Para o serviço de Deus e a paz entre os homens
“Se alguém estiver ao meu serviço, que me siga; e, onde eu estiver, aí estará também o meu servidor”:
Ouvimos estas palavras de Cristo e com elas se definiu o autêntico itinerário duma vida que se queira cristã. Nas exéquias do Senhor D. Armindo Lopes Coelho, 67,º Bispo do Porto desde a refundação da Diocese e 2,º Bispo de Viana do Castelo, tais palavras assumem grande realismo.
Quanto à vida cristã em geral, esta só se entende como seguimento de Cristo. Seguimento que signifique identificação profunda, nas circunstâncias e nos sentimentos. Circunstâncias, isto é, em tudo o que suceda do viver ao morrer, nas “variações do tempo e da fortuna”, sempre imprevisíveis no imediato, mas teologalmente suportadas, em fé, esperança e caridade evangélicas.
“Onde eu estiver, aí estará também o meu servidor”: Na verdade, Cristo está “em todo o lado” da existência humana, que inteiramente fez sua, experimentando tudo o que a define e rejeitando tudo o que a contradiga. Nos tempos que correm – como sucedeu nos que passaram -, a maior demonstração do cristianismo estará precisamente aqui, no encontro ou reencontro de Cristo nas mais diversas realidades da vida pessoal e colectiva, porque Ele as fez realmente suas, para as libertar por dentro.
Foi essa também a descoberta de Paulo, como lhe ouvimos na segunda leitura: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada? […] Em tudo isto, somos nós mais do que vencedores por Aquele que nos amou”.
Em tudo temos tempo e espaço preenchidos pelo amor de Deus, traduzido em incarnação e convivência, como definitivamente aconteceram e acontecem em Cristo. Com todo o realismo das últimas palavras do primeiro Evangelho, que podem ser tomadas como cerne da Boa Nova e autêntico segredo das vidas cristãs: “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”.
Não forçaríamos o sentido, se disséssemos que Ele próprio, Cristo, é o fim dos tempos, para todos e para cada um. Tempo é ocasião de descoberta do que somos como pergunta e do que Deus é como resposta.
Rodam anos e séculos, quais desdobramentos progressivos – não isentos de avanços e recuos –, em que nos vamos surpreendendo com o que somos, humanamente falando, e com o que nos é possibilitado, divinamente possibilitado. Por isso e só assim, corresponderemos em qualquer circunstância – como agora o fazemos, junto dos restos mortais do Senhor D. Armindo – à exortação paulina: “Àquele que pode fazer imensamente mais do que pedimos ou imaginamos, de acordo com o poder que eficazmente exerce em nós, a Ele a glória, na Igreja e em Cristo Jesus, em todas as gerações, pelos séculos dos séculos! Ámen” (Ef 3, 20-21).
Para o ilustre prelado portucalense, soam com absoluto realismo as belas palavras dum hino da Liturgia das Horas, que certamente repetiu: “Passa o tempo, corre a vida, / Hora a hora o dia foge; / Mas a fé nos anuncia / Que vem perto o grande encontro”.
Por isso mesmo, a presente celebração não é nostálgica, mas de acção de graças e compromisso evangélico. Acção de graças pela vida e ministério pastoral do Senhor D. Armindo. Na sua incansável aplicação, pulsou forte o coração de Cristo, de quem foi digníssimo sacramento pastoral, em favor do seu povo.
Agradecemos a Deus o dom que concedeu às Igrejas que D. Armindo serviu “até ao fim”. E, se este “fim” de algum modo começou vai para quatro anos, quando a doença interrompeu abruptamente o curso da sua existência habitual e expectável, tal não o excluiu do seguimento de Cristo, antes o radicalizou aí mesmo, na Páscoa existencial e eterna do Senhor da sua vida. Nos últimos tempos, mesmo quando as figuras e os nomes lhe escapavam, mesmo dos que lhe tinham sido mais próximos, aflorava-lhe facilmente um sorriso de grande acolhimento e serenidade. Essencial, digamos, e por isso pascal. E assim partiu em Cristo; e assim entrou na paz.
