«Convertamo-nos a Deus, servindo o próximo!» “Convertei-vos a Mim de todo o coração”, clamou-nos Deus pela boca do profeta Joel. “Reconciliai-vos com Deus”, pediu-nos Paulo, em nome de Cristo. E, sobre a esmola, a oração e o jejum, disse-nos o próprio Cristo que tudo se há-de passar discretamente, entre nós e Deus, “que vê o que está oculto e dará a recompensa”. Será este, irmãos e irmãs, o próprio cerne da Quaresma, como da religião autêntica, nunca por demais retomada. Aquela que Jesus Cristo nos abre com a sua mesma Quaresma, repudiando o ter, o parecer e o poder, para simplesmente ser: ser Filho de Deus humanado, ser humanidade restaurada na filiação divina. Jesus coloca-nos os corações e as vidas, ou seja, as vidas no seu coração e essência, na única realidade consistente, que é o próprio Deus Pai, em que tudo se sustenta. Aí colocados os corações, como o de Jesus no Pai, estaremos finalmente pacificados e livres, proporcionando ao mundo que integramos segurança certa e liberdade também, ecologia integral, se quisermos dizer assim. Sabemo-lo por experiência, como também o aprendemos por contraste. Contrasta, irmãos e irmãs, contrasta com isto um coração fechado em si mesmo, no encurvamento do desejo e no egocentrismo da vida. Quanto mais no ter, quanto menos no ser, é bom repeti-lo. Descentramento de si, desejos convertidos e vidas realmente oferecidas, isso sim, garante-nos na caridade “que nunca acabará”, proporciona-nos uma comunhão que é outro nome de Deus, pois “Deus é amor”, vida partilhada e oferecida, “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, como dizemos e nos benzemos, até que tais palavras inteiramente nos repassem. Temos hoje Quaresma, porque no princípio tivemos Páscoa. Sabemo-lo bem, antecedendo esta àquela, na história da Igreja celebrante. É também verdade conhecida, mas, no sentido espiritual da Quaresma, nunca por demais relembrada e proposta, como nestas Cinzas de 2009. Cinzas, irmãos e irmãs, é o que fica de quanto se queimou e ardeu. Sobram dos grandes incêndios e dos pequenos também. Sobram de restos mortais e de terras destruídas. Mas não são estas as que recebemos hoje, para começar a Quaresma. Ou sê-lo-ão apenas como lembrança da efemeridade das coisas e das vidas, se deixadas ou fechadas em si próprias. As que receberemos de seguida são lembranças transformadas pelo Espírito em outras tantas sementes de vida, na conversão a Deus, servindo o próximo. Porque essa é a novidade do “fogo” que Cristo trouxe à terra, querendo ateá-lo ao universo inteiro. É a do Espírito divino que não destrói, antes reconstrói; e dos escombros faz caboucos e alicerces duma existência imortal: tornada a própria morte em vida entregue, da morte renascemos na caridade divina. E para que assim aconteça nos “corpos”, em restauração universal, antecipemo-lo nas “almas”, em caminho quaresmal. Mas três artigos tem esta Quaresma cheia de Páscoa, tão certos como concretíssimos: 1º) Renasce e vive quem convive e partilha, ligando unidade e alteridade. 2º) Isto mesmo “define” Deus, definindo-nos depois como seu Povo, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo. 3º) Igualmente no mundo e para a salvação do mundo, é esta a lei e a tarefa. De “Deus” não faltam ideias nem congeminações, desde que, como humanidade consciente, nos pusemos a pensá-lo. Mas não é difícil concluir que muita ideia de Deus que por aí circula é mera projecção de nós mesmos e nem sempre do melhor que temos… Em nome de um “Deus” à nossa medida ou apetite, fizemos e ainda se pode fazer muito mal. Tenhamos cuidado redobrado, nas actuais circunstâncias, para não fabricarmos ídolos nem invocarmos o santo nome de Deus em vão. Com Cristo aprendemos que Deus é em si mesmo “amor”, isto é, vida no outro e para o outro, em plena circularidade: do Pai para o Filho e do Filho para o Pai, no eterno movimento do Espírito. “Um só Deus em três pessoas”, na formulação tradicional: Cristo a rejubilar no Pai, no ímpeto do Espírito, como indica o Evangelho. Assim – e muitíssimo mais – é o nosso Deus, só apreensível na experiência da partilha: religião é convivência, religião é caridade. E a própria