Homilia do Cardeal-Patriarca na Sexta-feira Santa

“A Igreja aos pés da Cruz”

1. “Aos pés da Cruz de Jesus, estavam sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas e Maria de Magdala” (Jo. 19,25-26). Junto a Maria, a Mãe de Jesus, estava João, o discípulo amado. O estar com Maria ajudou-o a ficar até ao fim, quando todos os outros se tinham dispersado.

Hoje, aos pés da Cruz, está a Igreja, a comunidade de todos os discípulos amados. Juntemo-nos ao grupo, pois precisamos que Maria esteja connosco. Foi na Cruz que Jesus a declarou nossa Mãe. Só ela nos pode conduzir para estarmos aos pés da Cruz com verdade. Nós acreditamos que Jesus venceu a morte, porque o Pai O ressuscitou dos mortos; nós sabemos que é a força da Sua ressurreição que nos dá força para estarmos, hoje, aos pés da Cruz. Mas a ressurreição não anulou a Cruz, cujo sentido permanece perene, para ajudar a Igreja a passar da morte à vida. A sua actualidade é a da nossa cruz, que, se for vivida em união à Cruz de Cristo, nos permite esperar a ressurreição do nosso próprio corpo. Aos pés da Cruz do Senhor revivemos o nosso baptismo. O Apóstolo Paulo, que encontra o sentido da sua vida na Cruz do Senhor, ensina-nos: “Não sabeis que todos nós, que fomos baptizados em Jesus Cristo, fomos baptizados na sua morte? Pelo baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova” (Rom. 6,3-4). Juntemo-nos, pois, ao grupo que está aos pés da Cruz de Jesus com este desejo de viver o nosso baptismo e caminhar na vida nova, que é já participação na ressurreição do Senhor.

 

2. Aos pés da Cruz procuremos mergulhar no sofrimento inocente de Cristo. O elemento novo ali não é a dureza do sofrimento, infelizmente comum naquele tempo e em todos os tempos, mas sim o sofrimento de um inocente. Ele não conheceu o pecado; nada fez perante Deus e perante os homens que justificasse aquele sofrimento. A inocência de Cristo significa a pureza do seu coração e de todo o seu ser, o coração de Filho. Só a pureza do coração leva a viver o sofrimento como expressão de amor, permitindo-lhe toda a fecundidade. Um coração puro sofre amando, e aceita o sofrimento como missão. Escutávamos há pouco na Carta aos Hebreus: “Apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto sofrera, o que é obedecer” (He. 5,8). Jesus sabia que era assim ao proclamar bem-aventurados os que têm um coração puro, os mansos e humildes de coração (cf. Mt. 5,5.7). Aos pés da Cruz só Maria tem esse coração puro. Como o de seu Filho, o seu é um sofrimento inocente, oferecido por amor. É, como o de Cristo, um sofrimento redentor.

Ao contemplar o sofrimento inocente, podemos intuir como os nossos pecados, passados e presentes, nos impedem de viver o sofrimento com sentido redentor. O sofrimento é uma realidade dramática na humanidade de todos os tempos. O nosso pecado impede-nos de o abraçar e de o oferecer com amor. Que força de transformação do mundo é, assim, desperdiçada, porque os homens perderam a inocência do coração! A contemplação do sofrimento inocente de Cristo e de Maria pode fazer brotar do nosso íntimo uma prece: Senhor, dá-nos um coração puro, não para evitar o sofrimento, mas para o poder oferecer e amar. E entreguemos essa prece ao Coração de Maria, ela que está aos pés da Cruz.

 

3. Aos pés da Cruz poderemos perceber a gravidade do pecado da humanidade, que exigiu uma intervenção dramática de Deus, sacrificando o seu próprio Filho. Aprenderemos, talvez, a não banalizar o pecado e a identificá-lo nas expressões da nossa liberdade. À exclamação da Liturgia, “oh, feliz culpa que mereceste tal redentor”, temos de acrescentar: ó grave culpa que exigiste tal redentor.

Uma das características preocupantes do nosso tempo é o facto de se perder a consciência do pecado. A humanidade vai perdendo a noção do que Cristo a libertou. Nós os cristãos beneficiámos, pelo nosso baptismo, desse efeito recriador da redenção: foi-nos restituída a inocência do coração. Naquela Cruz, Cristo sente o peso de todos os pecados do mundo, mas deve ter sentido, de forma mais dolorosa, os pecados dos seus discípulos, desde a negação de Pedro, ao pecado dos cristãos que não foram fiéis à pureza baptismal. Os pecados da Igreja ferem, de modo particular, o coração inocente de Cristo e de sua Mãe, a Imaculada. Estamos aos pés da Cruz num momento em que os pecados da Igreja, mesmo os pecados dos sacerdotes, indignam o mundo e ofuscam a imagem do Reino de Deus. Aos pés da Cruz, compensemos com amor renovado a tristeza provocada pelos pecados da Igreja, e recorramos humildemente à Cruz como “trono da graça”, amor que nos redime. Com amor e humildade peçamos, por intercessão de Maria: Senhor, perdoai os pecados da vossa Igreja.

 

4. Talvez a humildade dessa prece nos faça reconhecer a infinita fecundidade da Cruz de Cristo. Esta fecundidade era já uma certeza na fé de Isaías no Cântico do Servo: “Aprouve ao Senhor esmagá-lo pelo sofrimento. Mas se oferecer a sua vida como sacrifício de expiação, há-de ver a sua descendência, terá longos dias e, graças a ele, se cumprirá o desígnio do Senhor (…). O meu servo que é justo justificará muitos diante de mim (…). Por isso dar-lhe-ei as multidões como prémio” (Is. 53,10-12). A fecundidade da Cruz de Cristo, contemplemo-la com a certeza de que nela está a salvação do mundo, a força para a transformação da nossa vida.

 

5. Aos pés da Cruz, deixemo-nos envolver pelo silêncio, tão profundo como já não se tinha experimentado desde a criação do mundo, porque é o silêncio de Deus.     O evangelista São Mateus relata esse silêncio, que envolve o próprio universo cósmico: “Desde o meio-dia até às três horas da tarde houve escuridão sobre a terra” (Mt. 27,45). Só Jesus quebra esse silêncio, ou melhor, não o quebra, porque é o silêncio de Deus, e as suas Palavras no alto da Cruz são o eco das Palavras de Deus no silêncio do caos inicial, dizendo a palavra criadora: faça-se a luz (cf. Gen. 1,1-2). Sobre uma humanidade destruída pelo pecado, as Palavras de Jesus são criadoras do mundo novo: “Mulher, eis o teu filho”; “Tenho sede”, “Tudo está consumado”. A sua sede de uma humanidade renovada é partilhada por sua Mãe. Aquela palavra “tudo está consumado” é o eco da palavra criadora de Deus, que achou que eram boas todas as coisas criadas.

Deixemo-nos invadir por este silêncio, porque só nele poderemos escutar a Palavra que reacende a nossa esperança. Aos pés da Cruz, deixemos que desse silêncio brote a nossa adoração. Ponhamos o nosso olhar em Maria, que agora é nossa Mãe, e digamos: nós vos adoramos Senhor Jesus, porque acreditamos que sois o Filho de Deus; em Vós adoramos a Trindade Santíssima, porque sentimos que a vossa morte, por nosso amor, é a manifestação do infinito amor de Deus por nós. Continuamos a precisar do vosso amor redentor, por causa dos nossos pecados. Perdoai os pecados da vossa Igreja. Ao sentirmo-nos tão amados, do nosso coração desabrocha o desejo de corresponder a esse amor e sermos o Povo que Vós desejais e amais com amor de esposo. Na vossa Cruz aprofunda-se a nossa esperança. Ensinai-nos a sofrer convosco queremos participar, convosco, na redenção do mundo. O ter-nos dado como Mãe a vossa própria Mãe, suscita em nós a confiança e a esperança de sermos capazes de Vos seguir. Louvado sejais Senhor pela Mãe que nos destes, porque com ela nós seremos capazes de abraçar o mundo com amor.

Sé Patriarcal, 2 de Abril de 2010

JOSÉ, Cardeal-Patriarca

 

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