Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Missa da Ceia do Senhor

 Jesus nosso alimento”

1. Evocamos, nesta celebração, a última Ceia do Senhor. Tradicionalmente, baseando-nos na cronologia sugerida pelos Evangelhos sinópticos, coincidiu com a Ceia Pascal do ritual judaico, a grande celebração da Páscoa judaica. São João sugere outro encadeamento dos acontecimentos. Jesus tem consciência da proximidade da sua morte, sabe que já não celebrará a Páscoa desse ano e por isso se antecipa, comendo uma última refeição com os seus discípulos, uma “última Ceia”, a que imprime toda a densidade do que está a viver, o sentido da sua morte que se aproxima, o dom da sua vida, a certeza da ressurreição, porque sabe que o Pai não O abandonará. Aquela sua “última Ceia” é pascal, não porque é a Páscoa judaica, mas porque Ele celebra nela a sua Páscoa, a nova Páscoa. Aí, a sua vida oferecida torna-se decisiva para a vida dos homens. Seria pouco provável que o processo e a condenação de Jesus acontecessem durante a festa da Páscoa judaica, nesse ano, celebrada, segundo o calendário lunar, desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado. São Marcos, referindo-se à decisão das autoridades de se apoderarem de Jesus, põe na sua boca: “durante a festa não, para que o Povo não se revolte” (Mc. 14,2). E São João, narrando o processo de Jesus, diz que as autoridades se recusaram a entrar no pretório de Pilatos “para não se contaminarem e poderem celebrar a Páscoa” (Jo. 18,28).

Jesus morreu antes de começar a Páscoa judaica, portanto antes do pôr do sol de sexta-feira. São João confirma isto mesmo, quando narra a sepultura de Jesus: “Por causa da preparação dos judeus, como o túmulo (de José de Arimateia) estava perto, foi lá que depositaram Jesus” (Jo. 19,42). Portanto Jesus morreu ainda durante a preparação judaica para a grande festa, de que fazia parte a imolação dos cordeiros[1]. Naquele ano é imolado um outro cordeiro, Jesus Cristo, o verdadeiro Cordeiro Pascal.

2. Este é o primeiro elemento significativo a indicar-nos que Jesus, na sua Páscoa, se assume como alimento de todos quantos quiserem, com Ele, ratificar a nova Aliança com Deus, e que Ele explicita na Ceia: “Isto é o meu Corpo, tomai e comei” ou, na versão de Paulo, “isto é o meu Corpo, que é para vós”. Ouvimos na primeira Leitura desta celebração, o sentido do cordeiro pascal na Liturgia judaica. É, ao mesmo tempo, alimento e celebração. Alimento, comido à pressa, de quem está para partir, encetar um caminho novo, em ordem à libertação e à terra prometida. É celebração porque o seu sangue, aspergido sobre as portas, é sinal da predileção de Deus pelo seu Povo, poupado no dia da exterminação dos primogénitos. Nenhuma celebração da Páscoa é alimento, se não for, simultaneamente, ação de graças e louvor.

Naquele ano, Jesus é, na totalidade da sua pessoa, o Cordeiro da nova Páscoa, alimento indispensável para todos os que, acreditando n’Ele, se querem pôr a caminho. No ritmo daquela última Ceia, Jesus alia o alimento ao louvor de Deus. As quatro narrativas da instituição da Eucaristia referem que Jesus tomou o Pão, pronunciou a oração de bênção e de agradecimento e depois partiu-o. A “berakha”, a grande oração de agradecimento e bênção da tradição judaica, é traduzida por “eucaristia”. Ao partir e distribuir o Pão, Cristo dá-se a Si mesmo como alimento de quem o quer seguir e agradece a Deus o facto de não O abandonar, mas de O ressuscitar dos mortos. Como afirma Bento XVI, “as palavras da instituição situam-se neste contexto de oração; nelas, o agradecimento torna-se bênção e transformação”[2]. A Eucaristia é bênção, isto é, força para a caminhada e louvor pela certeza da fidelidade de Deus à nova Aliança com o seu Povo.

