Homilia do Bispo do Porto nos 40 anos da Voz Portucalense

Voz De Cristo – Voz Do Pastor – Voz Portucalense

 

Caríssimos irmãos e irmãs, e muito especialmente vós, responsáveis, colaboradores e assinantes da Voz Portucalense, neste “Dia” em que felizmente vos reunis na Sé do Porto, em festiva acção de graças por tantos anos de frutuosa realização do nosso periódico diocesano:

Acabamos de ouvir no Evangelho que “segundo o seu costume, [Jesus] entrou na sinagoga a um sábado e levantou-se para fazer a leitura”. Inaugurava ainda a sua missão apostólica e foi assim que aconteceu: lendo um livro – uma notícia, podemos dizer –  na e para toda a assembleia. Melhor notícia não podia ser, pois se referia à realização duma profecia imensa: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres…”. Era um incansável trecho de Isaías, a que Jesus finalmente dava rosto: “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”.

Sabemos o que se seguiu, com os assombros e resistências de muitos a embaterem na persistência inabalável de Jesus. Até ao fim, até que a notícia fosse totalmente realizada na Páscoa de quem a dava, ecoando agora por tempos e espaços cada vez mais largos e mais densos, na figura daqueles e daquelas em quem Jesus de algum modo se difunde. Como ensinava Paulo aos Coríntios: “Assim como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo apesar de numerosos, constituem um só corpo, assim sucede também em Cristo. Na verdade, todos nós […] fomos baptizados num só Espírito, para constituirmos um só corpo, e a todos nos foi dado a beber um só Espírito. […] Vós sois corpo de Cristo e seus membros, cada um por sua parte”.

É daqui que certamente partimos quando consideramos a comunicação da Igreja e a Igreja, ela mesma, como comunicação. Aliás, “corpo” significa organismo e comunicação, unidade de partes e relação com os outros. Na sinagoga de Nazaré, como das margens do lago de Galileia a Jerusalém, Jesus revela-se como o Cristo (= ungido pelo Espírito) da profecia. Depois da ressurreição, partilha connosco o Espírito que recebe do Pai, para levarmos até ao fim e ao fundo da criação inteira a sua palavra e o seu gesto.

É isto a Igreja comunicante e comunicadora. Comunicante dentro de si mesma, como os diferentes órgãos dum só corpo, pois só no conjunto cada um se realiza, em mútua doação de carismas e serviços. Comunicadora para o mundo, como corpo vivo e expansivo, no imparável dinamismo do Espírito de Cristo. Mesmo entre assombros e resistências, internos ou externos, sempre na persistência inabalável de Jesus. Por isso diremos com toda a justiça que Voz do Pastor, como se chamou primeiro, ou Voz Portucalense, como se passou a chamar, é sempre da voz de Cristo que se trata ou há-de tratar.

Aliás, a sucessiva designação do nosso periódico indica dois níveis da mesma eclesialidade: há certamente a referência ao serviço episcopal, de unidade de tudo e estímulo a todos; mas “portucalense” refere-se à Diocese no seu conjunto, como Igreja particular onde se realiza a verdade integral da Igreja Católica, pela ligação com a Sé de Pedro e as outras Igrejas particulares ou locais.

De ambas as qualificações tem dado bom exemplo o nosso semanário diocesano. Não faltam notícias sobre o serviço episcopal do Porto, actualmente exercido por quatro Bispos, como não faltam notícias das várias realidades eclesiais da Diocese, bem como das outras Dioceses, “na comunhão das Igrejas”, e das imprescindíveis directivas papais.

Assim tem sido sempre e assim há-de continuar a ser. Aliás, a Voz Portucalense acolhe a realidade social que a envolve e a que se destina, quer sublinhando acontecimentos quer partilhando com ela a perspectiva evangélica das coisas, à melhor luz do Concílio Vaticano II: reconhecendo e propagando os “sinais” que o Espírito não deixa de acrescentar no mundo, para que este se realize em Cristo, alfa e ómega de tudo e de todos. Quer isto dizer que a Voz Portucalense continua a sua tradição primeva, sempre acalentada pelos prelados que a fundaram e mantiveram, de estar atenta e disponível para tudo quanto acrescente a humanidade em saber, solidariedade e beleza. É também por isso que o nosso semanário conta com tantos e crescentes leitores, aquém e além dos limites da nossa Diocese “sem fronteiras”.

Continuando, em Cristo, a realizar a profecia ouvida, a Voz Portucalense tem o seu programa definido e sempre a cumprir. Como ressoou na sinagoga de Nazaré, consiste em “anunciar a boa nova aos pobres, proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e a proclamar o ano da graça do Senhor”.

Os Evangelhos dão-nos conta da alegria que as palavras e gestos de Cristo desencadearam entre muitas testemunhas da sua “vida pública”. Falava dum Reino em que todos cabiam, a começar pelos últimos; revelava um Pai que não fazia acepção de pessoas e cuja misericórdia esperava activamente por todos os pródigos; demonstrava em si mesmo que Deus não é um ausente, mas presença absoluta e comprometida em todas as causas da justiça e da paz, radicalmente consideradas; abria na sua vida uma existência total – uma comunhão total com tudo e com todos -, que incluiu e transfigurou a própria morte. E não o fazia em abstracto, mas na observação atenta e no comentário directo de quanto se passava em redor, transformando a palavra em parábola. Do que acontecia para o que deveria acontecer.

Este é também o “lugar” da comunicação social cristã e católica, como não podia ser outro, porque de Cristo se trata, no mundo e para o mundo, como grão, fermento e luz.

Um pobre, de espírito humilde e disponível, como todos havemos de ser, espera a boa nova, semana a semana, na Voz Portucalense, para com ela ganhar motivação e ânimo. Um cego, ofuscado pela contradição das coisas, espera dela a perspectiva ajustada, que finalmente ilumine. Um cativo ou oprimido, espera libertação, aquela que ultrapasse constrangimentos e comprove a esperança. E, evangelicamente também, espera-o da narrativa de casos concretos e animadores, das análises onde não falte, em doses iguais, tanto a lucidez como a boa vontade.

A boa vontade, sim. Porque sabemos como na comunicação social vigora frequentemente a dramatização das situações, como se apenas em contraste e a traço grosso se pudessem cativar atenções e publicidades… Sabemos como para muitos trabalhadores dos media esta “lei” é pesada e abusiva. Não vigorará sobretudo no nosso semanário diocesano, que também assume como programa o último item daquela proclamação messiânica: “O Espírito do Senhor me enviou a proclamar o ano da graça da parte do Senhor”.

“Ano da graça”, ou ano jubilar, significava fim de escravidões, auxílio de necessitados, fraternidade comprovada e partilha universal dos bens sob o olhar providencial de Deus, único Senhor de tudo e de todos (cf. Lv 25). Concretizar este sonho bíblico será hoje para uma publicação católica estar atento a tudo quanto na sociedade vai nesse sentido e valorizá-lo francamente, para que, semana após semana, a proclamação da sinagoga da Nazaré reforce e alente todos os que não desistem da causa de Deus, que é a realização harmónica da criação inteira, humanidade e natureza.

Assim continuará a estar a Voz Portucalense, da própria denúncia fazendo anúncio. Assim a esperam os seus leitores e assim a farão os seus responsáveis e redactores. Como o grande Francisco de Sales (+ 1622), que atravessou um tempo cheio de lutas e controvérsias, políticas e religiosas, com tanta benevolência persistente e lúcida.

Permiti-me acrescentar algumas recomendações da sua magnífica pena, que julgo particularmente oportunas no actual contexto mediático, para todos os que na comunicação social prolongam uma visão cristã das coisas. É sempre necessária a lucidez, evitando os dois extremos da ingenuidade e da desconfiança sistemática. Por isso nos diz o padroeiro dos escritores e jornalistas: “não é proibido duvidar, nem até julgar; mas contudo não é permitido nem duvidar, nem suspeitar, senão com rigorosa exactidão, tanto quanto as razões e argumentos nos persuadem a duvidar: fora disso, as dúvidas e suspeitas são temerárias” (Introdução à vida devota, 3ª parte, capítulo 28).

E nisto há-de ser o jornalista cristão particularmente rigoroso, sobretudo quando urge dignificar as instituições públicas e sociais e promover tudo quanto aponte para o acrescentamento do bem comum, ainda que com debilidades e percalços. Longe de alimentar alarmismos ou escândalos, e obviamente respeitadas as exigências da justiça e da segurança de terceiros, manterá habitualmente uma atitude pedagógica e serena, que respeite a verdade das coisas e active uma pedagogia integral, consciente de que cada pessoa vale muito mais do que os seus êxitos ou fracassos, dizendo-se o mesmo das instituições. Acolhamos de novo S. Francisco de Sales, que tantas “razões” teria para acusar os seus detractores: “Peço-te pois […] que nunca digas mal de ninguém, nem directa nem indirectamente; foge de atribuir falsos crimes e pecados ao próximo, e de descobrir os que são secretos, e de avultar os que são manifestos, e de interpretar em mau sentido as obras boas, e de negar o bem que sabes que alguém tem, e de o dissimular maliciosamente, e de o reduzir e desmerecer por palavras: porque de todos estes modos ofenderias gravemente a Deus, mas sobretudo acusando falsamente, e negando a verdade com prejuízo do próximo” (Introdução à vida devota, 3ª parte, capítulo 29).

Concluamos então: O que mais temos de Cristo para os outros é exactamente a misericórdia divina. Misericórdia activa que, mesmo denunciando a culpa, não desista de salvar o culpado, inclusivamente pela pena, “medicinal” chamada. Ainda aqui ecoará, na Voz Portucalense e em toda a comunicação social católica o discurso inaugural da sinagoga de Nazaré.

É nos sentimentos de Cristo que o nosso glorioso semanário diocesano se garante e projecta, abrindo um futuro condigno com o serviço que dele se espera e com a fecunda herança dos que o fundaram e mantiveram. Eram esses também os sentimentos de D. António Barbosa Leão, ao fundar a Voz do Pastor em 1921, como os de D. António Ferreira Gomes, ao refundá-la como Voz Portucalense em 1970: Voz de Cristo, afinal e sempre, como a querem os seus actuais responsáveis, a quem, em nome da Diocese, agradeço e estimulo absolutamente.

Sé do Porto, 24 de Janeiro de 2010

+ Manuel Clemente

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