Celebração de acção de graças e compromisso evangélico. Julguei oportuno trazer aqui três breves citações das últimas homilias do Senhor D. Armindo, quase os seus “discursos de despedida”. É bom que ressoem nas naves desta catedral que foi sua, com uma actualidade que quatro anos não diminuíram, muito pelo contrário. Resumirão o seu legado, reforçando-nos o compromisso. Concretamente em torno de três tópicos maiores, que o eram e continuam a ser, porventura com maior pertinência ainda: a juventude e o seu futuro; a família e a sua prevalência; o sacerdócio e a sua verdadeira grandeza.
A 7 de Maio de 2006 falou aos finalistas universitários. Falou-lhes de Cristo e da vida eclesial, como referências permanentes da vida com os outros e para os outros, onde o futuro pessoal e profissional pode e deve acontecer, afastando egoísmos e exclusões. Há quatro anos, de facto, ainda não seriam tão evidentes as consequências trágicas da contracultura individualista, como a actual “crise” as manifesta. Mas D. Armindo já alertava os finalistas, para que o termo dos seus cursos não significasse o fim da amizade e da convivência, antes as alargasse em vidas solidárias. E isto mesmo a bem do futuro, só assim viável: “Cristo, o Bom Pastor, e a Igreja, são a defesa contra o isolamento perigoso, contra o individualismo e o egoísmo que ameaçam. Contra a solidão presunçosa e enganadora, contra a competitividade e a competição que sepultam a solidariedade e a amizade. De facto, estes sinais negativos da sociedade que construímos levam à exclusão social, que a todos afecta porque todos somos vítimas, praticando, sofrendo ou sendo testemunhas. Estamos convosco nas preocupações pelo futuro: pelo emprego, pelas condições de vida e de trabalho, pela segurança, pela família, pela alegria transparente e justificada, pelo optimismo, pela esperança” (Homilia na Bênção das Pastas, 7 de Maio de 2006. Igreja Portucalense, nº 11, p. 31).
No mês seguinte falou às famílias, fundamentando-as na própria “familiaridade” divina. De Deus comunhão à família comunhão inter-pessoal, para que a sociedade em geral não perca fundamento e consistência. É um trecho notável pela consistência teológica e a decorrência prática e pedagógica, que muito importa reter. No tempo difícil que vivemos, o fortalecimento das famílias, é inadiável para o futuro que precisamos de alcançar. Assim se revelam as redes familiares, como indispensáveis para a sobrevivência – árdua sobrevivência nalguns casos! -de tantos concidadãos nossos. Oiçamos D. Armindo: “A condição de Deus Trino e pessoal é a raiz da nossa condição humana de socialidade, sociabilidade e solidariedade. E é por isso que a pessoa humana egoisticamente individual e solitária redunda numa atitude ou condição, mesmo que inconsciente, contra a própria natureza humana, radicalmente sociável e social. […] É neste espírito e contexto que importa reflectir sobre a Família. […] Sendo uma comunidade natural que denota a sociabilidade humana, a família contribui de modo insubstituível para o bem da sociedade, de tal modo que pode considerar-se uma garantia contra qualquer tendência individualista ou colectivista. […] É por isso que se afirma a prioridade da família em relação à sociedade e ao Estado. A família não é para a sociedade e para o Estado. A sociedade e o Estado é que são para a família” (Homilia na Solenidade da Santíssima Trindade – Dia Diocesano da Família, 11 de Junho de 2006. Ibidem, p. 38-39).
Finalmente, nas últimas ordenações sacerdotais a que presidiu nesta Sé, o Senhor D. Armindo deixou-nos palavras que certamente ouvirão com renovado assentimento os novos presbíteros desse dia, como acolheremos nós todos, especialmente os que compartilhamos o sacerdócio ministerial: “Agora ides vós que sois os apóstolos deste tempo e para este mundo. Ides na pessoa de Jesus (in persona Christi) […], para serdes seus representantes, a sua presença entre o povo. […] Apesar de ataques, marginalizações, desconsiderações e desconfortos, é preciso haver quem ensine o Evangelho e esteja disponível para o ministério de Deus e para a paz entre os homens” (Homilia nas Ordenações Sacerdotais, 9 de Julho de 2006. Ibidem, p.28).
“Para o serviço de Deus e a paz entre os homens”: mais ainda do que uma exortação situada, estas palavras do Senhor D. Armindo podem resumir-lhe a vida inteira: lúcida, serena e dedicada. Essa mesma vida que agora agradecemos a Deus e nos comprometemos a prosseguir na Igreja de Cristo, para bem de todos.
Sé do Porto, 30 de Setembro de 2010
+ Manuel Clemente