aritmética se altera, porque 1 é igual a 3 e a alteridade coexiste com s unidade, sendo o seu próprio movimento interno e expansivo. Por consequência necessária e conversão conseguida, a vida eclesial salva-nos comunitariamente, porque o Pai nos faz seus incorporando-nos em Cristo, habitados e vivificados por um só Espírito. O caminho quaresmal tem, por isso mesmo, uma indispensável dimensão comunitária. Penitência e conversão a Deus é redescobri-lo como Pai comum, que nos quer verdadeiramente irmãos no Espírito de Cristo. Não há reconciliação com Deus sem reaproximação daqueles que partilham connosco a única condição de baptizados. Por isso a Quaresma é tempo especial de reconciliação com Deus através da Igreja e especial oportunidade para a celebração da Penitência, incluindo a imprescindível confissão individual. Repetem-se assim em cada um de nós aqueles pessoalíssimos encontros evangélicos de Jesus com os penitentes, um a um, com nome e figura. O caminho para a comunidade é sempre pessoa a pessoa. E assim mesmo trabalha a graça, quer entre o penitente e o ministro da Reconciliação, quer entre nós todos, na aproximação concreta de irmão a irmão. Unidade complementar em Deus, unidade complementar na Igreja, unidade complementar no mundo. A aplicação deste último item ganha mais urgência nas actuais circunstâncias do país e da vida internacional, começando aqui mesmo, família a família, lugar a lugar, escola a escola, empresa a empresa… Se ainda restassem dúvidas teóricas sobre a necessária complementaridade de todos, coexistindo alteridade e unidade em cada patamar da sociabilidade humana, certamente desapareceriam diante do tristíssimo resultado do seu contrário, como agora o verificamos e sofremos, por nós e pelos outros. Tudo na vida reclama proximidade, companhia e entreajuda, complementando-se uns e outros em alteridade convergente, fecunda e perdurável. Homem e mulher “como um só”; pais e mães de filhos e filhas; famílias solidárias nas gerações que se sucedem, cuidando-se mutuamente em todo o arco da existência humana, protegida no seio materno e acompanhada na extrema velhice ou dependência, sempre com igual dignidade. Da família à sociedade, inscrevemo-nos pela presença e pela actividade, sempre por aquela e, quanto se possa, também por esta última. É a verdade de nós todos que, alargando a matriz familiar, nos faz viver socialmente, em unidade complementar, em alteridade prestante de capacidades e cuidados. Quando, pelo contrário, cedemos à tentação individualista, pretendendo viver sem os outros, ou até contra os outros, esquecendo a nossa índole comunitária e o destino universal dos bens, a responsabilidade social das empresas e a subsidiariedade de cada grupo no conjunto geral dum país, arriscamos a perda colectiva em egoísmos desencontrados. Em cada sector da sociedade e da cultura encontramos facilmente quer as possibilidades quer os entraves. Possibilidades que advêm sempre da conjugação da liberdade e da criatividade pessoais com a convivência activa e mutuamente interessada. Entraves que subsistem ou se levantam, provindos duma pior consideração da liberdade individual, sobre si mesma encurvada e reduzida a mero sentimento ou apetite, sem respeito pela natureza das coisas, ainda que evolutiva, nem pelas necessidades dos outros, que afinal desafiam e aumentam a nossa capacidade de ser, isto é, de conviver partilhando. Avancemos então, irmãos e irmãs, por este caminho aberto de liberdade e serviço, que a Quaresma nos oferece. No Espírito de Cristo, podemos e devemos crescer como filhos de Deus e irmãos universais. Tornemos prioritária a comunhão com Deus e com os outros a partir de Deus, progredindo na unidade e na entreajuda. Ouvidos os apelos da Liturgia de hoje, coloquemos o coração e o desejo na divina caridade. Ofereçamos às famílias, às escolas, às empresas e à sociedade em geral o Evangelho vivo na vida dos crentes. Atraia-nos já, como sempre, o clarão da Páscoa. Irradiemo-lo também, por vidas autenticamente evangélicas. Convertamo-nos a Deus, servindo o próximo. Sé do Porto, Quarta-Feira de Cinzas, 25 de Fevereiro de 2009 + Manuel Clemente