Homilia do Bispo do Porto no Domingo de Páscoa

O Sol de Justiça rebrilha nos céus!

Amados irmãos e irmãs, todos baptizados na Páscoa de Cristo:

Chegámos ao termo do Tríduo Pascal, para o continuarmos agora na Páscoa de sempre, única vida dos cristãos que somos e queremos ser.

Tantas passagens escutadas da Palavra de Deus, tantos gestos repetidos da Liturgia cristã, ao longo destes dias, trazem-nos completas as últimas coisas que a Páscoa de Cristo finalmente ofereceu.

Últimas coisas, como verdadeiramente as experimentamos e sabemos. Quem teve alguma notícia de Cristo, da sua verdade e da sua caridade, já não buscará senão aprofundá-las e absorvê-las, unindo-se a Ele, na mesma realidade e destino, como filho de Deus, autenticamente.

– Não reparais, irmãos e irmãs, como sucede exactamente assim?! Outras palavras, mesmo da última semana, que nos tenham alegrado ou entristecido, já passaram. Outros acontecimentos, na selecção mediática com que tenham sido apresentados ou na vivência pessoal em que nos tenham atingido, sucederam-se também. E mesmo quando deixem lastro e pontos necessariamente a rever, foram de ontem, de anteontem, de outro tempo já.

Mas a Bíblia inteira – e muito especialmente o que na vida de Jesus culmina ou desponta – é um hoje definitivo, que não cansa ouvir, nem se esgota no que oferece. É como se fosse dito pela primeiríssima vez, tão absoluta é a notícia, tão pleno é o anúncio. E este novo som permanecerá dominante, mesmo quando ainda se oiçam os antigos.

Os acontecimentos pascais, tiveram cronologia decerto: naquele preciso ano, naquela precisa cidade, com aquela exacta personagem. Mas naquela  personagem  – Jesus Cristo – acontecia também Deus no mundo, Deus humanado e homem concluído, novo e último Adão, em quem toda a criação se realiza, no assentimento consciente e livre ao seu próprio Criador.

Nós, amados irmãos e irmãs, sabemos que é assim. Daqui não saímos, pois só por aqui entramos na comunhão com Deus. Pela porta que Cristo abre, como rolada foi a grande pedra do sepulcro; pela porta que Cristo é, abrindo em si mesmo o acesso universal ao Pai, verdadeira fonte e alimento dos nossos corações carentes. Certamente recordais as suas palavras: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim estará salvo; há-de entrar e sair e achará pastagem. […] Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 9-19).

Entramos na cinquentena pascal, pleno Pentecostes do Espírito. Deixai-me pedir-vos uma atenção redobrada à Palavra de Deus, à liturgia de cada dia, à Via Lucis que se abre, reproduzindo nas vossas vidas as aparições do Ressuscitado, cuja presença se oferece agora ao mundo inteiro.

Nas vossas casas, nos vossos trabalhos e repousos, nos vossos familiares e em todos de quem vos aproximardes, Ele estará. Nas vossas comunidades cristãs, nos vossos momentos de recolhimento e oração, Ele estará. – Como estará na nossa Diocese do Porto, em Missão continuada, que com alegria prepara a estimulante visita do tão lúcido e corajoso Sucessor de Pedro, o Papa Bento XVI!

Sucessor de quem nos falava nos Actos dos Apóstolos, como há pouco ouvimos, resumindo a vida de Cristo, toda ela pascal, antes e depois da sua morte e ressurreição.

Vida resumida em “passar fazendo o bem”; vida rejeitada por alguns, que o levaram à morte; vida ressuscitada por Deus Pai, que a garantia. E Pedro concluía com estas palavras: “Deus ressucitou-O ao terceiro dia e permitiu-Lhe manifestar-Se, não a todo o povo, mas às testemunhas de antemão designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos. Jesus mandou-nos pregar ao povo e testemunhar que Ele foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos”.

Detalhemos um pouco estas afirmações de Pedro, para delas extrairmos um inadiável exercício pascal:

1ª) Deus Pai ressuscitou Jesus e permitiu que se manifestasse a algumas testemunhas. A vida do Ressuscitado não é como a que levara antes da sua morte. É Ele sim e exactamente Ele, mas na plena glória de Deus, tão universal como inabarcável pela nossa restrita capacidade de ver. Nas palavras dum exegeta clássico, “devemos concluir que, segundo a tradição evangélica […], Jesus ressuscitado é, de por si, invisível aos olhos dos mortais; se ‘aparece’ não é senão em virtude duma intervenção do poder de Deus que [O] torna perceptível aos homens” (cf. BOISMARD, M.-É. – Il realismo dei racconti evangelici, In BERTEN, I. [et al.] – La Rissurrezione. Brescia: Paideia Editrice, 1983, p. 42).

