Homilia do Dia de Natal do Bispo do Porto

Sinais do Natal de Cristo na história das sociedades contemporâneas, impossíveis de esconder NATAL 2007 Amados irmãos e irmãs, no presépio de Cristo e da vida: Ouvimos o Evangelho, saboreemos a boa notícia: “O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade”, Habitou entre nós, o Verbo de Deus: com tudo o que este “entre nós” significava então e significa hoje, na interioridade de cada um, como na vida das famílias e em todas as articulações da sociabilidade humana. Aí mesmo, onde se cruzam “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os aflitos” (Gaudium et spes, nº 1). A comunicação social traz-nos a toda a hora farta medida de tudo isto, com que devemos alargar o cenário do perene presépio de Cristo. E muitas outras alegrias e tristezas lá estarão também, talvez as mais certas e profundas, que, por isso mesmo, são arredias à exposição e à notícia. Também lá estavam e lá estão, nesse “entre nós” que o Verbo faz seu. No coração de Deus cabemos todos e a sua misericórdia encontra-nos mesmo no que ainda não sabemos de nós próprios… Mas deixai-me dizer: a esta luz do Natal custa reparar em quem não repara nela. Reparar certamente em nós, os cristãos, quando nem a acolhemos nem a reflectimos bastante. E reparar também em como se reeditam críticas genéricas à religião e ao seu lugar na sociedade e na cultura, como se ela se opusesse à marcha da humanidade, em termos de racionalidade e libertação. Como se a afirmação de um Deus criador, fonte permanente do ser e da vida, contrariasse a mesma humanidade no seu desenvolvimento e progresso, próprios e livres. Como se a fé num Deus único, garantia e apelo duma humanidade por isso mesmo única e comum, fosse causa certa de fanatismos e guerras. Como se esta mesma fé ofuscasse um mundo mágico, em que a imaginação se espraiasse mais… Custa reparar… Porque, quer histórica quer cultural e civilizacionalmente, foi exactamente a incarnação do Verbo que trouxe à humanidade e à história toda a solidez da origem e toda a responsabilidade pelo fim. Agora sim, a criação recupera o seu escopo numa humanidade perfeita, como a realizada em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, potenciação infinita de tudo quanto originalmente nos foi prometido, por participação no próprio Espírito de Deus criador. Na verdade, “foi da sua plenitude que todos nós recebemos graça sobre graça”. Custa reparar que ainda não apareça suficientemente clara e convincente a verdade natalícia de que é “entre nós” e não de fora que Deus se exprime e entrega, como no menino do presépio, feito homem de todas as dores na cruz, para ser agora vida das nossas vidas, realizando todas as esperanças. O Cristianismo – muito para além de todas as contrafacções históricas que tenha sofrido, ou da lenta assimilação da sua verdade pelos crentes que fomos e somos – liberta a própria religião do que nela haja de menos humano, porque traz a cada um de nós a certeza da realidade divina. E é exactamente por ser Cristianismo que respeita a realidade humana e natural, como campo próprio de responsabilidade e escolha, investigação e compromisso. – Alguma vez se dissera antes que Deus podia ser menino pobre e fugitivo, jovem aprendiz e carpinteiro, homem entre os homens, comprometido até ao fim na caridade e na justiça, morrendo mesmo por elas? – Alguma vez se admitira poder estar Deus no mundo, com tanto respeito e activação da “autonomia das realidades temporais” (cf. Gaudium et spes, nº 36)? – Alguma vez se respeitara tanto a criação e os seus dinamismos, ao ponto de lhe sofrer todas as consequências, do crescimento à morte, e trazendo-lhe pela autenticidade da vida, que inteiramente viveu, a recuperação da própria autenticidade das coisas: mais vista aos cegos, mais firmeza aos fracos, mais serenidade às águas e mais luz aos céus? E tudo isto e sempre “entre nós” e nunca fora de nós, nem da dramaticidade da vida e do mundo; dramaticidade que, do presépio à cruz, é