É ouvindo o brado que recebemos o Espírito
Caríssimos irmãos: Chegados à Semana Maior, entremos verdadeiramente na paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, verdadeira substância da Páscoa. É por excelência tempo de graça, uma vez que a Liturgia nos oferece palavras e ritos essenciais, para que realmente nos transformemos com eles. Trata-se de “passar” com Cristo para o Pai, Trata-se dum caminho a percorrer. Caminho estreito, como nos foi advertido pelo Senhor, que queremos acompanhar sobremaneira nestes dias: «Como é estreita a porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida, e como são poucos os que o encontram!» (Mt 7, 14).
É certo que hoje participamos no júbilo daquele dia em Jerusalém, quando Jesus foi aclamado com ramos e hossanas. Como os jovens de então, também os de hoje O aclamarão especialmente. Mas ai de nós se nos ficamos por aí, nessa alegria imediata, que geralmente dura pouco.
Jesus dissera e fizera coisas admiráveis, e muitos esperavam que o antigo reino de David regressasse com ele, porventura mais glorioso ainda. Seria assim e seria fácil. Rapidamente se desenganaram, quando tudo refluiu para a verdade autêntica de Jesus, como a apresentaria dias depois diante de Pilatos e entre apupos da multidão. Nem sabemos quantos dos que lhe levantaram ramos se juntaram depois aos que lhe levantaram a cruz… Ilusões geram desilusões, pseudoconversões dão grandes abandonos.
Caríssimos irmãos: A Páscoa de Jesus ou se leva a sério ou redunda em nada, no que a nós respeita. Jesus nunca recuou um passo no caminho que abriu. Nunca aligeirou a proposta de seguimento total. Aproximou-se de todos, em especial dos que ninguém queria, atacados pelas lepras do corpo ou da vida. Mas para os tirar daí, com conversões radicais ao Evangelho que propunha.
Assim connosco, sempre e também agora. Especialmente quando uma certa habituação ao calendário “cristão” lhe reduz o significado e o dilui em antigos ou requentados paganismos. Quando tal acontece, e se usa e abusa do nome de Cristo para lhe anular a cruz, nem acontece Páscoa nem se mudam as vidas. Usando um vulgarismo, ficamos “cada vez mais na mesma”, presos a equinócios primaveris, distrações variadas e especialidades da época. Mesmo quando sejam coisas relativamente boas, são absolutamente insuficientes, para nós e de nós para os outros.
Podemos chamar-lhes sonolência espiritual. Também atingiu os próprios discípulos, mesmo os que tinham estado mais perto de Jesus, do que fizera e dissera. Na hora definitiva, pediu-lhes companhia e puseram-se a dormir. Lembremos o trecho, pois é também de nós que se trata: Jesus chega ao Getsémani e pede a Pedro, Tiago e João para ficaram ali e atentos. – O que sucedeu depois? «Foi ter com os discípulos e encontrou-os a dormir…»
– O que sucedera entretanto? Precisamente o diálogo essencial de Jesus com o Pai, o âmago da oração cristã propriamente dita, como nos manda rezar no Pai Nosso: «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu». Recordemos o trecho: «Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se fosse possível, se afastasse dele aquela hora: Jesus dizia: “Abá, Pai, tudo Te é possível: afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres”.»
Caríssimos irmãos: Quanto rezarmos assim, em cada momento e circunstância, passamos com Jesus para o Pai e temos Páscoa. Quando o não fizermos, dormimos como os discípulos, hoje como ontem.
Reparemos que Jesus diz “Abá”, expressão da sua língua materna, referida a um Pai de ternura e intimidade. Assim mesmo o sabia e sentia, o Jesus do Getsémani, como em toda a sua vida terrena. Disse noutro passo evangélico: «Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só…» (Jo 8, 29). E ainda: «Eu e o Pai somos Um… Ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai» (Jo 10, 30.38). O segredo de Jesus, o que o leva por diante no seu propósito de salvar a humanidade que assume com a divindade que oferece, é a comunhão absoluta do cálice que o Pai lhe dá a beber, do propósito que traz para cumprir.
Sim, vão tirar-lhe brutalmente a vida. Mas, também sim, já a queria dar. Como dissera: «É por isto que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de meu Pai» (Jo 10, 17-19).
No horto Jesus pôde estremecer por causa do sofrimento que aí vinha, mas nunca desistiu de prosseguir até ao fim. É esta a qualidade da vida divina: Inteira partilha de tudo o que se é, entre o Pai e o Filho no amor do Espírito. Foi esta a tradução que teve na cruz: O Pai entrega o Filho a cada um de nós, o Filho retribui-se por nós na entrega ao Pai. E o Espírito nos incluirá nesse lance de amor.
Caríssimos irmãos: Não nos pareça estranho o que é afinal a verdadeira lei da vida, que apenas se garante na entrega de si. E sempre com Cristo, em qualquer Getsémani que nos surja, digamos que sim e sigamos em frente. Acaba por ser mais uma ocasião de crescimento, com Deus para os outros e com todos para Deus.
É esta a Páscoa que Cristo nos oferece. Hoje mesmo, nas circunstâncias e vicissitudes da vida própria e alheia, não nos alheemos de nós nem dos outros. Bem pelo contrário, entreguemo-nos sempre, entreguemo-nos mais no sentido do bem.
Não o conseguiremos sozinhos. A segurança está em Deus, que nos sustenta. Cristo dirige-nos as palavras que dirigiu a Simão (Pedro) e aos outros: «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora? Vigiai e orai, para não entrardes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca.»
– Como estamos agora? Podemos e devemos perguntar-nos ao iniciar a Semana Santa. “Santa” quer dizer de Deus, preenchida de oração e atenção espiritual. Que nada nos distraia do essencial, que é o seguimento de Cristo, da Ceia até ao Horto, do Horto até à Cruz. Aí lhe ouviremos por fim o grande brado com que expirou, ou seja, deu o Espírito. O brado que ressoa em todas as cruzes deste mundo e que teremos de acolher, no realismo dos Gólgotas de ontem e de hoje. É ouvindo o brado que recebemos o Espírito, para ressuscitar também.
Sé de Lisboa, 25 de março de 2018
D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca