SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE DE CRISTO
– Por um mundo mais justo e fraterno!
Amados irmãos e irmãs, neste Corpo de Cristo que é a Santa Igreja:
Felicíssima coincidência faz com que nesta diocese e cidade estejamos a viver sucessivamente as características mais identificativas da piedade cristã-católica: visitou-nos o Santo Padre, visitou-nos Nossa Senhora de Fátima, na sua imagem peregrina, celebramos agora a permanente visita de Cristo Senhor nosso, no Santíssimo Sacramento da Eucaristia.
Se, a 14 de Maio, o Sucessor de Pedro nos confirmou na fé e na missão, rodeado pela alegria e o assentimento duma multidão transbordante; se, na noite de 31 de Maio, o coração da cidade irradiou tanta luz na devoção à Mãe de Deus, que assim mesmo nos visitava e impelia a sermos, como Ela, visitadores do próximo: hoje, acolhemos de coração agradecido a oferta de Cristo, para O oferecermos a todos os que mendigam alimento da boca ou do espírito, na constante partilha do “pão que desce do Céu e dá a vida ao mundo” (cf. Jo 6, 33). Esta é a vida de Cristo, concebida e oferecida por Maria, esta a missão em que o Sucessor de Pedro nos confirmou: tudo recebamos então, com renovado acolhimento e compromisso.
Fatigado em extremo devia estar Abraão naquele dia, quando se aproximou de Salém… Muito generoso foi Melquisedec, rei da cidade e sacerdote do Altíssimo, que lhe ofereceu pão e vinho e o abençoou em nome do “Criador do céu e da terra”.
E aqui estamos nós hoje, celebrando a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, no coração de outra cidade – a nossa cidade – trazendo fomes e cansaços, como os levava Abraão ao abeirar-se de Salém. E para recebermos do novo e eterno “Melquisedec” – Jesus Cristo, nosso Senhor – o pão e o vinho da sua oferta, bem mais excelente porque pessoal, sendo a si próprio que se entrega na vida e no sacramento.
Assim mesmo o lembrava São Paulo aos Coríntios, que já precisavam da advertência, por não retirarem da Eucaristia a consequência solidária que lhes competia. Lembra-lhes o Apóstolo que deviam guardar entre si uma comunhão correspondente à totalidade com que Cristo se dera e continuava a dar a todos e a cada um. Como dissera: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim”.
Memória viva da entrega de Cristo, memória perpetuada no testemunho de quem O recebia, com semelhante totalidade de acolhimento e oferta, sem restrições no afecto nem acepções de destinatários, pobres ou ricos, socialmente iguais ou distintos: assim devia realmente ser.
Solenidade de grande exigência é esta, amados irmãos e irmãs, porque se trata do coração da Igreja, que é Corpo de Cristo também. É insistência de São Paulo, aos coríntios e a outros, como a nós agora. Pouco antes do passo que escutámos, já ele tinha interpelado os mesmos coríntios: “O cálice de bênção, que abençoámos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão” (1 Cor 10, 16-17).
– Que grande é a responsabilidade de estarmos aqui, celebrando o Corpo e o Sangue do Senhor, amados irmãos e irmãs! Que enorme consequência deve ter, na vida que levarmos e no que fizermos dela. Se nos dispomos deveras a receber a única e total oferta de Cristo – que é a de si mesmo – como havemos de ser oferta também, àqueles que igualmente O recebem e a todos os que por Ele esperam, quer o saibam quer não. De nós O esperam, para que o Corpo de Cristo se alargue no mundo, convertendo a cidade em caridade!
Isto mesmo devemos ter em grande consideração e consciência, amados irmãos e irmãs: comungar o Corpo eucarístico de Cristo tem forçosamente de coincidir com a comunhão prática que exercitamos no seu Corpo eclesial. Não é mera devoção, no sentido fraco do termo; é grande responsabilidade, na acepção comunitária da Eucaristia. Pois no trecho de que foi tirada a segunda leitura desta Santa Missa, é precisamente à comunidade que São Paulo se refere, querendo-a unida e não dividida, apelando para isso à conformidade com Cristo eucarístico.
Sentia-se Paulo da desunião entre os coríntios: “… não posso louvar-vos: reunis-vos, não para vosso proveito, mas para vosso dano. Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembleia, há divisões entre vós…” (1 Cor 11, 17-18). Por isso mesmo lhes lembrava Cristo, que inteiramente se oferecera, para inteiramente ser recebido em adesão consciente e consequência prática.
Por se entregar, Cristo fez da morte vida, vida de quem O receba com igual disposição de morrer para si e viver para os outros, no Espírito de Cristo. Quem não entra nesta novíssima “lógica” da Eucaristia não está em condições de a receber e, se comunga sem conversão, de nada aproveita e mais se afasta. É ainda São Paulo a dizê-lo, sem poupar nas palavras nem na advertência: “… todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha. Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho; pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação” (1 Cor 11, 28-29).
