“O rosto glorioso de Jesus Cristo” 1. Cristo é o rosto da Palavra de Deus, afirmaram os Padres Sinodais na sua Mensagem ao Povo de Deus. A densidade de mensagem que nos transmite o rosto de Cristo tinha já sido maravilhosamente apresentada por João Paulo II, na Novo Millennio Ineunte em que propõe o dinamismo para a Igreja do terceiro milénio. Seguindo a intuição desses documentos ousei meditar sobre as diversas dimensões desse rosto da Palavra que queremos escutar e proclamar aos homens do nosso tempo. A Solenidade da Ressurreição convida-nos a meditar sobre o rosto glorioso de Jesus Cristo. Introduzo o tema com as próprias palavras de João Paulo II: “Como em Sexta-Feira e Sábado Santo, a Igreja não cessa de contemplar este rosto ensanguentado, no qual se esconde a vida de Deus e se oferece a salvação do mundo. Mas a contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do Crucificado. Ele é o Ressuscitado!Se assim não fosse, seria vã a nossa pregação e a nossa fé” (cf. 1Co. 15,14) [1]. 2. A Ressurreição de Cristo é o mistério dos mistérios, alicerce sólido e indispensável da nossa fé e da fé da Igreja. Ela é, antes de mais, a afirmação suprema da justiça de Deus para com o seu Filho, cujo sacrifício aceitou para redenção da humanidade. É a resposta de Deus Pai à obediência do Filho. Por isso, Cristo tornou-se para todos os que se unem a Ele, na fé, “justiça de Deus”, ou seja, fonte da salvação, como diz a Carta aos Hebreus: “Apesar de Filho de Deus, aprendeu a obedecer, sofrendo, e uma vez atingida a perfeição, tornou-se para todos os que Lhe obedecem fonte de salvação eterna” (Heb. 5,8-9). É por isso que no rosto do Ressuscitado se reflecte o verdadeiro rosto da Igreja como Povo que acredita na ressurreição do Senhor e nela bebe, continuamente, a graça da salvação. As leituras que acabámos de escutar falam-nos da fé da Igreja, que enquadra a ressurreição de Cristo como seu fundamento e ponto de partida para a vida renovada. O testemunho do Apóstolo São João, discreto porque a ele pessoalmente se referia, aponta a atitude decisiva: “Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao Sepulcro. Viu e acreditou” (Jo. 20,8). Viu os factos, que eram sinais, e não procurou explicações humanas; acreditou. O próprio testemunho de Pedro, é a afirmação da fé da Igreja, cujo fundamento é a ressurreição: “depois de ter ressuscitado dos mortos Jesus mandou-nos pregar ao Povo e testemunhar que Ele foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos”. No rosto com que a Igreja se apresenta ao mundo deve reflectir-se a luz do ressuscitado. Luz dos Povos, porque no seu rosto se reflecte a luz de Cristo, disse-nos o Concílio Vaticano II. A fé no Ressuscitado é exigência primordial da fidelidade e da autenticidade da Igreja. 3. Nesse rosto glorioso de Cristo que se reflecte no rosto da Igreja, brilha, antes de mais, a surpresa da sua actualidade. A Igreja não vive do passado, mas da actualidade surpreendente da Ressurreição, que não significa apenas a actualidade perene de Cristo ressuscitado, mas a actualidade da ressurreição vivida pelos crentes. Paulo na Carta aos Colossenses afirma: “Se ressuscitastes com Cristo aspirai às coisas do alto” (Col. 3,1). O Apóstolo não se refere aqui à nossa ressurreição futura, mas à nossa participação actual na ressurreição de Cristo. A nossa vida nova é já participação na ressurreição de Cristo, e essa realidade deve brilhar no rosto da Igreja. No pensamento do Apóstolo a morte foi antecipada em nós, pelo pecado. Vencido o pecado, essa primeira morte é vencida, e somos ressuscitados com Cristo. “Porque vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”. No rosto do Ressuscitado reflecte-se, pois, o mistério da vida cristã. Agora é para Cristo ressuscitado que a Igreja olha. Como Paulo, fascinado por Cristo vivo na Estrada de Damasco, a Igreja pode exclamar: “Para mim viver é Cristo e morrer é lucro” (Fil. 1,21) [2]. Diz-nos João Paulo II: “Passados dois mil anos destes acontecimentos, a Igreja revive-os como se tivessem sucedido hoje. No rosto de Cristo, ela — a Esposa — contempla o seu tesouro, a sua alegria. « Dulcis Iesu memoria, dans vera cordis gaudia »: «Como é doce a recordação de Jesus, fonte de verdadeira alegria do coração!». Confortada por esta experiência revigoradora, a Igreja retoma agora o seu caminho para anunciar Cristo ao mundo no início do terceiro milénio: Ele «é o mesmo ontem, hoje e sempre» (Heb 13,8)” [3]. 4. Se o rosto da Igreja transmitir a luz do rosto do Ressuscitado, nela brilha a alegria da salvação. O rosto glorioso é um rosto jubiloso. O próprio Jesus, na sua oração, diz ao Pai que anunciou a sua Palavra aos discípulos, “para que eles tenham em si mesmos a minha alegria em plenitude” (Jo. 17,13). O Papa Paulo VI, na Exortação Apostólica sobre a alegria cristã, escreveu: “Os discípulos, bem como todos os demais que vierem a acreditar em Cristo, são chamados a participar nesta alegria. Jesus deseja que eles tenham em si próprios a sua mesma alegria em plenitude: «Eu dei-lhes a conhecer o teu nome e dar-lho-ei a conhecer ainda, para que o amor com que me amaste esteja neles e eu esteja neles»” [4]. A alegria cristã não é uma alegria qualquer. É exigente, porque brota da salvação a acontecer. Coexiste com a dureza da caminhada, é participação na própria alegria de Jesus Cristo. Ouçamos ainda Paulo VI: “Esta alegria de permanecer no amor de Deus, começa já aqui, a partir deste mundo. É a alegria do Reino de Deus. No entanto, ela é concedida enquanto se percorre ainda um caminho íngreme, caminhada que requer uma confiança total no Pai e no Filho e, ao mesmo tempo, uma preferência dada ao Reino. (…) Assim, sucede que, neste mundo, a alegria do Reino tornado realidade não pode brotar senão da celebração conjunta da morte e da ressurreição do Senhor. É o aspecto paradoxal da condição cristã, que ilumina de maneira singular o da condição humana considerada em geral: nem as provações, nem os sofrimentos são eliminados deste mundo; mais, estas realidades assumem um sentido novo, sob a luz da certeza de que podem ser participação na redenção operada pelo Senhor, e meio para vir a compartilhar a sua glória” . A alegria é um dom do Espírito; é a força e a plenitude do Ressuscitado que se reflecte no rosto da Igreja. É força na adversidade, luz na obscuridade, resistência na caminhada, paz interior na intimidade com o Senhor. Toda a Igreja e cada cristão recebem o sentido da sua existência desse rosto luminoso, rosto da Palavra que nos anuncia a salvação. Sé Patriarcal, 12 de Abril de 2009 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca NOTAS: 1 -João Paulo II, Novo Millennio Ineunte, nº 28 2 – Ibidem 3 – Ibidem 4- Paulo VI, Exultate in Domino, pg. 30