Homilia do Domingo de Páscoa do Bispo do Porto

DOMINGO DE PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR Sé do Porto, 8 de Abril de 2007, 11 horas Amados irmãos e irmãs, tudo quanto celebrámos chegou ao fim, ao ponto ómega que Cristo nos ganhou (cf. Ap 1, 8), com a sua vitória sobre a morte, o “ultimo inimigo a ser destruído” (1 Cor 15, 26). Celebramos hoje a vitória de Cristo, celebramos em esperança a nossa vitória com ele, a conseguir dia a dia, na graça pascal que nos foi dada. Morrer para o pecado, renascer para a vida plena e infinda, esta a celebração do eterno hoje, do “Domingo que não tem ocaso”. Era o princípio deste dia, madrugada ainda. Madalena vai ao sepulcro e encontra a pedra rolada. Corre a chamar Pedro, que se precipita, ele e o “discípulo predilecto de Jesus”. Chega este mais depressa, vê as ligaduras no chão, deixa Pedro entrar primeiro. Lá estavam as ligaduras e também o sudário que cobrira a cabeça de Jesus, enrolado à parte… Porquê a insistência do evangelista neste ponto? Responde um exegeta: “É que as ligaduras e o lençol estavam espalmados no chão da pedra tumular, ao passo que o lenço que o Senhor tivera em volta da cabeça não estava espalmado no chão, mas mantinha a forma da cabeça que envolvera. Ou seja, Jesus saíra, ressuscitado, ninguém o tinha desembrulhado” (Nova Bíblia dos Capuchinhos). Fosse como fosse, a perplexidade continuava. Até que entrou o outro discípulo. E este “viu e acreditou”. – E porque viu, porque acreditou? Viu pela urgência, acreditou pelo amor. Connosco, irmãos e irmãs, não será doutra maneira. Veremos pela urgência e acreditaremos pelo amor. O Senhor ressuscitado é maior do que o mundo, mas torna-se presente em cada local e momento, para os que querem mesmo vê-lo e lhe divisam a figura. É o mesmo que falar de urgência e de amor, da urgência e do amor, como aconteceu com o “discípulo predilecto”, que todos havemos de ser. É recorrente a alusão bíblica e a tradição espiritual. Não nos lembramos, porventura, de como a mística cristã tanto se inspirou no Cântico dos Cânticos, para nos transmitir tal sentimento e o seu triunfo? Como diz a esposa pela Igreja que somos, adivinhando o esposo, que para nós é Cristo, Cristo ressuscitado: “A voz do meu amado! Ei-lo que chega, correndo pelos montes, saltando sobre as colinas. […] O meu amado é para mim e eu para ele, ele é o pastor entre os lírios, até que rebente o dia e as sombras desapareçam” (Cant 2, 8.16-17). Ou ainda. “Eu dormia, mas de coração desperto. Chamam! É a voz do meu amado, batendo à porta” (Cant 4, 2). E, finalmente, nos versículos porventura mais glosados pela tradição mística, com a voz da Igreja e da alma crente, na união com Cristo ressuscitado sempre: “Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor. […] Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor, nem as torrentes o podem submergir” (Cant 8, 6-7). É a linguagem da poesia, decerto. Mas para o nosso encontro com o Deus vivo, para a nossa experiência da ressurreição de Cristo, outra, mais prosaica não chegaria. Nós somos os “discípulos predilectos” de Cristo, que por isso mesmo o enxergamos mais depressa, como só a urgência do amor consegue. Não só por nós, mas para dizermos aos outros que ele está vivo e consigo nos vivifica a todos, fazendo-nos também vencer a morte. Quando clamamos hoje “Cristo ressuscitou! Aleluia!”, não soltamos meramente um brado jubiloso, transmitimos isso sim a substância do Evangelho, para os que sabem e para os que desconhecem. A urgência e o amor, que levaram o “discípulo predilecto” a chegar mais depressa ao sepulcro vazio e a descortinar jucundo o significado daqueles sinais da ressurreição, são apenas a nossa parte dum caminho mútuo, cujo impulso, aliás, tem em Deus o seu princípio e fim, como nos ensina Cristo: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair; e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia” (Jo 6, 44). Por isso nos exorta Tiago, num versículo de oiro: “Aproximai-vos de Deus e Ele