Homilia do Cardeal-Patriarca na Missa da Ceia do Senhor

A minha carne é, verdadeiramente, um alimento (Jo. 6,55) 1. Nesta celebração da Ceia do Senhor em que Ele instituiu o sacramento da Eucaristia, que se tornará a fonte, simples e ao alcance de todos, de que a Igreja se alimentará, isto é, receberá a força para ser o Corpo de Cristo, o Seu Povo, e inaugurar no mundo o Reino dos Céus que Ele iniciou, decidi meditar convosco sobre a Eucaristia como alimento. O próprio Jesus, ao anunciá-la, apresentou-a assim: “A Minha carne é verdadeiramente um alimento e o Meu sangue é verdadeiramente uma bebida. Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue, permanece em Mim e Eu nele” (Jo. 6,55-56). O alimento é a fonte da energia, da força, de que o homem precisa para viver. Se lhe faltar essa energia, a vida definha, morre. Isto é verdade, antes de mais, para o nosso corpo, cuja saúde é importante para todas as outras dimensões da vida humana, pois a vida é uma harmonia, na complexa variedade dos seus aspectos e expressões. O pão, base universal do alimento de ricos e pobres, tornou-se o símbolo universalmente reconhecido desse alimento corporal. Não admira que se tenha tornado símbolo sacramental de Cristo, nosso alimento. 2. O pão que alimenta o corpo também é um dom de Deus. Ao criar o homem, Deus garantiu-lhe o alimento que lhe permitirá viver. Depois de criar o homem, Deus disse-lhe: “dou-vos todas as ervas que dão semente, que se encontram em toda a superfície da terra, e todas as árvores que têm frutos com sementes: isso será o vosso alimento” (Gen. 1,29). “O Senhor Deus fez brotar do solo toda a espécie de árvores, belas à vista e boas para comer” (Gen. 2,9). Por causa do pecado, esta terra generosa tornou-se inóspita e agressiva e o homem tem de fazer da busca de alimento uma luta contínua. A Adão, depois do pecado, Deus disse: “maldito seja o solo por causa de ti. Será com sofrimento que tirarás dele a tua subsistência, todos os dias da tua vida” (Gen. 3,17). Apesar desta maldição, Deus não esqueceu que tem de providenciar ao homem o alimento do corpo, porque quer que ele viva. Jesus diz aos discípulos: “Não vos inquieteis, dizendo, que vamos comer, que vamos beber? (…) O vosso Pai Celeste sabe que tendes necessidade de tudo isso” (Mt. 6,31-32). E na oração que ensinou aos discípulos ensinou-os a pedir ao Pai: “dá-nos, hoje, o nosso pão quotidiano” (Mt. 6,11). Deste alimento de que precisam os que têm fome, Jesus tornou-se o grande intercessor através da Igreja, Seu corpo, convidando-a a repartir, os que têm com os que não têm. 3. Na história de Israel, há vários momentos em que Deus se preocupa e providencia o alimento necessário ao corpo. É o caso do maná e das codornizes no deserto, que Deus envia para alimentar o Povo de Israel (cf. Ex. 16,1ss); e das duas multiplicações dos pães e dos peixes, realizadas por Jesus para alimentar a multidão que O seguia (cf. Jo. 6,1ss; Mt. 14,13-21). Em ambos os casos, este alimento miraculoso, fruto da intervenção de Deus para alimentar, pão vindo do Céu, preparam para a compreensão do novo alimento que Cristo é. No caso da narração de São João isso é claro, pois é na sequência da multiplicação dos pães que Jesus fala do Seu corpo como alimento, preparando para o mistério da Eucaristia. Nestes milagres há a abertura a um outro tipo de alimento complementar do pão que alimenta o corpo. A propósito do maná, Moisés diz ao Povo: “Recorda-te de toda essa travessia de quarenta anos que o Senhor, teu Deus, te fez sofrer no deserto, a fim de te experimentar… e conhecer profundamente o teu coração… alimentou-te com esse maná que não conhecias e que os teus pais também não conheceram, para te ensinar que o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Deut. 8,2-3). Esta é a resposta de Jesus a uma das tentações do demónio: “Está escrito, o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt. 4,4). Jesus disse à multidão: “Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés que vos deu o pão do Céu; é o Meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do Céu e que dá a vida ao mundo… Eu Sou o pão da vida” (Jo. 6,32-34). Está assim claro que o alimento que Deus dá, o alimento que Cristo é, se concretiza na Palavra de Deus e no Corpo do Senhor. A Palavra e a Eucaristia são o alimento que Deus dá. Afirmar que o homem não vive só de pão, significa que a vida do homem não se esgota na sua vida física. 