Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa na Missa Crismal

«O rosto eclesial de Jesus Cristo» 1. Na Mensagem que os Padres Sinodais dirigiram a toda a Igreja na conclusão dos trabalhos do Sínodo sobre “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”, é-nos lembrado que Jesus Cristo, o Verbo eterno de Deus feito homem é, o rosto da Palavra. Na última das catequeses quaresmais desenvolvi este tema. Toda a palavra sugere um rosto, porque é sempre palavra de alguém. Na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, trata-se da Palavra amorosa de Deus dirigida aos Seu Povo. Jesus Cristo é o rosto humano de uma Palavra divina. Nela contemplamos nesse rosto humano, antes de mais, o rosto do Filho de Deus. O rosto de Cristo abre-nos para o insondável mistério da Santíssima Trindade. Mas como afirmei na conclusão dessa Catequese, as celebrações litúrgicas da Páscoa permitir-nos-ão contemplar outros olhares, outros aspectos desse rosto adorável de Jesus Cristo: o Seu rosto eclesial, o Seu rosto eucarístico, o Seu rosto doloroso, o Seu rosto glorioso. Se celebrarmos bem a Páscoa perceberemos que é sempre o mesmo rosto, onde podemos ver reflectidos todos os passos da Sua missão e todos os aspectos da nossa caminhada exigente de identificação com Ele. Em todos esses olhares é-nos sempre transmitida a Palavra amorosa de Deus a iluminar cada momento da nossa caminhada de fé, em Igreja. 2. Nesta celebração sobressai o “rosto eclesial” do Senhor. Esta é a grande dignidade da Igreja: quem a vê, vê o rosto de Jesus Cristo. Já o Profeta Isaías o profetizava acerca do Povo da Aliança, renovado pelo Espírito: “Quantos os virem terão de os reconhecer como raça que o Senhor abençoou”. Na reflexão da Igreja primitiva sobre a presença de Cristo no mundo, em tempos de missão, sobressai, sobretudo nos textos do Apóstolo Paulo, a identificação entre Cristo e a Igreja. Esta identificação é afirmada, antes de mais, ao nível do ser: a Igreja é o Corpo de Cristo. É esta identificação ao nível do ser que permite uma outra, no plano da igualdade numa relação de amor. Esta supõe sempre, por natureza, a igualdade das pessoas que se amam. Quando essa igualdade não é reconhecida, a relação de amor torna-se impossível. Cristo ama a Igreja como uma esposa, o que só é possível devido à identificação profunda do ser da Igreja com o ser de Jesus Cristo. Esta dupla abordagem da identificação de Cristo com a Igreja faz com que no rosto humano da Igreja resplandeça o mistério de Cristo e a sua Palavra amorosa. Devido a essa identificação, a Palavra da Igreja é a Palavra de Cristo, deve ser uma Palavra de amor, o que faz da Igreja, no dizer da referida Mensagem Sinodal, a casa da Palavra, o lugar humano onde Cristo, Palavra de Deus, é proclamada a todo o mundo como Palavra de amor. Este é o contexto da exigência da fidelidade da Igreja: seguir de tal modo o seu Senhor de modo a que os homens, ao contemplarem a realidade humana da Igreja, possam contemplar nela o rosto de Cristo. 3. Esta celebração põe em realce vários aspectos desta dignidade da Igreja, de se tornar, no seu ser e na missão de amor, o rosto vivo de Jesus Cristo, o rosto da Palavra. Antes de mais, a afirmação explícita da dignidade sacerdotal da Igreja: “Aquele que nos ama, que, pelo Seu sangue, nos libertou do pecado e fez de nós um Reino de sacerdotes para o Seu Deus e Seu Pai” (cf. 1,6). É a mais profunda e englobante identificação entre Cristo e a Igreja: ela, como Povo do Senhor, participa do sacerdócio de Jesus Cristo. E o sacerdócio de Cristo, dimensão da Sua humanidade, abrange toda a sua missão: louvor de Deus, redenção do homem pela oferta sacrificial, reunião do Povo do Senhor que o pecado tinha dispersado. Na antiga Aliança, havia sacerdotes; na nova Aliança há um povo sacerdotal, que participa plenamente no sacerdócio do único sacerdote, Jesus Cristo. Este Povo sacerdotal