Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Missa de Abertura do Ano Judicial

“Justiça e Justificação”

1. O Santo Padre Bento XVI convidou toda a Igreja a celebrar, na fé e com fé, os 50 anos da Abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II e a redescobri-lo como “bússola segura” a orientar a Igreja neste início de um novo milénio. A justiça é um tema maior do Magistério do Concílio. Marcado pelo conceito bíblico de justiça, a sua compreensão inspira uma antropologia, o sentido profundo da missão da Igreja no mundo contemporâneo, como agente decisivo na transformação da sociedade assente sobre a justiça. Pareceu-me, pois, apropriado, nesta celebração por ocasião da Abertura do Ano Judicial, ter como pano de fundo alguns pontos do Magistério Conciliar sobre a justiça.

 

2. Como pano de fundo está sempre a compreensão bíblica da Justiça, que é atributo divino comunicado ao homem para que ele atinja a sua perfeição. “O homem foi constituído, por Deus, num estado de justiça” (1). Essa situação original do homem foi alterada pelo exercício da liberdade, numa não obediência ao dom da justiça, recebido por Deus. Por isso, a partir desse momento, na atitude de Deus para com o homem, a justiça é inseparável da misericórdia (2).

Na estrutura religiosa de Israel a adesão do homem à justiça de Deus exprime-se no cumprimento da Lei de Deus. A fé de Israel nasce da escuta da Palavra de Deus e esta é sempre revelação do desígnio de Deus, é mandamento porque revela a vontade de Deus acerca do comportamento dos homens e é promessa, porque anuncia um tempo novo em que triunfará definitivamente a justiça.

Praticar a Justiça é, para o crente de Israel, cumprir todos os preceitos do Senhor. O que faz isso é chamado justo. Mas os que não cumprem, os pecadores, não ficam excluídos da justiça, que é inseparável da misericórdia.

Uma certa dicotomia vai surgindo entre a justiça como cumprimento fiel da Lei,e a justiça recebida como misericórdia, que recria o homem e o conduz a uma vida na justiça, que já não se identifica com o pleno cumprimento da Lei. Essa ação criadora da misericórdia chama-se “Justificação”, que é sinónimo de salvação.

Este acesso à Justiça, através da misericórdia, liga a Justiça ao amor de Deus pelos homens, cuja expressão máxima será Jesus Cristo. A fé n’Ele, é abandono à vida que nos anuncia e comunica, torna-se decisiva para a justificação e relativiza, ainda mais, o conceito de justiça baseado no cumprimento da Lei. No cristianismo quem faz essa rutura radical é o Apóstolo São Paulo. Ouvimos no trecho da sua Carta aos Romanos. A justiça porque ansiamos não é fruto do cumprimento da Lei, mas do total abandono à fé em Jesus Cristo, porque Ele é “justiça de Deus”.

 

3. Esta afirmação clara de que Cristo é justiça de Deus, significa que só participando na realidade de Jesus Cristo o homem será justo. Justiça de Deus, Ele é também a justiça do homem. O conceito de justiça fica definitivamente ligado ao conceito de plenitude humana. Trata-se de construir o homem novo, participando em Cristo, o Homem por antonomásia. E os traços da vida desse Homem perfeito, são a união a Deus Seu Pai, o amor por todos os homens seus irmãos, a quem se uniu ao fazer-se Homem e por quem deu a vida, a defesa da verdade, um sentido de família humana como comunidade, participando da comunhão divina entre Pessoas, iguais e distintas.

Esta linguagem de São Paulo corresponde ao conceito de “Reino de Deus” na pregação de Jesus. Repondo a justiça no coração do homem, a humanidade vai-se transformando, aproximando-se do desejo de Deus quando criou o homem. Este “Reino de Deus” é, no realismo da história depois de Cristo, o Reinado de Jesus Cristo, em cuja construção todos os cristãos estão empenhados, mesmo sofrendo por amor da Justiça. O próprio Jesus o anunciou: “São bem-aventurados os que sofrem por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt. 5,10). E o Concílio lembra este Reinado de Cristo: “O Seu Reino é um reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz, reino em que a própria criação será libertada da escravidão da corrupção para conhecer a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rom. 8,21) [3].

Não admira, pois, que a beleza da justiça de que fala o Magistério Conciliar, dê prioridade ao respeito e cultivo da dignidade da pessoa humana, à beleza do homem como Deus a deseja, à vocação comunitária do homem que o leva a pôr o bem-comum à frente dos interesses individuais, a uma busca incansável da verdade. Constrói-se a justiça edificando uma humanidade nova.

A justiça, esta busca da dignidade do homem, tem de inspirar e estar na base de todas as estruturas da comunidade: a política (4), e todas as outras instituições (5), a busca da paz. Também as leis e os sistemas judiciais são chamados a serem elementos construtores desta nova humanidade construída sobre a justiça.

4. O Concílio não esquece que esta transformação da humanidade é lenta, se realiza na história dos homens, mas só encontrará a sua perfeição na eternidade, nos “novos céus e na nova terra”.

Na Gaudium et Spes, sobre a missão da Igreja no mundo contemporâneo, o Concílio afirma: “Ignoramos o tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude, e não sabemos o modo como se transformará o universo. A figura deste mundo deformada pelo pecado, passa, mas tomamos conhecimento de que Deus prepara uma nova morada e uma nova terra, onde reina a justiça, e cuja felicidade cumulará e superará todos os desejos de paz que se levantam no coração do homem” (6).

 

5. Somos todos chamados a lutar por esta construção de uma humanidade justa. Isso tem de ser feito com esperança, fortalecidos pela coragem e atraídos pela plenitude prometida. Mas só com Deus, no Seu Filho Jesus Cristo, ganharemos esta batalha.

Sé Patriarcal, 30 de janeiro de 2013

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa

NOTAS:

1 – Gaudium et Spes (GS), nº 13

2 – Dei Verbum, nº 15

3 – Lumen Gentium (LG), nº 36

4 – cf. GS, nº 73

5 – cf. LG, nº 36

6 – GS, nº 39

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