salva pela caridade com que o mesmo Cristo a assume, pelo amor restaurador com que viveu tais transes e pela companhia que oferece aos nossos. Por isso acorreram os pastores ao presépio, pressentindo já o seu próprio pastor; por isso nos juntamos hoje em seu redor: d’Ele, que se juntou para sempre à nossa vida e destino. Preciosamente nos escreve a propósito o Papa Bento XVI na sua recente encíclica: “ ‘O Senhor é meu pastor, nada me falta […]. Mesmo que atravesse vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo’ (Sal 23 [22], 1.4). O verdadeiro pastor é Aquele que conhece também o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que, mesmo na estrada da derradeira solidão, onde ninguém me pode acompanhar, caminha comigo servindo-me de guia ao atravessá-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte, venceu-a e voltou para nos acompanhar a nós agora e nos dar a certeza de que, juntamente com Ele, acha-se uma passagem” (Spe salvi, nº 6). A quem ainda não tenha descoberto no Natal de Cristo a porta estreita e segura para entrever a Deus e em Deus se entrever a si mesmo; a quem ainda não compreenda que a mente humana apenas se abeira da realidade divina quando se mantém aberta e disponível para ir mais longe do que a “conta, peso e medida”, próprios e necessários das coisas temporais, mas não se alheando destas, antes respeitando-as e desenvolvendo-as com inteligência e vontade; a quem resista ainda a considerar o óbvio, ou seja, que a partir do Natal de Cristo a terra ganhou consistência e a ciência e o progresso se enraizaram, não fora mas bem por dentro do diálogo e do debate que o próprio Cristianismo originou entre os crentes; a quem queira ainda criticar a religião a partir do modo como prévia e arbitrariamente a define, sem se deixar surpreender por ela… A quem se encontre em tal estado de espírito – tentação de que nem nós estaremos sempre isentos – responde ainda o Evangelho que escutámos: “A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer”, Demos então, demos deveras a Cristo, neste Natal de 2007, uma oportunidade sincera de nos surpreender, com a luz autêntica sobre Deus, sobre a humanidade inteira e sobre a humanidade de cada um de nós, na actual circunstância em que viva, sofrendo mesmo, por si ou por outrem, esperando sempre… Diante do presépio como diante da cruz, estejamos essencialmente como Maria: presentes de corpo e espírito, atentos de inteligência e acolhedores de coração. E o fruto de tal atitude será o seu Natal continuado. Receberemos d’Ele a misericórdia divina, que no-Lo deu como companhia para, através de nós, chegar a todos. Perceberemos até que a maior “demonstração” da verdade da religião de Cristo a recolhemos na partilha dos seus sentimentos e atitudes concretas. Lembrou-o luminosamente o Papa Bento XVI, logo a abrir a sua primeira encíclica: “ ‘Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’ (1 Jo 4, 16). Estas palavras da 1 Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’” (Deus caritas est, nº 1). Ganhemos agora aqui, irmãos e irmãs, nesta celebração em que o mistério do Natal se celebra vivo, renovada convicção e reforçado ânimo. Ganhemo-los para nós e para todos, em compromisso solidário e, a esta luz, absolutamente religioso. Ligação teremos a Deus, como Deus a quis ter connosco, na verdadeira “escada” entre o Céu e a terra que é a incarnação do Verbo, o “Filho do Homem” (cf. Jo 1, 51). Ele aí está: em cada alegria ou tristeza a compartilhar; ele aí está em toda a convivência a construir ou a reconstruir, na família, na sociedade e entre as nações: ele aí está, no mundo que sustenta e pelo qual nos responsabiliza, como malha temporal dum destino eterno. Em tudo isto O encontramos a Ele e nos encontramos a nós, neste concretíssimo hoje: Bendito Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem! Sé do Porto, 25 de Dezembro de 2007 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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