exerce o seu sacerdócio sempre em profunda união com Cristo sacerdote: com Ele orienta tudo o que há de bom no mundo para o louvor de Deus Seu Pai; com Ele continua a oferecer o sacrifício redentor; com Ele valoriza os momentos de graça em que se actualiza a redenção dos homens. Temos de purificar tanta coisa na Igreja real que somos, para que no rosto da Igreja os homens possam contemplar o rosto de Cristo sacerdote. A valorização, ao longo dos séculos, do sacerdócio ministerial, transmitiu a ideia de que, como no Antigo Testamento, na Igreja há sacerdotes, e não um único sacerdote, que se identifica com o Povo sacerdotal. O sacerdócio ministerial é apenas uma dimensão estruturante do Povo sacerdotal, uma forma de Cristo sacerdote se identificar com a Igreja, no ser e na acção. A velha questão do lugar dos leigos na Igreja é muito mais que uma questão organizativa ou de eficácia da missão. O verdadeiro sujeito do ser e da missão da Igreja é o Povo sacerdotal: todo o Povo louva o Senhor, todo ele celebra os sacramentos, ele é o sujeito do anúncio da Palavra. É um erro pensar que a valorização da Igreja como Povo sacerdotal possa relativizar a importância dos sacerdotes ordenados. Antes pelo contrário: a especificidade do seu ministério sacerdotal ganha todo o relevo no tornar possível que o sacerdócio da Igreja se identifique com o sacerdócio de Cristo. Queridos Padres! O vosso sacerdócio ministerial encontra a sua verdade no serviço do Povo sacerdotal. Se a Igreja não se assumir como rosto de Cristo sacerdote, o sacerdócio ministerial perde o seu sentido, transforma-se em poder, torna-se incompreensível aos olhos do mundo. 4. Nesta celebração ressalta igualmente a identificação da Igreja com Cristo, na abundância do poder sacramental. Ela é, verdadeiramente, o rosto da fecundidade salvífica de Jesus Cristo. A Igreja perdoa os pecados, regenera os corações, comunica o Espírito Santo, cura os doentes, realiza a santidade. Em toda esta fecundidade, a Palavra é protagonista como o foi na criação. Deus disse e fez-se. A Igreja pronuncia a Palavra e realiza o que anuncia. E isso acontece porque a palavra que ela pronuncia é a Palavra eterna, é Jesus Cristo Palavra humanizada. Na fecundidade da Igreja, Cristo é, verdadeiramente, o rosto da Palavra. Em nenhum outro momento resplandece o rosto de Cristo, como na fecundidade sacramental. É esta que faz a Igreja, a transforma cada vez mais no Povo do Senhor, que, presente no mundo, anuncia o rosto do Senhor. Quando a Igreja, na sua realidade humana, não anuncia o rosto de Cristo, é porque há nela as marcas da infidelidade à Palavra. É Cristo que garante à Palavra da Igreja o rosto que a humaniza e a torna audível como Palavra de Deus. Em toda a nossa acção, nós, os sacerdotes, somos servidores da Palavra: quando pregamos, quando a anunciamos, referindo-a à vida concreta dos cristãos, fonte de sentido para a conversão e para o aprofundamento da fé; sobretudo quando a pronunciamos em nome da Igreja, para ela realizar eficazmente a obra da salvação. Nós temos esse poder: a Palavra pronunciada por nós torna-se criadora. 5. Esta celebração só acontece na Catedral. A Igreja reúne-se no seu rosto mais vivo. É o Povo sacerdotal na variedade dos seus dons, que todos convergem para a realização dessa maravilha que só será definitiva na pátria definitiva: a identificação perfeita e total entre Cristo e o Povo que Ele conquistou com o Seu sangue. Só quando a Igreja for totalmente o rosto de Cristo ela será comunhão perfeita na comunhão das Pessoas divinas, e a Palavra eterna será o que é desde o princípio: o Verbo estava em Deus, o Verbo era Deus, uma Palavra que pronunciada pelo Pai, ecoa na imensidão da humanidade resgatada, comunidade de filhos, de “filhos no Filho”. Sé Patriarcal, 9 de Abril de 2009 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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