“O ministério sacerdotal e a atualidade salvífica da Igreja”
1. Esta celebração, a que a liturgia dá o nome de “Missa Crismal”, embora seja a última celebração do tempo da Quaresma, destinada diretamente a preparar as celebrações do Tríduo Pascal, chama-nos a atenção para o facto de os acontecimentos históricos da Páscoa de Jesus iluminarem a vivência presente, pela Igreja, dessa Páscoa perene, onde tudo começou de novo. Nesta celebração ressalta também, em toda a sua força, o mistério da Igreja como sacramento de salvação, a dar atualidade à força salvífica da Páscoa de Jesus. Hoje celebramos o presente de Jesus Cristo, na Sua Igreja. Jesus, na Sinagoga de Nazaré, depois de ter lido o Profeta Isaías, anúncio da salvação, conclui, referindo-se a Si próprio e mostrando-se como o Salvador: “Cumpriu-se, hoje mesmo, esta passagem da Escritura”.
Hoje é a Igreja, sacramento de Jesus Cristo, que declara ao mundo contemporâneo, mesmo àqueles que ainda não conseguem ouvir: “Cumpriu-se, hoje mesmo, a salvação”; e pode dizê-lo porque acredita em Jesus Cristo, sabe que Ele lhe deu o poder e a missão de tornar atual, em cada tempo, a salvação dos homens.
Fá-lo como “povo sacerdotal”, porque Ele “fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, Seu Pai” (Apc. 1,6). Esta fecundidade salvífica da Igreja, Povo sacerdotal, é possível com a perenidade de Cristo, único e eterno sacerdote, a atuar nela através do sacerdócio apostólico, riqueza e condição para que toda a Igreja seja Povo sacerdotal. É, pois, compreensível, que, nesta celebração, os sacerdotes, aqueles cristãos que o Senhor ungiu para exercerem o sacerdócio apostólico, sejam também objeto de particular da atenção. Hoje, cada sacerdote é chamado a exclamar, com o Profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu e me enviou a anunciar a Boa Nova” (Is. 61,1).
2. Hoje celebramos a atualidade da salvação, realizada com a força da Páscoa de Cristo pela Igreja de Lisboa, na sua graça sacramental, na autenticidade do seu testemunho de fé, no seu desejo inabalável de ser comunhão, participando do amor da Santíssima Trindade. Quando nos preparamos para celebrar o 50.° aniversário da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, é belo verificar que esta compreensão da atualidade salvífica de Cristo através da Igreja assenta no legado daquele Concílio.
Sobressai, nessa visão da Igreja, a dimensão comunitária. A Igreja é uma comunhão de pessoas, e não um conjunto de indivíduos, e a qualidade e a densidade dessa comunhão recebe-a da Santíssima Trindade. A Lumen Gentium afirma: “A Igreja Universal aparece como um Povo que recebe a sua unidade da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (LG. n 4).
Tudo, na Igreja, tem este dinamismo de comunhão: o Povo de Deus, que é povo sacerdotal; o sacerdócio apostólico; a variedade dos carismas e vocações que procuram viver esta realidade da Igreja. O episcopado, afirmado pelo Concílio como plenitude do sacerdócio apostólico, não pode deixar de ser vivido num dinamismo de comunhão. O Colégio Episcopal, a que preside o Santo Padre, Sucessor de Pedro, é a expressão primordial desta comunhão, sujeito primeiro da missão apostólica da Igreja e, por isso, da sua realidade como sacramento de salvação. Os presbíteros, que participam com o seu Bispo do sacerdócio apostólico, constituem com ele um colégio, exigência de comunhão: comunhão dos presbíteros uns com os outros, na corresponsabilidade do ministério; comunhão com o Povo de Deus de que são pastores; comunhão com o seu Bispo que garante a convergência com outros órgãos de comunhão, de modo particular com o Colégio Episcopal a que preside o Sucessor de Pedro. Todos os órgãos de comunhão convergem na construção da comunhão da Igreja.
3. A comunhão da Igreja exige, como expressão primordial, a unidade que ela bebe na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A Igreja, para ser comunhão, deve mergulhar continuamente no mistério da Santíssima Trindade. Por isso a unidade tem de ser expressão da caridade. E a sua primeira expressão é a unidade da fé, acreditada e proclamada.
Para nós, sacerdotes, a proclamação da fé da Igreja faz parte do nosso ministério sacerdotal. Isso exige que a nossa fé pessoal seja alicerçada na fé da Igreja. O ministério é um caminho de santidade pessoal. Se isso não acontecer, facilmente caímos na tentação de proclamar não a fé da Igreja mas as nossas perspetivas e visões pessoais, o que seria uma traição ao próprio ministério recebido. Somos enviados a anunciar a fé da Igreja, consolidada na Tradição, e continuamente garantida pelo Colégio Episcopal presidido pelo Sucessor de Pedro. Esta fidelidade à fé da Igreja enraíza na nossa fidelidade a Jesus Cristo e é a raiz da obediência pastoral. Esta exige de nós que sejamos servidores de um projeto de comunhão de toda a Igreja. A obediência pastoral tem de ser, para os sacerdotes, uma expressão da caridade, pois não se trata apenas de aceitar as orientações vindas do Bispo, mas de as amar como expressão dos caminhos por onde o Espírito conduz a Igreja. Como toda a vivência do mistério pascal, pode exigir de nós renúncia e apagamento de visões pessoais.
4. A comunhão exige ainda de nós, sacerdotes, que aprofundemos e sejamos fiéis à natureza do nosso ministério sacerdotal, ministério de misericórdia, como ministros de Cristo Bom Pastor. Segundo a profecia de Isaías, somos ungidos e enviados “a anunciar a Boa Nova aos infelizes, a curar os corações atribulados, a proclamar a redenção aos cativos e a liberdade aos prisioneiros, a proclamar o ano da graça do Senhor” (Is. 61,1-2). Em cada ato do nosso ministério devemos expressar o amor misericordioso de Deus. É essa qualidade do nosso ministério que nos credencia para sermos conselheiros espirituais, ajudando as pessoas a caminhar na busca da santidade e a caminhar com elas, como Cristo caminhava com aqueles que O seguiam. Neste aspeto, é preciso redescobrir a beleza do sacramento da penitência como sacramento da misericórdia.
5. Caríssimos Padres. O nosso ministério é um serviço de comunhão. Passa por ele, em grande parte, a expressão da atualidade salvífica da Igreja. Se formos fiéis, seremos colaboradores de Cristo na sua missão salvífica, em cada tempo e em cada circunstância concreta da comunidade humana.
Sé Patriarcal, 5 de abril de 2012
D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa