Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na missa de ordenações

“Dai-nos, Senhor, um coração novo”

Homilia na Missa das Ordenações, na memória litúrgica do Imaculado Coração de Maria Mosteiro dos Jerónimos, 2 de julho de 2011

 

1. Permitiram as circunstâncias que as ordenações de presbíteros e diáconos se realizem na celebração litúrgica do Imaculado Coração de Maria, o que nos convida a encontrar nesse mistério de Maria, Mãe de Deus, a compreensão da beleza e da exigência do ministério sacerdotal, na Igreja e para a Igreja do nosso tempo. Ambos são mistérios, expressos na realidade das criaturas, para realização no coração dos homens do desígnio amoroso de Deus de nos salvar, isto é, de vencer em nós o pecado e de nos introduzir na plenitude do amor que é, também, a plenitude da vida.

O que é um Coração Imaculado? A palavra “coração” tem, aqui, toda a amplitude do sentido bíblico, toda a interioridade do homem, a sua inteligência, a sua sensibilidade e afetividade, a capacidade de acolher a Palavra do Senhor e se abrir ao dom do seu amor. Coração Imaculado é aquele que está liberto de toda a resistência e incapacidade de escutar e se abre totalmente à Palavra de Deus. Pela primeira vez desde a criação do mundo, uma criatura, Maria, acolhe o Verbo eterno, escuta a Palavra como ela sempre foi escutada no seio da comunhão trinitária, desde toda a eternidade. Ao acolher, assim, o Verbo, a Palavra eterna de Deus realiza nela todo o seu poder criador e de anúncio da vida e do amor. Em Maria, a Palavra eterna de Deus passa a ser, numa criatura, o que sempre foi no seio de Deus. É, assim, natural que o Verbo eterno de Deus, acolhido totalmente no coração desta mulher, realize nela, no seu ser de mulher, a primeira potencialidade da Palavra: ser criadora. A Encarnação do Verbo no seio de Maria, sendo única segundo o desígnio do Pai, é fruto do acolhimento total dessa Palavra num Coração Imaculado.

 

2. Desde que a Palavra eterna de Deus foi totalmente escutada por um coração humano, dando como fruto maravilhoso do seu poder criador a encarnação do Verbo, o plano divino de redenção do coração humano tem agora a condição radical para ser levado à sua plena realização. O primeiro objetivo da redenção é recriar nos homens um “coração novo”, capaz de ser um coração imaculado que pode escutar totalmente a Palavra eterna de Deus. Essa é a dignidade do cristão, “nova criatura”. Ouvimos a Carta aos Efésios: em Cristo, Deus “escolheu-nos, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença” (Efs. 1,4). Sem um “coração novo”, que se deixa recriar continuamente até ser “imaculado”, não há escuta da Palavra. E sem escutar, da forma mais completa em cada momento da nossa caminhada, não há anúncio da salvação, não haverá “nova evangelização”.

Os presbíteros e os diáconos são ministros da Palavra. Para a poderem anunciar, devem acolhê-la de tal modo que ela comece por transformar as suas vidas. Sem um “coração novo”, não haverá anúncio renovador. Esta renovação do coração, concedida a todos os cristãos no Batismo e na Confirmação, é uma graça própria do Sacramento da Ordem, porque o coração de um sacerdote deve acolher a Palavra para, ao anunciá-la, comunicar o seu poder criador e transformador.

 

3. Podemos contemplar em Maria as atitudes básicas deste coração renovado. Antes de mais, a obediência, isto é, a completa sintonia da vontade própria com o desígnio de Deus que nos é revelado. “Eu sou a Serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra” (Lc. 1,38). E Isabel percebeu que essa era a atitude de Maria, a total obediência à Palavra de Deus: “Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc. 1,45).

Esta obediência à Palavra, que hoje nos é comunicada pela Igreja, é atitude decisiva no exercício do ministério ordenado. A obediência situa-nos no plano de querer sempre realizar o plano de Deus, que nos é expresso pela Igreja, e não os nossos planos e a nossa maneira pessoal de ver as coisas. A primeira atitude que a obediência nos pede é aceitar e amar esse plano que nos é pedido. Sem amarmos o que nos é pedido, não há verdadeira obediência. No nosso ministério temos de imitar a “Serva do Senhor”, abdicar da nossa vontade, para amar a vontade de Deus, expressa pela Igreja. Não nos ordenamos para fazer o que gostamos; é preciso aprender a gostar de tudo o que a Igreja nos pede. Quem obedece acerta sempre, quem ordena, em nome da Igreja, deve procurar interpretar, o melhor possível, o plano de Deus, em cada tempo e circunstância.

 

4. Uma outra atitude de Maria que pode inspirar a nossa fidelidade é o seu amor virginal. A virgindade não é negação, mas abertura às realidades novas. A virgindade sacerdotal não pode ser vista como negação, nem da sexualidade e da afetividade e de toda a capacidade humana de amar, mas como uma outra maneira de amar, fruto do poder criador da Palavra, quando esta é plenamente escutada e acolhida. É impossível viver esta maneira nova de amar, se não se escuta plenamente a Palavra, pois só ela criará em nós um “coração novo”.

 

5. Esta aventura da escuta da Palavra é uma longa caminhada, percorrida na fé e na humildade, até àquele dia em que a escutaremos plenamente no seio do Pai. Mas cada passo em frente nesta transformação do coração, é já fonte de uma grande alegria.

Já o Profeta Isaías, a quem Deus deu o dom de escutar a Palavra, exclamava: “Exulto de alegria no Senhor, a minha alma rejubila no meu Deus” (Is. 61,10). Essa é, também, a resposta de Maria: “A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc. 1,47).

O nosso Povo diz que “um santo triste é um triste santo”. Queridos ordinandos, sede felizes, abri o vosso coração renovado à alegria que tem a sua fonte em Deus e que Ele nos transmite sempre que acolhemos a sua Palavra, a Jesus Cristo, o seu Verbo encarnado.

Neste dia da vossa ordenação, quando eu próprio celebro este ano 50 anos da minha ordenação sacerdotal, dirijo com fé e amor à Mulher do “Coração Imaculado” esta prece por mim e por vós: Coração Imaculado de Maria, dai-nos o dom de um “coração novo”, ensinai-nos a desejar um “coração imaculado”, para podermos escutar, cada vez mais profundamente, a vossa Palavra. Faço-vos, Senhora, esta prece, confiado na garantia que nos destes em Fátima: “O meu Imaculado Coração triunfará”.

 

JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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