Homilia do cardeal Dionigi Tettamanzi na peregrinação internacional de setembro ao Santuário de Fátima

O Senhor está contigo. Sim, sou a tua morada

Caríssimos,

Uma das heranças  espirituais mais preciosas que as aparições marianas em Fátima nos deixaram é a devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Aparecendo aos três Pastorinhos pela terceira vez, no dia 13 de julho de 1917, revela-lhes um “segredo” que se desenvolve em três partes. Após ter mostrado o “lugar” da possível condenação eterna dos homens, Nossa Senhora disse que Deus – precisamente para os salvar dessa trágica sorte – quer estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração da Mãe de Jesus. Alguns anos depois, as outras visões que a Virgem oferece à Irmã Lúcia explicitam o conteúdo desta devoção em torno de dois elementos fundamentais: o primeiro é a prática da oração durante cinco meses, nos primeiros sábados de cada mês; o segundo é a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria realizada pelo Santo Padre em comunhão com todos os bispos do mundo.

É precisamente  à luz da espiritualidade do Coração de Maria que hoje queremos reler a Palavra de Deus proclamada nesta missa votiva da Virgem como “templo do Senhor”. 

 O seio virginal de Maria, “templo do Senhor”

Na verdade, tanto o evangelho da anunciação como a eucologia  desta Missa dizem-nos que o “templo do Senhor” é o “seio virginal” de Maria: “hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus” (Lc 1,31). O mistério deste anúncio à jovem mulher de Nazaré é-nos mostrado na oração inicial desta assembleia eucarística que invoca o Pai como aquele que «no seio virginal de Maria preparou com arte inefável o santuário de Cristo seu Filho».

Mas é no prefácio que a liturgia nos ajuda a perceber a ligação íntima entre o acontecimento singular de Maria e a comum experiência de fé a que todos nós somos chamados. O texto litúrgico de facto lembra-nos que antes de tudo está “a ação misteriosa do Espírito”, pela qual Deus prepara por si uma morada “no coração dos fiéis”. Sim, esta é a maravilhosa promessa feita a cada um de nós, este é o dom oferecido a cada crente: Deus vem habitar em nós, Deus não tem medo de “habitar” em corações tantas vezes distraídos, inóspitos, fechados na própria autossuficiência e prisioneiros do medo. Só a presença de Deus “purifica, ilumina, consagra” estas moradas assim refractárias  e impermeáveis que nós somos.

Ora, é desta inhabitação de Deus – de que falaram tantos teólogos e sobretudo muitos cristãos simples bem como numerosos místicos – que Maria se põe, diante da humanidade inteira, como a testemunha mais elevada e mais surpreendente. Como canta a liturgia, «pela obediência da sua fé e pelo mistério da encarnação, a Virgem Maria tornou-se o templo singular da vossa glória» (prefácio da Missa em honra de Maria “Templo do Senhor”). A Ela coube a graça, inteiramente única, de ser  a «casa de ouro adornada pelo Espírito…, a arca da nova aliança que contém Jesus Salvador do mundo» (ibid.).

Mas no eterno plano do amor de Deus, este privilégio não faz de Maria uma criatura inalcançável, afastada de nós e da nossa quotidiana peregrinação na fé. O contrário é que é verdade! Este privilégio é uma responsabilidade imensa que o Senhor confia a Maria, tornando-a para nós o sinal de uma vocação que diz respeito a todos, sem exceção. A Mãe de Jesus é «a atuação exemplar», única, do mistério de Deus que – assim podemos de certa maneira exprimir-nos –  quer continuar a “encarnar-se” em cada um de nós, para que nos tornemos o «templo vivo da sua glória» no mundo (Oração coleta da Missa em honra de Maria “Templo do Senhor”).

Digamos de novo: a Mãe de Deus não está longe de nós! Não nos é estranha! Se é inalcançável, pois somente ela foi chamada a levar Jesus no seu seio virginal, todavia esta realidade extraordinária manifestou-se «pela obediência da sua fé».

Eis por que, caríssimos peregrinos, a devoção ao Imaculado Coração de Maria  pode indicar o caminho para que, também nós, nos tornemos “templo do Senhor”, sua morada, sua casa, lugar onde ele vem – cheio de alegria –  habitar e descansar , como diz Santo Ambrósio: terminado o sexto dia da criação “daquela obra-prima que é o homem”, “o Senhor descansou de toda a sua obra no mondo. Descansou, pois, no íntimo do homem, descansou na sua mente e no seu pensamento…”. E acrescenta: o Criador “repousou, tendo um ser  a quem perdoar os pecados”, anunciando assim “o mistério da futura paixão do Senhor” (I sei giorni della creazione, VI, 75,76). O mesmo Santo Ambrósio nos remete explicitamente para o mistério da maternidade de Maria,  escrevendo: “Cada alma que crê, concebe e gera o Verbo de Deus … Se, segundo a carne, uma só  è a mãe de Cristo, segundo a fé, todas as almas geram Cristo” (In Lc. II, 26).

Como era o coração de Maria? Antes de tudo, podemos pensar no que nos conta o evangelista São Lucas, quando duas vezes observa que Maria “conservava ponderando-as no seu coração” as coisas que tinha visto e escutado a respeito de seu Filho Jesus (cfr Lc 2,19.51). No coração de Maria habita sobretudo a palavra de Deus, que a Virgem escuta e, de certa maneira, “vê”, pois ela contempla o que acontece ao próprio filho, o que dele se diz e o que ele mesmo faz e diz, de modo totalmente inesperado e surpreendente. O coração de Maria é rico dos ecos das palavras e dos gestos de Jesus. Interessante é o verbo usado pelo evangelista: este indica não apenas “meditar”, mas ainda melhor “interpretar”. Assim Maria revê os acontecimentos ligados a Jesus e “junta”, confronta, liga palavras e factos, descobrindo os nexos profundos e interpretando-os de maneira espiritual, ou seja, segundo o Espírito de Deus. 

Tudo isto vale também para nós, caríssimos irmãos e irmãs no Senhor, porque também a nós foi dado o Espírito Santo que, como nos recorda o profeta Ezequiel, cria dentro de nós um “coração novo”, um “coração de carne” (Ez 36,26), um coração capaz de compreender e praticar a Lei de Deus, a sua palavra, os seus mandamentos (Ez 36,27). Poderíamos dizer que o Espírito Santo cria em nós, como em Maria, um “coração sapiente”: isto é, um coração que sabe ler a realidade encontrando nela os sinais da presença e da ação de Deus, um coração capaz de ultrapassar a perturbação do ‘sem sentido’ dos acontecimentos que muitas vezes experimentamos, para nos abrirmos ao sentido das coisas que é “segundo Deus”.

Maria junto da cruz de Jesus

Uma outra página evangélica que nos abre ao conhecimento do coração de Maria é a cena da Mãe de Jesus junto à cruz do Filho (cfr Jo 19,25-27).

O coração de Maria, que as aparições de Fátima nos revelam como doloroso e ofendido por causa dos pecados cometidos contra Jesus e contra Nossa Senhora, é portanto também o coração que tomou parte na dor do Filho que morre pelos pecadores. Podemos então pensar no coração de Maria como um coração misericordioso, pois conheceu com intensidade materna o coração do Filho que morre sem qualquer ressentimento, na oração dirigida ao Pai para que perdoe aos seus assassinos (cfr Lc 23,34).

Também nisto somos chamados a imitar o coração de Maria. Como nos recorda o apóstolo Paulo, o Espírito Santo que nos foi dado sustenta a nossa oração, “vem em auxílio da nossa fraqueza” (Rm 8,26), que tantas vezes não é capaz de pronunciar palavras de perdão. O próprio Espírito em nós intercede junto do Pai segundo os desígnios  de Deus, que são desígnios de reconciliação e de paz, leva ao Pai aquele desejo de fraternidade muitas vezes frustrado por causa da nossa vontade débil, infunde  no nosso coração aquela consolação e aquela paz que só o Senhor pode dar (cfr Jo14,27).

Caríssimos peregrinos, são estes os frutos santos do Imaculado Coração de Maria visitado pelo Espírito Santo e tornado “templo do Senhor”. Mas o fruto mais belo, verdadeira síntese e coroamento da espiritualidade do discípulo de Jesus, é o “fiat” pronunciado por Maria ao Anjo, melhor, ao próprio Deus: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38). Podemos compreender então quanto afirmava o Cardeal Ratzinger comentando a publicação da terceira parte do segredo de Fátima: «“Devoção” ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat – “Seja feita a vossa vontade” – se torna o centro que dá forma a toda a existência».

Sim, o Coração Imaculado de Maria é o “coração puro” do Evangelho das bem-aventuranças: “Felizes os puros de coração” (Mt 5,8); é o coração unificado  na obediência da fé à vontade de Deus: é por isso um coração capaz de  “ver” Deus.

Aparecendo aos três pastorinhos no dia 13 de julho  de 1917, Nossa Senhora proclamava solenemente esta verdade: «Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará […] e será concedido ao mundo algum tempo de paz». Sim, será um triunfo – comenta ainda o futuro papa Bento XVI – no sentido de que, desde que o próprio Deus passou a ter  um coração humano pelo fiat de Maria, «a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra».

Com grande força e humildade, pedimos ao Pai nesta Eucaristia que o seu Santo Espírito desça sobre nós para fazer do nosso coração, como fez do Coração puro de Maria, o templo da sua presença, o “lugar” do nosso “sim” ao Senhor, para que  – através da nossa liberdade que se decide por Ele – o Deus que tomou um coração de homem continue incansavelmente a amar, a curar e a renovar os corações de todos os homens.

Amen!

Fátima, 13 de setembro de 2011

Cardeal Dionigi Tettamanzi, arcebispo emérito de Milão

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top