aproximar-se-á de vós” (Tg 4, 8). E por isso nos fala Cristo ressuscitado com igual clareza, num passo do Apocalipse, não menos doirado: “Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cerarei com ele e ele comigo”. Sendo esta ceia a participação na sua vitória sobre a morte, continua: “Ao que vencer, farei que se sente comigo no meu trono, assim como Eu venci e estou sentado com meu Pai, no seu trono” (Ap 4). Tanto assim é, tão verdadeiro sempre, que quem mais ama mais divisa, que pouco depois o mesmo Evangelho de João nos narra como no lago, onde os discípulos nada tinham pescado por si e pescado muito por Cristo, foi o mesmo a reconhecer na margem a presença e a voz do Ressuscitado: “Então, o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: ‘É o Senhor!’ (Jo 21, 7). Amados irmãos e irmãs, nós todos que agora iniciamos cinquenta dias especialmente pascais, que conclusões tiraremos de quanto vai aqui dito e lembrado, como resultado do que a Semana Santa nos deixou? Direi três coisas, outras tantas consequências, espirituais e apostólicas. Mais intimidade com Cristo, mais reconhecimento da sua presença, mais atenção aos outros, quais suas figuras. Mais intimidade com Cristo, pela oração, pela meditação da sua palavra, pela prática sacramental. Passa necessariamente pelo profundo acolhimento e certa guarda de quanto Cristo nos disse, comunicando-nos não meras ideias, mas a própria convivência divina: “Se alguém me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14, 23). – Que podemos ambicionar mais, irmãos e irmãs, do que a própria vida divina? E que “fácil” se torna alcançá-la, pela guarda da palavra de Cristo! Porque esperamos, retendo-nos na conversa ociosa que tantas vezes mantemos connosco e com os outros, e nos adia ou distrai… Lembremos antes a declaração de Paulo aos Colossenses, absolutamente pascal: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória” (Cl 3, 3-4). Mais intimidade com Cristo ressuscitado, pela intensa vida sacramental. Nele fomos baptizados, para apenas dele vivermos agora, sempre e cada vez mais. Como está igualmente prometido e disponível da sua parte, com grande e total realismo: “Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo. […] Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia” (Jo 6, 51.54). Tempo pascal, tempo de redobrado reconhecimento de Cristo. Assim se despede Jesus, no termo do Evangelho de São Mateus, para afinal ficar ainda mais connosco, na sua presença ressuscitada: “E sabei que Eu estarei convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28, 20). – Quanta atenção não nos há-de suscitar esta promessa! Como não disporemos de algum tempo, dia a dia, para vivermos intensamente esta presença, diante de algum sacrário, fazendo mais recolhimento… E como desperdiçar a luz, a força, a graça, que tal atenção nos daria… Tempo pascal, tempo ainda e sempre de atenção aos outros, sinais de Cristo no mundo. Porque devemos gravar fortemente, na consciência e no coração, que o Ressuscitado nos espera nos irmãos e que, por cada atenção nossa, se abre mais a porta do Reino que nos aguarda. Queira Deus – e, de facto, não quer Deus outra coisa! – que então se estabeleça com cada um de nós este diálogo: “Então, os justos vão responder-lhe [a Cristo Rei]: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando ter vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes’” (Mt 25, 37-40). Por tudo isto e finalmente, reconheçamos que o Ressuscitado está connosco para sempre. Mas que o seu reconhecimento requer da nossa parte urgência e amor, que se aproximem da urgência e do amor com que quis vir ao nosso encontro e morrer por nós. E que a união com ele, que nos vai ressuscitando desde já, se activa pela palavra e pelos sacramentos, e se concretiza e garante pelo amor a todos de quantos verdadeiramente nos aproximamos, dia a dia, caso a caso. Esta é a Páscoa, que os cinquenta dias que começamos apenas inaugurarão! + Manuel Clemente

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