Homilia do Bispo do Porto no Domingo de Ramos

«A espantosa humildade de Deus…» Começamos esta Semana Maior acompanhando o Senhor na entrada em Jerusalém e ouvindo a sua Paixão, em proclamação primeira. E bom é que o façamos, seguindo com atenção devota e consequente os passos de Cristo, que outra coisa não é o ser cristão. Deu o Senhor mais passos nesse dia do que nós os demos hoje, mas não nos dispensa de os darmos todos, se queremos ser deveras seus discípulos. É um caminho de glória, mas a glória é unicamente a da Cruz. Dito doutro modo, é um caminho bem diferente daqueles em que normalmente nos desencaminhamos, mesmo com “a melhor das intenções”, ou a mais vulgar das distracções. É também pedagogia: pedagogia divina, explicitada no mistério pascal de Cristo, Filho de Deus feito homem, como o contemplaremos ao longo desta Semana, por isso mesmo Santa. Disse que o caminho de Cristo é diferente e contrário ao que espontaneamente apetecíamos. Convençamo-nos de que assim é, de facto. E tanto que, mesmo para os discípulos, foi e continua a ser desafio permanente de árdua conversão. O que espontaneamente quereríamos, para nós e para os nossos, seria crescimento e afirmação própria. “Subir na vida”, sabe-se lá à custa de quê e até de quem… Mas, mesmo sem conotação negativa, é sempre do “eu” que se trata, quando assim ficamos. Não há publicidade que não toque nesta nota, para induzir consumos, o mesmo acontecendo frequentemente nos “conselhos” que se dão aos novos. Creio até que uma das causas de tanta desistência religiosa se encontra precisamente aqui, descrendo-se de um “deus” que não garante como queríamos o êxito individual apetecido. É também uma das causas do alastramento das chamadas “religiões do sucesso”, em que tudo se promete rapidamente, da fortuna aos relacionamentos, da fama aos negócios. Alastramento efémero para cada uma delas, como o seria para nós, porque acaba sempre por aparecer outra que ainda prometa mais, com mais rapidez e muita animação… Concorrem em ofertas impossíveis e arriscam-se a “invocar o santo nome de Deus em vão”. Com Deus tudo é diferente, na espantosa humildade com que se “retrai” para que nós sejamos. Com Deus tudo é diverso, na activa paciência com que nos atrai e espera. E, quando finalmente realiza o encontro prometido, é da maneira que ouvimos num hino dos primeiros cristãos, que Paulo tomou e reforçou na Epístola aos Filipenses: “Aparecendo como homem, [Cristo Jesus] humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes”. Humilhou-se a si mesmo: com um total despojamento de si, para que nele coubesse toda a prostração do mundo, assim levantada pelo amor com que a assumia e salvava. Humilhou-se a si mesmo, porque a autêntica condição divina que compartilha com o Pai no amor do Espírito não transporta outro poder que não seja o do amor, ou seja, da auto-doação, da vida no outro e para o outro. Assim é Cristo com o Pai, assim quis ser Cristo connosco para o Pai. Antes mesmo de ser acolhimento nosso, a salvação é dádiva divina, que em Cristo faz da nossa humanidade, por si assumida, assentimento e regresso ao amor de Deus Pai. Irmãos e irmãs, começar a Semana Santa em 2009 significa necessariamente adesão e compromisso pessoal em relação á misericórdia divina, revelada passo a passo nas atitudes definitivas de Cristo, tão manifestadas na Liturgia e na Palavra destes dias. Destes dias, precisamente, agravados que são por dificuldades grandes na sociedade e nas famílias. Nada disto poderá ficar longe da Cruz do Senhor, onde nos entrega a sua vida para refazer o mundo na caridade, na justiça e na paz. Não faltam, é certo, boas-vontades e iniciativas de múltipla proveniência, para ultrapassarmos a conjuntura. Tudo bom em geral e por mais que seja. Mas não devemos esquecer a conotação moral da presente crise, no que também resulte de ambições desmedidas ou pouca lisura de processos. A oferta de Cristo recebe-se na conversão das nossas vidas, e só assim é autêntica e frutuosa. E devemos – muito especialmente os que queremos “santa” esta semana – recolher de Cristo a lição da sua vida e o fruto inteiro da sua entrega. Voltemos ao hino da Epístola aos Filipenses, que nos dá a maior razão do que ouvimos e sabemos, a partir das Leituras de hoje: “Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens […]. Por isso Deus O exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes…”. Sim, irmãos e irmãs, aprendamos de vez que não há “sucesso” que perdure senão na humildade autêntica; que não há “vitória” de ninguém senão quando se entrega a Deus e aos outros. Aprendamos com Cristo – especialmente os jovens a quem este dia é dedicado – que serão bem recordados, daqui a dois mil anos e sempre, apenas aqueles que fizeram da sua vida a partilha generosa do que têm e do que são, e são exactamente porque oferecem. Saudamos vivamente todos quantos, nos diversos sectores, com especial relevo para as famílias, as escolas e as empresas, não desistem de garantir o futuro geral pela maior disponibilidade própria, alimentando a esperança duma sociedade que neles encontra o melhor de si mesma. Serão geralmente arredios à fama, mas inclui-os Deus na sua glória, porque vivem do Espírito de Cristo e prolongam o seu serviço ao mundo. A Igreja, enquanto Igreja, não pode nem deve realizar directamente as variadas funções de construção e reconstrução do mundo, que Deus confiou aos “filhos dos homens” no seu todo. Mas a Igreja, enquanto Igreja, pode e deve preencher e animar todas as actividades humanas com aquele Espírito que o Filho de Deus difundiu na terra para que a aventura humana se retome e conclua na paz. A Igreja – que é Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito – na complementaridade dos seus ministérios e carismas, começa hoje, no Portugal que somos em 2009, uma Semana que a fará mais santa, na medida em que a Palavra for mais ouvida, a Oração mais continuada, os Sacramentos mais recebidos e a Caridade mais actuada. Tudo nos converterá também mais aos sentimentos de Cristo e de quem “está verdadeiramente em Cristo”, para reproduzirmos entre familiares e sem-família, empregados e sem-emprego, saudáveis e enfermos, acompanhados e sós de múltiplas solidões, o serviço humilde e consequente d’Aquele a quem chamamos Mestre e Senhor. Pedíamo-lo na oração colecta, que seria bom decorarmos – guardando-a no coração – qual lema e programa para estes especialíssimos dias. Lembrando que Deus nos deu um exemplo de humildade na incarnação e na cruz do seu Filho, rogávamos assim: “Fazei que sigamos os ensinamentos da sua paixão, para merecermos tomar parte na glória da sua ressurreição”. Retomando a reflexão inicial, de que espontaneamente desejamos auto-afirmação e sucesso, não se trata propriamente de anular, mas de converter o desejo, na luz pascal que recebemos. Sim, irmãos e irmãs, isso mesmo que almejamos, como realização pessoal e reconhecimento geral, pode realmente acontecer e na mais límpida e duradoura das verdades. Acontecerá decerto. Mas acontecerá apenas se a realização significar entrega e o reconhecimento for mútuo e generoso. Acontecerá na Cruz, na maneira divina de ser, na maneira mais humana de acontecer. Com tudo isto, amados irmãos e irmãs, peçamos insistentemente que a Paixão de Cristo motive e sustente a esperança universal. E que a Páscoa que preparamos nos aproxime, em Cristo, de Deus e de todos. Aí nos reencontraremos, na verdade de Deus e no melhor de nós mesmos. Sé do Porto, 5 de Abril de 2009 + Manuel Clemente

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