A ressurreição de Cristo garante-nos que é possível…
Ouvimos, amados irmãos, na 1ª Leitura, como o apóstolo Pedro falava naqueles dias primordiais, resumindo já a vida de Jesus no seu significado salvador. O trecho é de São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, autêntico compêndio do que a evangelização foi sempre e do que a nova evangelização há de ser.
Primeiro, o resumo do que essencialmente acontecera “Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava com Ele”. Depois, o testemunho apostólico: “Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez no país dos judeus e em Jerusalém”. E o núcleo pascal da pregação: “eles mataram-no, suspendendo-O na cruz. Deus ressuscitou-O ao terceiro dia”. E a inclusão dos discípulos na ressurreição e no anúncio: “[Deus] permitiu-Lhe manifestar-Se, não a todo o povo, mas às testemunhas de antemão designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos. Jesus mandou-nos pregar ao povo e testemunhar que Ele foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos”. Para tal se orientavam as profecias antigas, agora magnificamente realizadas: “É d’Ele que todos os profetas dão o seguinte testemunho: quem acredita n’Ele recebe pelo seu nome a remissão dos pecados”.
O trecho é de São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, autêntico compêndio do que a evangelização foi sempre e do que a nova evangelização há de ser. Sem esquecer nenhum dos pontos de tão inspirado elenco:
1º) Relembrando imprescindivelmente o que com Jesus aconteceu, ou melhor, o acontecimento Jesus, reconhecido como o Cristo, isto é, ungido pelo Espírito e assim mesmo salvando e curando.
Ecoava nesta referência a grande admiração que Jesus suscitara nos primeiros que o viram e escutaram, de coração disponível e pobre. Magnífica a atestação, como ficara na memória recente: Jesus “passou fazendo o bem”. Isso mesmo ficara e é o que sempre e só resulta do Evangelho vivido e oferecido, tempo após tempo, urgência após urgência. Assim agora nos que seguem Cristo e se queiram definir a partir dele. Escutemo-lo, como a sua ressurreição ecoa: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35).
Basta-nos isso e de então para agora: que a narrativa de Jesus, nunca por demais lembrada, se alargue na narrativa concreta da sua Igreja, nunca por demais praticada. Sempre ao modo d’Ele, sempre na qualidade evangélica das coisas. – E do modo mais concreto e solidário, pois se trata de “fazer” o bem!
2º) É de Páscoa que falamos, quando testemunhamos Jesus. Foi morto e suspenso na cruz e assim mesmo ressuscitou, abrindo-nos o horizonte insuspeitado da vida, ganha precisamente quando se oferece.
Verdade central, que aqui nos trouxe à Paixão e daqui nos envia ressuscitados. Verdade tão forte, que, nunca previsível nem por demais assimilada, ainda assim nos atrai, em crescente certeza, sempre nas palavras de Jesus: “Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto [e precisamente na cruz], a fim de que todo o que crê nele tenha a vida eterna” (Jo 3, 14-15).
Irmãos caríssimos: na comunidade cristã e ainda fora dela, na família, na escola ou no trabalho, seja onde for e quando for, a evangelização só pascalmente acontece. Haverá Evangelho onde houver vida oferecida, desapossamento de si para dar lugar ao outro, obediência ao Pai para alargar um mundo de irmãos, como o que finalmente nasceu ao pé da cruz.
3º) Terceiro e fundamental ponto é a iniciativa divina, que só ela nos deslumbra e envia. Pedro, no seu discurso, diz expressamente que Deus manifestou Jesus àqueles que unicamente quis, para testemunharem a ressurreição. Caso particular dos primeiros, que “comeram e beberam com o Ressuscitado”.
Imensa graça, certamente, mas enormíssimo encargo, que lhes preencheu a vida e até a morte, transmudada em martírio. Mas graça e encargo nosso também, que fortemente experimentamos a sua presença e companhia, e nos fazemos pregoeiros do seu convite universal.
De cada Eucaristia celebrada, partimos para contá-la a toda a gente, qual experiência viva da comunhão com o Ressuscitado. Como os discípulos de Emaús, que “contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir do pão” (Lc 24, 35).
Poderíamos perguntar-nos a razão de tudo isto, de ser por alguns que o anúncio chega a todos. Poderíamos até dispensar-nos, esperando que outros o façam e até melhor do que nós, ou, pelo menos, antes de nós… Como Moisés, alegando dificuldade em falar (cf Ex 4, 10); ou como os que tinham coisas mais urgentes para fazer (cf. Lc 9, 57-62).
Não, irmãos: aceitemos que a evangelização acontece por iniciativa divina e vai do pouco – pouquíssimo – para o muito. A experiência do Ressuscitado, esta mesma que nos tem aqui em renovado júbilo pascal, é-nos gratuitamente oferecida, para que gratuitamente a comuniquemos a todos. Não é mérito nosso, é graça de Deus, desabrochando como as flores, do pequeno botão à imensa corola.
4º) E o conteúdo é como segue: “Jesus mandou-nos pregar ao povo e testemunhar que Ele foi constituído juiz dos vivos e dos mortos”.
Prometendo a vinda do Espírito, dissera Jesus que Ele manifestaria um julgamento, “pois o príncipe deste mundo ficou condenado” (Jo 16, 11). E assim foi, de facto, porque a condenação injustíssima de Jesus à morte, redundou em demonstração plena da sua verdade e justiça.
Assim estaremos nós agora, atestando por palavras e obras que a justiça de Deus é a vitória da vida, como Jesus a conseguiu e a todos oferece. Tudo o mais ruirá, como ruiu na altura, em incontáveis escombros de injustiça e mentira.
“Juiz dos vivos e dos mortos”, pois na ressurreição de Cristo toda a realidade se abarca. Pelos mortos, rezamos; mas aos vivos atestamos que a justiça de Deus é a Páscoa de Jesus realizada na terra, como tudo o que ela implica de Evangelho compartilhado.
– Tanta evangelização a fazer de novo, a partir de cada um de nós e das nossas próprias comunidades, manifestando em redor a justiça de Deus, pela autenticidade dos crentes! Bastaria demonstrar nas vidas cada uma das bem-aventuranças, com o anúncio e a justiça que transportam, tão diversas dos cálculos mundanos:
Pobreza espiritual para pertencer ao Reino, choro para a consolação, mansidão para possuir a terra, fome e sede de justiça para ser saciado, misericórdia para alcançar misericórdia, pureza de coração para ver a Deus, pacificação para ser filho de Deus, perseguição até, mas por causa da verdadeira justiça…
Só assim será grande a recompensa no Céu; só assim consolidada a justiça na terra. A ressurreição de Cristo garante-nos que é possível. – Isto mesmo irradiaremos para a Páscoa total!
Sé do Porto, 24 de abril de 2011
D. Manuel Clemente, bispo do Porto