Homilia do bispo do Porto – Páscoa 2021

 A Cruz e a luz

Foto: Diocese do Porto/João Lopes Cardoso

Este relato da ressurreição constrói-se à base de um tripé humano muito curioso: Maria Madalena, Pedro e João. Porque os Evangelhos falam muito delas, conhecemos bem a fisionomia religiosa destas pessoas: Maria Madalena encarna a convicção fortíssima da convertida a quem nada nem ninguém é capaz de deter; o discípulo João exprime o amor intuitivo, sempre apto a interlaçar os sinais para chegar mais longe; Pedro, o Chefe do Colégio Apostólico a quem se dá primazia ao entrar no túmulo, personifica a instituição ou a autoridade da Igreja que lida com o mistério e sente necessidade de confirmar a verdade e a garantir solenemente.

Cada um representa uma específica faceta da mesma Igreja que, de facto, se edifica sobre o Senhor ressuscitado, à base da fé convicta, do amor operativo e do ministério sacerdotal e institucional. Estes âmbitos não se opõem: todos são imprescindíveis e todos se interligam. Se algum faltar, não há verdadeira Igreja de Cristo. E todos eles participam de um dado inerente ao ser cristão, ontem, hoje e sempre: o discipulado e a gradualidade do amadurecimento da fé e do assimilar o mistério pascal.

De facto, compreender a ressurreição não é tarefa fácil. Nenhum evangelista esconde isso. Na passagem escutada, aparece mesmo um desabafo: “Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos”. Nos relatos das aparições do Ressuscitado aparece um esquema que se torna habitual: há um antes, sempre envolto em tristeza, e há um depois, pleno de alegria e entusiasmo. Pelo meio, algum personagem que experimenta isso mesmo e o transmite aos outros discípulos. E é da experiência e do testemunho que nasce a convicção da fé.

Dá a impressão que Jesus aparece a pessoas que se submergem no medo ou se encontram aferradas ao passado: as mulheres que ainda procuram um cadáver para embalsamar; os dois discípulos de Emaús que lamentam a sua aposta feita em quem os chefes de Jerusalém mandaram matar; Tomé que ainda não tinha saído do tempo do triunfo, dos milagres e das aclamações e se escandaliza com o Calvário; os Apóstolos encerrados no cenáculo porque, no passado, era Jesus quem dirigia e já anteveem o futuro como o tempo das decisões difíceis; etc. É que a fé acontece entre credulidades e dúvidas, sinais e vontade de avançar.

Mas quando o Ressuscitado chega junto deles, estas pessoas transformam-se: ficam crentes, adoradores, decididos, valentes, zelosos, missionários. Compreendem, então, que a última palavra de Deus não é a cruz, mas é o sim de Jesus dito ao longo de toda a sua existência histórica na indefetível união com o Pai, de quem sabe ser o Filho unigénito, e na inquebrável fidelidade a todos os irmãos, a quem serviu dedicada e apaixonadamente. Esta palavra definitiva da história é que constitui o motivo da verdadeira alegria e contentamento; é ela que motiva os nossos aleluias.

Regressemos ao Evangelho de hoje. Para que Pedro e João «vissem e acreditassem», para que eles pudessem cantar os tais aleluias, foi preciso que uma mulher, Maria Madalena, se levantasse da cama mais cedo do que eles, corresse ao sepulcro, vencesse o medo e lhes fosse comunicar a absoluta novidade da ressurreição. É o feminino no seu melhor, que não olha a sacrifícios, é forte, cumpre missões de excecional responsabilidade, possui um especial sentimento de fé e sabe dedicar-se ao bem comum com uma determinação a toda a prova. Talvez por isso mesmo, já ontem, no Evangelho da Vigília Pascal, se referiam as três mulheres que testemunharam a plenitude da ressurreição antes dos homens. Aliás, não admira: se excetuarmos S. João, foram elas as únicas que permaneceram firmes quando os homens debandaram.

Devemos a estas mulheres a melhor introdução ao mistério da Páscoa e o indicador concreto do que é ser cristão. Como, de maneira geral, lhes devemos o melhor da humanidade: o desvelo maternal pela vida nascente e a coragem na assistência à vida que definha; a consagração aos setores estruturantes da sociedade que são a educação e a saúde; a presença solícita e insubstituível na vida da Igreja, particularmente nos setores mais escondidos e menos atraentes; a fermentação do mundo com a escala de valores do reino, quais sejam a sobriedade, o esquecimento de si em favor dos outros, o perdão, a pacificação, a generosidade; enfim, aquela especial sensibilidade religiosa que, sem desprezar o concreto das pequenas coisas para as quais o homem parece não ter jeito, só atesta o tão celebrado e celebrando «génio feminino». Esta é a sua cruz. Mas é também o seu título de glória!

Os evangelistas sublinham que a ressurreição aconteceu “no primeiro dia da semana”. O primeiro dia remete para as origens, para algo de novo. Na criação do mundo, foi a luz. No nascimento de Cristo e da Igreja, foi o ventre da Virgem Maria. Na «nova criação» da fé pascal, mais do que qualquer palavra, é o coração amoroso, solícito, inquieto daquelas mulheres que vão ao encontro do morto e se deparam com a Vida. Porque sabem seguir e amar, ficam encarregadas do primeiro e mais solene anúncio: de que o Cristo Senhor não se encontra por detrás de uma pedra de túmulo, de uma lápide funerária, e que a única forma de O «encontrar» é fazer-se seu discípulo e assumir a sua causa.

Às mulheres, a todas as mulheres a quem, porventura, o mundo deve mais que aos homens, os meus parabéns e o meu muito obrigado. Que a Mãe do Salvador interceda por vós e vos cumule com a sua bênção de felicidade. E um pedido: na pequena Igreja, que é a família, e na grande Igreja, a Católica, elevem bem alto a luz de Cristo Ressuscitado e ajudem todos a caminhar à sua claridade. Aleluia. Feliz Páscoa.

D. Manuel Linda

Bispo do Porto

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