4. Este é o horizonte da vida cristã: caminhar para a plenitude da vida, participando na vida de Cristo ressuscitado. “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 10). O Senhor veio para que todo aquele que acredita n’Ele tenha a vida eterna (cf. Jo. 2,2). Ele próprio diz que é a vida: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo. 14,6). É esta vida nova em Cristo que precisa de alimento para não morrer e crescer até à plenitude. E Cristo é a fonte da vida e o seu alimento. A Eucaristia só é alimento, porque nela está Cristo, com um realismo e uma totalidade inultrapassáveis e proporciona-nos uma comunhão íntima com Ele, no seio da qual O podemos escutar e amar: “quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue, permanece em Mim e Eu nele, do mesmo modo que Eu, enviado pelo Pai, que é vivo, Eu vivo pelo Pai, assim aquele que Me come, viverá, também ele, por Mim” (Jo. 6,56-57). A vida que Cristo nos dá exprime-se nesta comunhão de amor, cresce com ela e nela nos abre à caridade, ao amor dos irmãos. Essa comunhão de vida é o novo contexto da escuta da Palavra do Senhor. Em Cristo, a Palavra e a Eucaristia encontram-se como alimento da vida nova que Ele nos dá. Toda a vida é, simultaneamente, experiência, anseio e projecto. É para que a experiência se aprofunde, o anseio se realize e o projecto se concretize, que esta vida precisa de ser alimentada. Situemos, agora, a Eucaristia perante as principais concretizações do dinamismo dessa vida nova. 5. O anseio de uma vida eterna. A experiência mostra-nos que o anseio da vida eterna, espontâneo no homem, só em Cristo se torna esperança. Só com as forças humanas, rapidamente esmorece e se torna incapaz de definir o verdadeiro horizonte da vida. É um anseio de vida que precisa, para não morrer, desse poderoso alimento que é Cristo eucarístico. “Em verdade, em verdade vos digo, aquele que acredita tem a vida eterna. Eu Sou o pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este pão é aquele que desce do Céu para que o comamos e não morramos” (Jo. 6,48-50). “Quem comer deste pão viverá para sempre” (Jo. 6,51). A Eucaristia é sempre um mergulhar na vida eterna, alimenta a esperança, começa a delinear-lhe o horizonte, fundamenta aquela certeza fundamental que marca o ritmo da nossa existência. 6. O anseio de comunhão de amor. É o mais fundamental anseio do coração humano. O homem precisa de amor e só no amor salva a vida. Este anseio da comunhão de amor atravessa toda a realidade humana, o corpo e o espírito, cujo sentido está nessa busca da comunhão de amor e tem a sua expressão mais radical no anseio da comunhão com Deus: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em Mim e eu nele” (Jo. 6,56). O alimento de que este anseio precisa tem de vencer os obstáculos da nossa fragilidade: o egoísmo, a incapacidade de se dar para se encontrar, o fazer dos dinamismos da natureza, como a atracção dos sexos, forças de comunhão. Os Padres da Igreja insistiram na força da Eucaristia para a vivência do amor casto, que consiste em viver a força da complementaridade sexual como dinamismo de comunhão. A Eucaristia é decisiva, hoje mais do que nunca, para a vivência do matrimónio. Que os casais cristãos ouçam a palavra de Jesus: “Sem Mim nada podeis”. É que a Eucaristia entra na nossa vida como força de amor. Igualmente para aqueles que escolheram o caminho do amor virginal, acreditando e desejando exprimir toda a sua força de amor, na comunhão com Cristo e com a Igreja, a Eucaristia é o sacramento da sua fidelidade. A sua escolha foi o fruto de uma forte atracção de Deus. E é no discurso sobre a Eucaristia que o Senhor afirma: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai não o atrair” (Jo. 6,44). A Eucaristia é a fonte permanente dessa atracção do amor de Deus. 7. O anseio do conhecimento de Deus. Quem ama deseja conhecer e o conhecimento leva à adoração, expressão máxima da comunhão de amor com Deus. Este conhecimento brota da intimidade. Jesus prometeu àqueles que o Pai atraiu, que acreditam e se alimentam d’Ele, o pão vivo: “Serão todos ensinados por Deus. Quem ouve os ensinamentos do Pai e com eles se instrui, vem a Mim” (Jo. 6,45). Experiência de intimidade, a Eucaristia é escola de aprendizagem: nela se escuta o Senhor de forma mais simples e verdadeira, e se abre o coração àquela revelação pessoal que Deus nunca nega aos que O desejam e O procuram. A ignorância da fé tem a sua origem também na ausência da Eucaristia. 8. A memória de Quinfa-Feira Santa tem uma forte carga de amor. No dom total de Si mesmo, Cristo amou, o Pai e os seus até ao fim, isto é, até ao máximo. Ele percebeu que redimir o homem é libertá-lo para o amor e que esse caminho só pode ser percorrido por nós, tendo a força do Seu amor, tendo-o a Ele como alimento. Tornou-se presente no pão e no vinho para que, de forma simples, nos possamos alimentar e ter força para percorrer com Ele o caminho da Páscoa, da morte e da ressurreição. Sé Patriarcal, 20 de Março de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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