Homilia do bispo do Porto na Vigília Pascal

Nós conseguimos divisar-Lhe o rosto…

“Depois de passar o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para irem embalsamar Jesus. e no primeiro dia da semana, partindo muito cedo, chegaram ao sepulcro ao nascer do sol…”

– Amados irmãos e irmãs, que intensíssima noite, esta aqui vivida, como em tantas igrejas do mundo! Sucederam-se os ritos, desfilaram pelas leituras etapas decisivas da história sagrada; ouvimos São Paulo a falar-nos do batismo, lembrando-nos a todos – que sempre precisamos de ser lembrados – o que ele realmente é e representa: “Fomos batizados com Cristo pelo batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova!”. – Quanta verdade a retomar, quanta vida a reviver!

E assim mesmo, da escuridão em que começámos à luz que refulgiu no círio pascal, ateando através de nós ao mundo inteiro aquele “fogo” novo que Cristo trouxe à terra. – Tudo essencial, tudo necessário, tudo tão urgente! Por isso aqui estamos, como numa fonte; por isso procuramos, como quem descobre.

Assim aconteceu com aquelas mulheres que o Evangelho evocou: “Depois de passar o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para irem embalsamar Jesus. e no primeiro dia da semana, partindo muito cedo, chegaram ao sepulcro ao nascer do sol…”. Tudo é importante nesta descrição, por elas e por nós, para continuar a acontecer: as mulheres, o cuidado, o risco e a alvorada. Importante nelas e importante em nós, para a mesma alvorada que ansiamos, nas atuais circunstâncias, que nos tocam pessoalmente ou a todos.

Daquelas e outras mulheres, próximas e discípulas de Jesus Cristo, falam os Evangelhos e várias vezes o fazem. Algumas seguiram-no e serviram-no desde o princípio da pregação (cf Lc 8, 1-3). E foram mais persistentes do que outros, na companhia que lhe fizeram até ao fim, quando as dificuldades aumentaram e o abandono foi geral.

João Paulo II quis salientar esta adesão feminina e exemplar para todos nós, com palavras bem precisas: “Desde o início da missão de Cristo, a mulher demonstra para com Ele e o seu mistério uma sensibilidade especial que corresponde a uma característica da sua feminilidade. É preciso dizer, além do mais, que uma confirmação particular disso se verifica em relação ao mistério pascal, não só no momento da Cruz, mas também na manhã da Ressurreição” (Mulieris Dignitatem, 16).

   Uma sensibilidade especial para com Jesus e o seu mistério: há no coração feminino uma atenção que adivinha e nos pode e deve contagiar também. Nas nossas famílias e comunidades, continuam a passar pela mulher os elos mais profundos e determinantes da fé recebida e transmitida, com ou sem palavras. É interessante verificar como, logo nas primeiras gerações cristãs, assim acontecia já. Atesta-o este significativo passo da 2ª carta de Paulo a Timóteo: “Ao lembrar-me das tuas lágrimas, anseio ver-te, para completar a minha alegria, pois trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Loide e na tua mãe Eunice e que, estou seguro, se encontra também em ti” (2 Tm 1, 4-5).

Evoco Paulo e João Paulo II, induzido pelo Evangelho pascal que escutámos, para reconhecer e agradecer profundamente o papel da mulher na Igreja, mais revelado a esta luz do que a qualquer outra que se quisesse, até ao arrepio da tradição eclesial… Porque todos nós indicaríamos facilmente vários nomes femininos que nos tocaram de perto, como anunciadoras da ressurreição de Cristo: avós, mães, catequistas…  

Concluamos este ponto, mais convictos do que somos como Igreja, herdando daquelas santas mulheres a constância crente e a coragem de permanecer junto a Cristo, mesmo em horizonte toldado. Foram as primeiras a procurá-lo, até no que apenas restasse dele, num túmulo que ainda julgavam cerrado. Foram, por isso mesmo, as primeiras a receber o anúncio da ressurreição.

 

 E partiram “muito cedo”, como nós havemos de O buscar antes de mais. Para que a pessoa viva de Cristo se apresente assim, consistente e plena, a cada um de nós, requer-se uma atenção constante e prioritária a tantos vazios, aparentes vazios, que Ele já preenche.

