Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Vigília Pascal

 “A vida é uma Vigília”

1. A Ressurreição de Cristo não é só uma festa de luzes e som. Começa por uma longa Vigília, expressão da esperança de um povo a caminho. A Vigília é atitude normal do homem e da história. Só deixam de estar em vigília aqueles que se satisfazem com o seu presente, com o que já são, deixaram de desejar etapas novas da vida, deixaram de perceber que o presente do homem, para ser digno dele, tem de ser uma abertura sobre um futuro novo. Fazer Vigília é desejar, mas é também estar vigilante para que o presente não feche as portas a esse futuro novo. Está em vigília o agricultor que lança a semente à terra e fica à espera, a desejar que ela germine e desabroche em colheita abundante; fazem vigília os que iniciam uma relação de amor e desejam que se aprofunde, que dure e traga a felicidade; ficam em vigília os pais que geram um filho e toda a sua esperança se concentra no seu crescimento; estão em vigília os doentes que esperam a saúde, os pobres que anseiam por uma vida melhor; estão em vigília os países e as nações, que desejam progresso, justiça, paz, solução de todas as crises que ameaçam a harmonia da vida comunitária. Estão em vigília os crentes que, na firmeza da sua fé, desejam encontrar Deus, numa comunhão de amor; estão em vigília todos os que esperam a plenitude da vida, numa eternidade feliz. A densidade de cada vigília depende daquilo que se espera, depende da densidade da esperança. Parece que uma das origens desta Vigília Pascal está na convicção da Igreja, num certo momento da sua história, de que a anunciada e prometida última vinda de Cristo, para inaugurar o tempo definitivo, aconteceria na Páscoa, intuição da relação íntima entre o triunfo do ressuscitado e a manifestação definitiva da sua glória. A Igreja reunia-se em vigília, à espera, preparando-se para acolher o Senhor nessa sua última vinda. Por isso, esta vigília começa, necessariamente, pelo anúncio da ressurreição. Aqueles que não deixaram que a luz de Cristo ressuscitado iluminasse toda a sua vida, nem sequer são capazes de desejar a sua última vinda. A densidade desta vigília está aí: deixar que a luz de Cristo ressuscitado nos ilumine e nos leve a viver toda a realidade, conduzidos por essa luz: a criação que nos envolve, a nossa história de salvação, a seriedade da nossa caminhada cristã.

2. Começámos por meditar na criação como dom de Deus; esse dom só o podemos perceber a essa luz de Cristo ressuscitado. “No princípio criou Deus o céu e a terra” (Gen. 1,1). “Criou o homem à sua imagem (…) homem e mulher os criou” (Gen. 1,27). Neste início, estava o Verbo de Deus. “Tudo foi feito por Ele e sem Ele nada existiu” (Jo. 1,3). Este Verbo é Nosso Senhor Jesus Cristo, “a imagem de Deus invisível, primogénito de toda a criatura, porque n’Ele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, visíveis e invisíveis” (Col. 1,15-16).

O homem nunca poderá perceber a beleza da criação e a importância na nossa realização pessoal, se não aprender a vê-la à luz de Cristo ressuscitado. Só assim ela será, para nós, mensagem, Palavra de Deus, como canta o salmista: “Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Sl. 19,2). “A própria Sagrada Escritura nos convida a conhecer o Criador, observando a criação”[1]. Olhar a criação à luz de Cristo convida-nos a respeitar a sua harmonia, sobretudo a respeitar a vida, que brota sempre de Cristo, plenitude da vida. Esta relação do homem com a criação e com a vida, convida-nos a uma longa vigília, pois a civilização contemporânea está longe de lhe captar a sua verdade.

3. Num segundo momento, esta vigília ilumina com a luz de Cristo ressuscitado toda a história da salvação que foi uma longa vigília do Povo escolhido. Cristo revela-nos o sentido dessa longa vigília, desde Abraão até à Páscoa de Jesus. Cristo é a chave de compreensão de toda a Escritura, n’Ele percebemos a unidade progressiva dessa única história e a persistência da fidelidade de Deus em realizar o seu desígnio de salvação. A recente Exortação Apostólica sobre a Palavra de Deus afirma: “O próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu”[2]. E insiste: “Os cristãos leem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado”[3]. E o próprio Jesus afirma aos judeus: “Se acreditásseis em Moisés, acreditaríeis em Mim, pois ele escreveu a meu respeito” (Jo. 5,46). Esta compreensão de toda a história da salvação à luz de Cristo, que exprime a unidade e a plenitude de toda a ação salvífica de Deus, é, para a própria Igreja, uma longa vigília. Nela, a luz de Cristo, convidar-nos-á a integrar a nossa própria história e a história da humanidade, na história da salvação. Esse é desafio que o Espírito do ressuscitado faz aos cristãos: aprenderem a ler a história concreta dos homens deste tempo, à luz da Páscoa de Cristo. Isso chama-se fidelidade e missão.

4. Essa é a última parte da vigília. Os que acreditam em Cristo e se uniram a Ele no batismo, são chamados a viver a sua vida na esperança. É a caminhada da fé, ao ritmo do desafio da fidelidade e da santidade. Começaram nessa caminhada os que hoje recebem o batismo; continua a sua peregrinação todo o Povo do Senhor, na sua profissão de fé e renovação dos compromissos batismais. Celebraremos a Eucaristia que é a convicção de que a Páscoa de Jesus é sempre o nosso ponto de partida e será o nosso ponto de chegada. Ter fé é viver a vida como vigília. O solene anúncio da ressurreição é a palavra de ordem para nos pormos a caminho, vigilantes e confiantes, à espera que a ressurreição de Cristo seja, em nós, vida nova, já nesta vida terrena. Mas a última vinda gloriosa do Senhor é, ainda hoje, o horizonte definitivo da nossa espera.

Sé Patriarcal, 23 de abril de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

 

NOTAS:

1 Exortação Apostólica “Verbum Domini”, n.º 8

2 Ibidem, nº 40

3 Ibidem, nº 41 

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