A salvação do mundo, na vida em que renascemos todos… Amados irmãos e irmãs, que “longo” percurso fizemos nesta noite santa… Diferentemente dos nossos percursos habituais, não o definimos nós, nem lhe marcámos as etapas. Preparámo-lo decerto na Quaresma, em grande disponibilidade interior e consequente. Mas esta mesma disponibilidade nos trouxe aqui, para nos deixarmos guiar pela Luz de Cristo, em que toda a Palavra ouvida encontra a absoluta clareza. E assim foi: em escasso tempo, viemos da criação ao êxodo e dos profetas à nova criação, em que agora renascemos… Longuíssimo percurso, aliás não feito ainda por grande parte da humanidade, nossa e alheia; longuíssimo percurso que numa só vigília nos é oferecido por quem o perfez completamente: – Cristo, ressurreição das nossas vidas baptizadas! Não tem nada de meramente teórico ou genérico o percurso que fizemos. É tão concreto e preciso como as vidas de cada um de nós, que nele somos inscritos pelo Espírito. A criação não é, de facto, um relato antigo da cronologia inicial. Sabemos bem – e é bom que o saibamos – que aquela separação da luz e das trevas, aquela emergência da terra sobre as águas, aquela profusão de flora e fauna, aquela formação da humanidade, complementarmente masculina e feminina, essencialmente familiar e sempre encarregada de guardar e desenvolver a criação: tudo isto é realidade e missão para todos nós hoje em dia e para todo o homem e mulher enquanto o mundo for mundo. Como sempre acontecerá positivamente, apenas e enquanto cada um de nós e a humanidade em geral nos mantivermos unidos ao Criador e fiéis ao seu desígnio. Pelo contrário, também seriam nossas, por acção ou omissão, por causa ou consequência, as páginas seguintes, de pecado e desamor, para com Deus, com os outros e com o mundo. Mas serão nossas, sobretudo nossas, as etapas sucessivas deste percurso pascal. Realizamos, mais do que as estrelas do céu, a herança prometida a Abraão. Somos libertados do “Egipto” dos nossos múltiplos cativeiros de corpo e espírito, por muitos gestos maravilhosos de Deus. Somos exortados por tantos profetas, que retomam hoje as palavras dos antigos que escutámos, para nos dizerem, com reforçada evidência, que a promessa de Deus já tem nome e figura, no Messias anunciado e finalmente oferecido. De tudo somos contemporâneos agora, na grande luz que nos amanheceu esta noite. Mais ainda: por tudo o que ouvimos, somos contemporâneos de Cristo, que na sua Páscoa resgata e conclui a criação inteira. Páscoa de Cristo, luz da claridade plena, alma da caridade inteira, de Deus para nós e de nós para o mundo, que há-de ver com os nossos olhos e assim renascer também. Pedíamo-lo há pouco, peçamo-lo sempre: “Deus de infinita bondade, que fazeis resplandecer esta sacratíssima noite com a glória da ressurreição do Senhor, renovai na vossa Igreja o Espírito da adopção filial, para que, renovados no corpo e na alma, nos entreguemos plenamente ao vosso serviço”. Serviço que é louvar a Deus, serviço que é “ressuscitar” o mundo. Assim passámos da obscuridade à plena luz. Passámos a outra compreensão das coisas, só possível nesta revelação concluída e projectada, assimilada e convivida. E é tudo tão surpreendente que não o imaginaríamos nunca, apesar das profecias. Assim sucedeu na madrugada pascal, do sepulcro vazio a que viemos à certeza da vida que ocorreu. Cristo está vivo, maravilhosamente vivo, como O reconhecemos entre nós, como o souberam aquelas primeiras discípulas, no meio de tanto susto… Vencida a morte, toda a esperança é possível. Importa agora, irmãos e irmãs, importa especialmente a vós, caríssimos catecúmenos, assimilar e comunicar, pelos sentimentos e pelas vidas, a infinda actualidade pascal. – E que quer isto dizer, na Páscoa de 2009, aqui onde estamos e ali, onde devemos chegar? Há-de significar, resumindo quanto ouvimos na sucessão das leituras: guardar e fazer frutificar a criação, sem a deteriorar nem distorcer a sua realidade própria e o seu equilíbrio geral; reconhecer e respeitar activamente a vida como dom de Deus, em cada pessoa, da concepção à morte natural; tudo fazer para que as famílias se constituam com responsabilidade e viabilidade, como células insubstituíveis duma sociedade inteiramente humana; conseguir que todos acedam ao trabalho que, além de necessário para ganhar o sustento, é condição indispensável para a realização de cada ser humano; empenhar-se em tudo o que contribua para a justiça e a paz num mundo que é de todos e para todos, como Deus o criou e agora recupera em Cristo. Sim, irmãos e irmãs, tudo isto é próprio de baptizados, quais sacramentos vivos da ressurreição de Cristo, recriando no seu Espírito este mundo que Deus ama e salva. E, quando a incerteza pesa sobre tantos concidadãos nossos, manifestar que a esperança tem nome e lugar certo, na ressurreição de Cristo e no testemunho de quantos sabem, a partir dela, que o futuro não se garante tanto por equilíbrios frágeis, quando não dúbios e demasiadamente nossos, como pela disponibilidade de quem vive da caridade final. Quem está livre da morte é infinitamente capaz de gerar vida: digo-o de Cristo e dos cristãos. Não nos diga respeito a crítica dum filósofo oitocentista, que não acreditava nos cristãos por não parecerem discípulos de um ressuscitado… Muito pelo contrário, haja em cada um de nós a serenidade activa de quem sabe que tudo se pode reconstruir a partir da vida e do Espírito de Cristo. No seu modo simples, como é próprio da verdade de Deus, como é próprio dos seus filhos também. Bem sabemos e sentimos que a visão que nos damos do mundo, mais ou menos próximo, quer através dos media quer pelo que nós próprios dizemos uns aos outros, se fica mais pelo negativo do que pelo positivo. Falo em geral, mas verifico-o quase sempre assim… Contudo, irmãos e irmãs, o significado desta noite alumiada foi-nos dado no círio aceso, dissipando as trevas com a luz de Cristo ressuscitado. Nesta luz renascemos nós e nós para os outros, quais círios vivos e pregões constantes da vitória da caridade e da justiça divinas. Por isso mesmo, a consequência desta vigília é uma outra perspectivação das coisas, outra apreciação delas, outra esperança comunicada, ainda nas situações mais complexas, ainda perante factos objectivamente negativos. Nada fica fora da misericórdia divina, nada permanece opaco à luz pascal. Sendo esta a nossa convicção mais profunda, também deve ser a nossa motivação permanente. Grande e “muito grande”, dizia o Evangelho, era a pedra que tapava o sepulcro de Cristo, como que escondendo para sempre o que restasse das suas promessas. Assim se nos deparam as dificuldades e contrafacções de que a vida – pessoal, familiar, social e até eclesial – poderá sofrer. Mas, olhando melhor, olhando com a luz pascal que já iluminava aquelas três mulheres, veremos que a pedra foi removida, como removidos são, por Cristo ressuscitado, todos os obstáculos que se levantem à vida, todas as resistências que se oponham ao verdadeiro amor. Para isso também, caríssimos catecúmenos, recebereis agora o Baptismo, o Crisma e a Eucaristia. Convosco, todos nós retomaremos as promessas baptismais, nunca por demais lembradas. Mas, sobretudo, a promessa que Cristo inteiramente cumpriu e a sua ressurreição agora distribui por nós, para a salvação do mundo, na vida em que renascemos todos! Sé do Porto, 11-12 de Abril de 2009 + Manuel Clemente