Pois bem, essas testemunhas somos também nós, que quando ouvimos a sua Palavra, a reconhecemos como “Palavra da salvação”. Somos também nós, que, quando nos apresentam o Corpo de Cristo, dizemos “Amen!”. Somos ainda nós, que O reconhecemos nos irmãos, todos membros do seu único corpo. Em todos estes sinais, o Espírito de Deus nos ilumina os olhos e abre o coração, para entrevermos realmente o Ressuscitado.

2ª) Testemunhas da ressurreição foram aqueles que “comeram e beberam com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos”. Foram certamente, como ouviremos nos dias seguintes, sobre as “refeições” do Ressuscitado. Mas somos ainda nós, que com Ele continuamos a comunhão que essas refeições significam. Somos nós, que na refeição eucarística somos assimilados pelo alimento, em vez de o assimilarmos a ele.

Lembrou-o muito sugestivamente o Papa Bento XVI: “De facto, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito do verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o carácter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-Lo dizer: ‘Sou o pão dos fortes; cresce e comer-Me-ás. Não Me transformarás em ti como ao alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em Mim’ [Confissões 7, 10, 16]. Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele” (Sacramentum Caritatis, nº 70).

– Pois não é verdade que, precisamente na celebração eucarística – Comunidade, Palavra e Pão -, experimentamos e dizemos que “Ele está no meio de nós”?! – Pois não é verdade que, a partir da Eucaristia e de quanto mais correcta e responsavelmente participarmos nela, somos enviados a alargar no mundo a comunhão com o Ressuscitado: “- Ide em paz e o Senhor vos acompanhe!”?!

Oiçamos esta voz que nos chega das primeiras gerações cristãs, cheia de vigor pascal, tão intenso como expansivo: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, […] isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa” (1 Jo 1, 1-4).

Tudo importante neste trecho, da alegria de receber à alegria de comunicar a vida ressuscitada e ressuscitadora de Cristo. Decerto a nossa alegria também, encargo sumamente pascal.

3ª) Jesus mandou-os anunciar que fora constituído por Deus Pai juiz dos vivos e dos mortos, assim atestando a sua condição divina, pois só a Deus tal pertence.

A eles e agora a nós se dirige o mesmo mandato, caríssimos irmãos e irmãs. E não vos pareça estranha a injunção, pois é também disso que se trata, a saber, que o critério definitivo do que seja viver ou morrer é n’Ele mesmo que se estabelece e encontra. Em Cristo, a justiça e a misericórdia coincidem perfeitamente, pois não se limita a julgar-nos, antes nos faz justos para nos salvarmos pela sua graça. Na sua Igreja agora, semelhante tem de ser a atitude, propondo sempre a verdade na caridade. E também na humildade com que comunicamos aos outros aquilo mesmo que a graça de Cristo nos oferece a nós, que tão sofrivelmente a recebemos, por vezes.

Tem isto muita importância hoje, caríssimos irmãos e irmãs, no modo de nos apresentarmos, cristãos e pascais, diante dos outros. Em Jesus tudo era conforme, pois a verdade que propunha, Ele próprio a era e demonstrava. Não chegou isto para convencer a todos, mas chegou para sobreviver à própria morte, indesmentível.

A mentalidade e especialmente a sensibilidade actuais são muito ciosas da chamada liberdade individual e reagem quase instintivamente a qualquer afirmação que pareça limitá-la. Se, além disso, há alguma má consciência ou remorso, a rejeição é maior e mais violenta, e tenta destruir a fonte da interpelação.

Se o próprio Cristo, coerência absoluta que era, se viu acusado e condenado injustamente por quem não recebia a luz que irradiava, quanto mais não seremos rejeitados hoje, se, mesmo falando d’Ele, O encobrirmos com as nossas sombras?!

Daqui irmãos a urgência de nos abrirmos inteiramente à luz do Ressuscitado, para que nos ressuscite também. Cinquenta dias pascais, para que a alegria que celebramos hoje permaneça e irradie em muita acção de graças a Deus e em muita presença pascal na sociedade, alargando as fronteiras da justiça, da solidariedade e da paz.

O Inverno longo e rigoroso que passámos dará lugar agora à Primavera mais luminosa. – Com a condição imprescindível e constante de nos convertermos de vez ao “Sol de Justiça que rebrilha nos céus”!

Sé do Porto, 4 de Abril de 2010

+ Manuel Clemente

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top