Depois da oração de bênção, Jesus partiu o Pão. Partir, para distribuir, para partilhar. É o gesto do pai de família. Este pão partilhado gera comunhão. No caso da Eucaristia, relativizou-se a função deste Pão como alimento do corpo, para valorizar o fortalecimento desta experiência de comunhão, com o Senhor e com os irmãos. Bento XVI comenta: “Este gesto humano primordial de dar, de partilhar e unir, adquire, na última Ceia de Jesus, uma profundidade inteiramente nova: Ele dá-se a Si mesmo. A bondade de Deus, que se manifesta na distribuição, torna-se totalmente radical no momento em que o Filho, no Pão, se comunica e distribui a Si mesmo”[3].

3. O pão, alimento básico do homem, tem uma grande força simbólica. Já no Antigo Testamento, durante a travessia do deserto, em que, se Deus não o alimentasse, o Povo morreria à fome, surge o Pão vindo do Céu: “Deus disse a Moisés: vou fazer chover Pão do alto dos Céus” (Ex. 16,4). Na disputa com os fariseus, depois da multiplicação dos pães, Jesus anuncia que o verdadeiro Pão que alimenta para a vida eterna é Ele próprio: “Eu sou o Pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este Pão é o que desce do Céu, para que O comamos e não morramos. Eu sou o Pão vivo descido do Céu. Quem comer deste Pão viverá para sempre” (Jo. 6,49-51). Naquela sua Páscoa, a vida que Jesus anuncia e quer comunicar, é a sua vida de ressuscitado. Cristo-Pão é garantia para sempre. A sua ressurreição será a maior prova de amor de Deus, seu Pai, para com o seu Filho feito Homem. Jesus ao partir e distribuir o Pão, partilha o que de mais precioso Ele vai receber de seu Pai. No deserto, Deus, ao alimentar o seu povo peregrino, dá-lhe pão e carne, ambos descidos do Céu (cf. Ex. 16,8). Neste novo Pão, que é Cristo, Ele é pão e carne, isto é, o alimento completo para a caminhada: “O Pão que Eu vos der é a minha Carne para a vida do mundo” (Jo. 6,51). Naquela Ceia, Jesus sabe que só Ele é o alimento que convém. Quem quiser caminhar, na fidelidade à nova Aliança, de que o seu Sangue derramado é o sinal, tem de ter Cristo como alimento. “Isto é o meu Corpo, tomai e comei”; “isto é o meu Corpo, que é para vós”. O alimento de que precisamos é a força da comunhão.

4. Neste gesto e nestas palavras da sua última Ceia, Jesus assume que toda a sua Pessoa é um ser para nós, para que nós, fortalecidos pelo alimento que Ele é, sejamos seres para Ele. Ouçamos Bento XVI: “Toda a sua índole é qualificada com a expressão «pró-existência», um existir não para Si mesmo, mas para os outros; e isto não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspeto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um «ser para». Se conseguirmos entender isto, ter-nos-emos então aproximado verdadeiramente do mistério de Jesus, saberemos então também o que significa seguimento”[4].

5. A experiência cristã confirmará esta força da Eucaristia como alimento? Conhecem-se, na História da Igreja, casos extraordinários de pessoas que se alimentaram, durante um tempo, só da Eucaristia que, nesses casos, foi também pão para o corpo. São casos excecionais cujo sentido é sublinhar realisticamente que Cristo Eucarístico é mesmo alimento. Mas não é a fome do corpo que a Eucaristia sacia. É o desejo de fazer da Páscoa de Jesus a nossa Páscoa, de O conhecermos, de O amarmos, de experimentarmos na comunhão com Ele a alegria da vida eterna. Que o digam aqueles que encontraram na Eucaristia a força que os levou a dar sentido novo à vida, a dar sentido ao sofrimento, a vencer tentações e a ser fiel em situações difíceis; que na Eucaristia aprenderam a amar o Senhor.

Sé Patriarcal, 21 de abril de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

 

NOTAS:

1 Para a cronologia da Páscoa de Jesus, ver Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol. II, pp. 94ss 2 Ibidem, p. 110

2 – Ibidem, p. 110

3 Ibidem, p. 111 4

4 Ibidem, p. 115

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