povo, inauguraria o reinado definitivo de Israel. Para Isaías, é o Servo sofredor, que carrega sobre Si os pecados de todo o Povo. A libertação que trará é espiritual, será o triunfo da justiça. Depois do exílio da Babilónia, talvez fruto da experiência do cativeiro que afastou o Povo do Templo, relativizando muitas práticas religiosas, surge uma visão escatológica do Messias. Ele virá no fim dos tempos, aparecerá sobre as nuvens do Céu como uma figura celeste, um “Filho do Homem”, reunirá os justos, o “resto fiel” de Israel e inaugurará o Reino escatológico. Jesus não rejeitou nenhuma destas compreensões do Messias, sabe que cada uma delas exprime uma dimensão do verdadeiro Messias, e aplica-as todas a Si, à sua missão messiânica. Se todas elas encerravam um aspecto de verdade, se Ele era verdadeiramente o Messias, só podia assumi-las a todas, mostrando com a sua Pessoa e com a sua missão que todas elas se completavam e se corrigiam mutuamente. Muitas vezes, durante a sua vida pública, pareceu rejeitar a aplicação a Si mesmo da tradição do messianismo real, na descendência de David. Na entrada triunfal em Jerusalém assume-o claramente. O jumento como montada, é a denúncia do triunfalismo do messianismo político, que se afirmava aparatosamente na força dos cavalos e dos carros de guerra, preparados para a batalha. Perante Pilatos, Jesus assume que é o Rei dos Judeus, mas corrige, mais uma vez, o messianismo real na sua visão política: “O Meu Reino não é deste mundo”. São Paulo, na Carta aos Filipenses, assume claramente a visão messiânica do Servo sofredor, oferecendo a sua humilhação e a sua morte como resgate dos pecados da multidão. Ao assumir esta visão messiânica, Paulo, fariseu de formação, mostra-nos mais uma vez a profundidade da sua conversão. O texto da Carta aos Filipenses tem de ser lido à luz da profecia de Isaías. Esta visão messiânica Jesus assume-a, durante o seu processo, não por palavras, mas na radicalidade do seu dom. Mas tinha-o feito, por palavras, na sua vida pública: o Filho do Homem veio para servir e dar a vida como resgate da multidão. A tradição escatológica do Filho do Homem parece ser a visão messiânica preferida por Jesus. Perante a pergunta do Sumo Sacerdote: “És tu o Messias, o Filho de Deus bendito? Jesus respondeu: Sou, e vós vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo Poderoso e vindo entre as nuvens do Céu”. Para Paulo esta dimensão gloriosa e triunfal do Messias, é a exaltação do Servo, como prémio da sua fidelidade e obediência. “Por isso Deus O exaltou e lhe deu o nome que está acima de todos os nomes. Para que todos, ao nome de Jesus, se ajoelhem nos Céus, na terra, e nos infernos. E toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fil. 2,10-11). Esta Senhoria de Cristo é a verdadeira afirmação da Sua realeza; a glória do Messias, Filho do Homem, é o triunfo da ressurreição, recompensa do Pai à fidelidade do Servo. Na Sua última vinda inaugurará o Reino definitivo, aparecendo sobre as nuvens do Céu, como um Filho do Homem glorioso. 2. A actualidade da realeza de Cristo consiste na plenitude da sua ressurreição gloriosa. Verdadeiramente a sua realeza não se manifesta segundo os critérios do mundo. Só é afirmada na intimidade dos corações que O adoram e vivem d’Ele, pelo dom do Espírito. A santidade é a mais autêntica afirmação da realeza de Cristo. Este é, para a Igreja, o maior desafio para a sua maneira de estar no mundo. Esta realeza de Cristo exprime-se e afirma-se na Igreja, na sua Palavra, no testemunho do amor, no anúncio do Reinado definitivo de Cristo. Se ela cair na tentação de transformar a sua influência num poder deste mundo, imita mais os fariseus do que a obediência humilde do Servo. Mas se continua a ser verdade que o Reino de Cristo não é deste mundo, isto é, não se identifica com os critérios do mundo, políticos, económicos, sociais, ele exprime-se já neste mundo, no concreto de cada sociedade, em cada tempo. Abre aos que procuram construir um mundo mais justo, mais pacífico, mais digno do homem, critérios profundos de verdade e de exigência. Os critérios do Reino de Cristo denunciam todas as mentiras, todos os egoísmos, todas as formas de violência; convidam-nos a não pormos o coração só nas coisas materiais e na sua fruição, mas a abri-lo às realidades do alto, a alargar o horizonte da esperança. A Igreja não se identifica com a sociedade, mas pertence à sociedade, introduzindo nela o desafio da verdade, da generosidade, da comunhão fraterna, da referência de todas as coisas a Deus, nosso Criador e Senhor. A Igreja, em nome de Cristo, é sempre proposta e denúncia. Ela é atenção criteriosa para discernir as sementes do Reino, isto é, dinamismos de verdade e de justiça que existem na sociedade e que precisam de ser cultivados e protegidos para se tornarem em valores dinâmicos, sinais de esperança no mundo em que vivemos. 3. Todas as lutas justas do homem por um mundo melhor, são um direito do homem, protagonista da sua história, constituem a sua dignidade, mas precisam de contar com a ajuda do alto, com esse outro Senhor e Rei em quem acreditamos e que deseja, ainda mais do que nós, o desenvolvimento qualitativo da humanidade. A nossa cidade é, há cinquenta anos, abraçada pela imagem de Cristo-Rei que elevado sobre ela, a abençoa. Há 50 anos, elevou-se esse monumento em acção de graças por uma graça pedida: o poupar Portugal aos horrores da guerra. Cinquenta anos depois Ele continua lá, bem visível, a abraçar a cidade, sinal de esperança para todos os que sabem que construir uma cidade digna do homem é fruto do esforço humano e da protecção divina. Cinquenta anos depois, na celebração deste Jubileu, todos somos convidados a responder a uma pergunta: que significa hoje para a cidade de Lisboa e para toda a sociedade saber que Cristo a abençoa, que todos, crentes e descrentes, são beneficiários desse amor solícito de Cristo, nosso Senhor e Rei. Não separemos a fé da vida, ainda que esta não siga, necessariamente, os critérios da fé. Esta efeméride porá a todos nós a questão da actualidade da realeza de Cristo. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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