Isto mesmo sabemos nós também. – Pois não é verdade, caríssimos irmãos e irmãs, que só uma fé atenta nos faz divisar a Cristo em cada lugar e tempo, mesmo nos mais desamparados e inóspitos, real ou aparentemente assim?! Túmulos vazios, vidas esvaziadas, sentimentos ocos, atos sem sentido, deambulações sem rumo… Podemos fugir-lhes, podemos esquecê-los, pensar noutras coisas e até diversões. Porém, tarde ou cedo, deceções e medos tocam-nos também, como aos discípulos da altura, escondidos de tudo…

Não, amados irmãos, nós não queremos isso. Como aquelas mulheres, partiremos muito cedo, dia após dia, ao primeiro acordar que tivermos, para procurar Jesus. Elas pensavam embalsamar-lhe os restos, nós conseguiremos divisar-lhe o rosto. Assim é e será connosco, pois “quem procura encontra” e, mais cedo que nós, nos procurou Ele já. Como garantiu: “Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão de abrir ” (Mt 7, 7). E, já ressuscitado, retoma a iniciativa: “Olha que eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3, 20).

A todos os aqui presentes, como aos que nos seguem pela Rádio Renascença, nesta noite de grandes encontros, dirijo um convite, firme e confirmado: Mesmo que a solidão, a falta de saúde ou trabalho, ou ainda algo mais vos pese, a vós ou a algum dos vossos, nas circunstâncias concretas que viveis agora, imitai aquelas santas mulheres, acorrei física ou mentalmente a algum sinal de Cristo – neste templo iluminado pelo círio aceso, num crucifixo, num Evangelho aberto, numa boa memória -, e deixai que ressoem claras, cada vez mais claras, as fortes palavras que ali ouviram: “ Não vos assusteis. – Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui!”. Deixai-as ressoar profundamente, até ao mais íntimo dos vossos corações; e a pouco e pouco, mais e mais, tudo se preencherá com uma presença viva, nova e restauradora: porventura mais que nunca e cada vez mais, Ele será “Emanuel”, quer dizer, “Deus connosco”.

Para isso mesmo estamos em vigília, para que possa acontecer. Por Ele está garantido, por nós há de ser acolhido, ativamente acolhido. Por nós e por outros, que O esperam de nós, como os discípulos o souberam depois pelo testemunho daquelas mulheres, que não perderam ânimo e ganharam tudo.

 

Nas paredes do claustro desta sé do Porto, existem sete grandes painéis de azulejos setecentistas, alusivos ao Cântico dos Cânticos, magnífico poema bíblico, em que se intui o amor entre Deus e o seu povo, Cristo e a Igreja, sua esposa. Amor clarividente, em que tudo se esclarece. Podemos sempre revisitá-los e retomar-lhes a alusão: o descanso só possível com o esposo; as belas palavras que este sempre dirige à esposa, quando ela mais precisa; a felicidade do re-encontro; o descanso por fim; o convite a ir além; a esposa adornada, qual cidade vitoriosa; e a atração constante do perfume do esposo. 

Daqui não sairá mais a esposa do Cântico, que nos representa a todos, como o souberam e cantaram os místicos cristãos. Se a esposa do livro bíblico acaba a pedir: “Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor” (Cant 8, 6), São João da Cruz continuará com estes versos célebres: “Apaga o meu desgosto, / Pois mais ninguém consegue desfazê-lo, / E veja-Te o meu rosto, / Que és lume a acendê-lo, / E apenas para Ti eu quero tê-lo, / Mostra a tua presença, / Matem-me a tua vista e formosura, / Pois olha que a doença / De amor jamais se cura / Senão com a presença e a figura” (Cântico espiritual. Canções entre a alma e o esposo, 10-11).

A Escritura Sagrada resume-se, aliás, num encontro ansiado e finalmente acontecido. À Samaritana, Jesus pediu: “Dá-me de beber!”; na cruz, resumiu-se num grito: “Tenho sede!”. É esta sede de Deus por nós que faz brotar a nossa sede d’Ele, que unicamente nos sacia no verdadeiro amor para que existimos. Para tal nos convidou Cristo: “ – Se alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede!” (Jo 7, 37).

 Do sepulcro vazio brotou a inextinguível fonte de que bebemos todos, hoje e ainda mais! Já São Paulo, iluminado pela luz que o deslumbrava, resumiu deste modo o que fazia e porque o fazia, no autêntico batismo em que renascera (cf  Ac 9, 18): “Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sentimentos, conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos. Não que o tenha já alcançado ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus” (Fl 3, 10-12).

Concluamos, por fim, para continuarmos sempre. Desta corrida, irmãos e irmãs, temos nós agora o prémio oferecido: – Não tardemos em recebê-lo, com um coração grato e devolvido! Há muitos à espera que lho comuniquemos, como as santas mulheres o fizeram então!

Sé do Porto, 7-8 de Abril de 2012

+ Manuel Clemente

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