Não nos dê isto receio nem reserva excessiva, em relação à Santíssima Eucaristia. Mas dê-nos muita seriedade e aplicação, no respeitante à verdade que queremos comungar. Como nos ensinou o Papa Bento XVI, o “Corpo” de Cristo cedo se assumiu em três acepções solidárias, nenhuma delas dispensável: “A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo. Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja” (Sacramentum Caritatis, nº 15).
O Cristo que recebemos da Virgem Mãe é o mesmo que, ressuscitado, recebemos na Eucaristia, para com Ele formarmos um só corpo, entregue para a vida do mundo: – Que imensa verdade esta, amados irmãos e irmãs, que grande responsabilidade também, para sermos exactamente assim e nas actuais circunstâncias da cidade e do mundo, onde não faltam fomes e sedes, materiais e espirituais de toda a ordem!
E é ainda com o Papa que quero insistir, do modo mais directo e prático: “Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; […] as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n’Ele a fazer-se ‘pão repartido’ para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno” (Sacramentum Caritatis, nº 88).
Por um mundo mais justo e fraterno… Este mundo preciso e concreto, que nos toca aqui e agora, caríssimos irmãos e irmãs, de modo particularmente grave onde falte trabalho e sustento, saúde ou companhia. Aí seremos nós Corpo de Cristo alargado, como realmente o comungamos e adoramos na Santíssima Eucaristia, “fruto do ventre sagrado da Virgem puríssima Santa Maria”. Entendendo cada vez melhor e até ser de vez, que só assim comungamos dignamente o Corpo e o Sangue do Senhor, precisamente se o fizermos no seu Espírito, que é outro nome de Deus Caridade.
É ainda São Paulo que, usando a mesma metáfora do “corpo”, aplicada à comunidade cristã, insiste na atenção aos mais frágeis, sempre prioritária: “quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários. […] Deus dispôs o corpo, de modo a dar maior honra ao que dela carecia, para não haver divisão no corpo e os membros terem a mesma solicitude uns para com os outros. Assim, se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros” (1 Cor 12, 22.24-26).
Amados irmãos e irmãs: unidade e solidariedade, com especial atenção aos mais fracos e pobres, são características indispensáveis da vida eucarística e eclesial. E, da Igreja para a sociedade que igualmente integramos, assim há-de sê-lo agora, quando as pesadas circunstâncias económicas e financeiras que nos atingem devem ser ultrapassadas por todos segundo as possibilidades de cada um e não agravando excessivamente a subsistência daqueles que já não têm o suficiente para si e para os seus.
Ouvimos o Evangelho: chegaram os Doze ao pé de Jesus, preocupados com a multidão que O ouvia e já não tinha sustento. Mandou-lhes Jesus que lhe dessem eles mesmos de comer, o que os deixou perplexos, pois só tinham cinco pães e dois peixes… Então, depois de mandar sentar a todos, “Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e pronunciou sobre eles a bênção. Depois partiu-os e deu-os aos discípulos, para eles distribuírem pela multidão…”.
A narração é claramente eucarística, como veremos de seguida sobre o altar desta igreja. Em nome de Cristo, o sacerdote pedirá ao Espírito que faça do pão oferecido o alimento abundante “para a alma e para o corpo”. Depois, todos os que O podermos comungar devidamente transmitiremos à multidão o mesmo Cristo recebido, “para a vida do mundo”. Quando, logo à tarde, levarmos o Santíssimo Sacramento em procissão, bem pelo centro da nossa cidade, Ele próprio nos levará consigo, ao encontro de todos os que O esperam, nos mil e um apelos de hoje em dia. E assim a Eucaristia se faz missão, no envio e entrega de Cristo em nós ao mundo mais concreto, perto ou longe, segundo as urgências levantadas.
Amados irmãos e irmãs, permiti-me uma última alusão: ainda em Ano Sacerdotal, vejamos nos nossos padres a continuação daqueles discípulos a quem Jesus mandou distribuir os pães do milagre. Rezemos por eles, que também rezam por todos. É cada um deles uma oferta de Cristo, que lhe comunicou muito especialmente a sua paixão pelo povo, nascendo todos do “amor do Coração de Jesus”, segundo a definição certeira do Santo Cura d’Ars.
Como lemos noutro passo evangélico: “Contemplando a multidão, Jesus encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor. Disse, então, aos seus discípulos: ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para a sua messe’” (Mt 9, 36-38). A seguir, Jesus chamou doze discípulos, primeiros de tantos mais, para alargarem a sua missão salvadora (cf. Mt 10, 1 ss).
Roguemos então pelos sacerdotes, sinais vivos da compaixão de Cristo e primeiros distribuidores do seu “pão”, eucarístico e solidário. Pela sua acção, toda a comunidade cresce nos mesmos sentimentos de entrega e serviço. Concretamente, abnegadamente. E também assim, também por eles, o realismo do magnífico quadro que o Evangelho nos trouxe continuará presente: Jesus saciando a multidão pela força do Espírito e a colaboração dos Doze, desdobrados em muitos, “para a vida do mundo”.
Porto, Igreja da Trindade, 3 de Junho de 2010
+ Manuel Clemente