Homilia do bispo do Porto na missa de quarta-feira de Cinzas

QUARTA-FEIRA DE CINZAS, 2011

Uma Quaresma para levarmos especialmente a sério!

Homilia – Mensagem quaresmal aos diocesanos do Porto

 

1. Começamos a Quaresma de 2011 e tomamo-la como oportunidade de conversão e mudança. Conversão a Deus e mudança de vida, sempre renovada pela sua graça e alargada na caridade de Cristo.

Ouvimos o profeta Joel: “Diz agora o Senhor: ‘Convertei-vos a Mim de todo o coração […]. Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos!’”. Primeiro o apelo, depois o modo imprescindível. Apelo ao regresso a Deus, início e fim absolutos da realização que se pretenda; modo imprescindível de o fazer, com sinceridade total, íntima e definitiva.

O Apóstolo Paulo insistia depois, já em nome de Cristo: “Reconciliai-vos com Deus!”. E qualificava de antemão toda a Quaresma que fizermos: “Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação”.

No Evangelho escutado, foi a vez do próprio Cristo requerer a totalidade da atitude, de cada um para Deus, sem outro interesse que não seja Ele mesmo, único modo de depois caberem todos: “Tende cuidado em não praticar as vossas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus”. Deus não é pretexto nem acréscimo de qualquer autopromoção; é a raiz exclusiva do bem universal.

Outro modo de dizer que Quaresma é reinício da vida em Deus e a partir de Deus. Não retomando a origem pré-histórica da humanidade ou o irrecuperável “primeiro minuto” do Universo, mas na consciência certa e permanente de que, como Humanidade de todos e de cada um, nem nos explicamos nem nos bastamos sozinhos. Perguntando-nos positivamente, como Bento XVI no seu último livro: “E não é porventura verdade que o facto de os homens não estarem reconciliados com Deus, com o Deus silencioso, misterioso, aparentemente ausente e todavia omnipresente, constitui o problema essencial de toda a história do mundo?” (Bento XVI, Jesus de Nazaré. Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, p. 73-74).

Consciência e sentimento que universalmente partilhamos, na religião e além dela. Assim no discurso de Paulo em Atenas, onde se incluem citações de Epiménides e Aratos, poetas pagãos: “É nele [Deus], realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós também somos da sua estirpe’” (Act 17, 28).

Conversão a Deus, como à origem pessoal e constante da vida. Significando isto que, antes de mais, só assim nos podemos (re)descobrir e definir. E retomando-nos num Deus tão pessoal e universal, retomamo-nos, consequentemente, como criaturas entre todas e cada uma das criaturas, em solidariedade sem limites. Essa mesma, que, ultimamente revelada nos sentimentos de Cristo, se chamará propriamente “caridade”.

Tal nos oferece o “tempo favorável” que iniciamos. Favorável pela Palavra que escutarmos, favorável pela resposta que obteremos, favorável e sumamente oportuno pelas circunstâncias em que vivemos hoje, na sociedade e na Igreja. – Uma Quaresma para levarmos especialmente a sério!

 

2. Quando nos confrontamos com a divergência continuada e crescente de necessidades e remédios, em tantos sectores da vida pessoal e alheia, devemos perguntar-nos se, para além dos aspectos conjunturais da sociedade e da economia, não há uma discrepância ainda mais profunda entre a verdadeira realidade das coisas e a representação mental que temos delas, distraindo-nos por excesso ou por defeito do que deve efectivamente considerar-se.

Sendo directo e breve: – Se temos de responder aos problemas de toda a ordem que tantas existências enfrentam, não nos devemos entender, antes de mais, sobre o que a própria vida é, quer do ponto de vista biológico – da concepção à morte natural -, quer do psíquico e relacional? – Se necessariamente concluímos pela absoluta arbitrariedade e incoerência de depreciar qualquer fase da vida – embrionária ou intra-uterina, debilitada ou terminal que seja –, não devemos corrigir tudo quanto a desrespeite no seu todo, mesmo que legal e abusivamente permitido? – Se temos de nos ajudar como “pessoas”, não devemos atender à sociabilidade básica que nos caracteriza, protegendo e promovendo as famílias e dando-lhes toda a viabilidade na respectiva constituição e manutenção intergeracional, como valor social, cultural e até económico de primeira ordem? – E não devemos realçar também a sua essencial complementaridade, de homem e mulher, novos e velhos, recolhendo a tradição geral da humanidade nesse sentido? – Se ganhámos uma visão positiva e essencial do trabalho humano, como factor indispensável para a realização pessoal, não devemos tomar como grande prioridade a sua prossecução e garantia, para jovens e menos jovens, alargando criativamente o leque das actividades e da respectiva valorização, bem como reconhecendo e incentivado a dimensão social das empresas? – Se queremos mesmo ser uma sociedade de cidadãos, com responsabilidade e participação alargadas, não deveremos organizar-nos melhor, em subsidiariedade e solidariedade autênticas, para que cada instância política e administrativa não esgote em si, antes promova, tudo quanto os corpos intermédios, das famílias às escolas, da beneficência às empresas, das autarquias às diversas associações, possam fazer por si próprias e com vantagens “públicas” evidentes? – Se acreditamos sinceramente na dimensão espiritual de cada pessoa, pela qual se transcende e responde a interpelações definitivas, não devemos reconhecer e habilitar a liberdade religiosa em que tal espiritualidade também se desenvolve e compartilha, inclusive nos sinais que publicamente manifeste?

Poderíamos continuar o elenco, pois decerto evidenciaria – qual “exame de consciência” colectivo, para crentes e não crentes – que, não sendo coerentes com princípios geralmente aceites, nos ficamos por expedientes que, não nos tendo assegurado no passado, também não nos resolverão o futuro.

Mesmo social e “civilmente” falando, adiaremos ainda mais o futuro quanto menos respeitarmos o presente, ou seja, a realidade actual do que somos e devemos ser, sem descurar nenhum sector ou etapa da existência humana conjugada. Planificar para “indivíduos” abstractos e sem a conexão essencial às famílias e aos meios, ou perspectivados apenas para alguns anos de vida saudável e contribuinte, é um desastroso óbice ao progresso, além de gravíssimo erro moral e clamoroso deficit cultural.

 

3. E assim nos encontram, a nós os crentes, estas “Cinzas” de 2011, contando também com a Mensagem quaresmal de Bento XVI, toda à volta das exigências baptismais a reforçar. Ainda aqui ressoa a Palavra de Deus que há pouco ouvimos, quando nos convidava a regressar a Deus, para n’Ele verdadeiramente progredirmos.

Escreve o Papa, a dado passo: “O nosso imergir-nos na morte e ressurreição de Cristo através do Sacramento do Baptismo, estimula-nos todos os dias a libertar o nosso coração das coisas materiais, de um vínculo egoísta com ‘a terra’, que nos empobrece e nos impede de estar disponíveis e abertos a Deus e ao próximo. […] Através das práticas tradicionais do jejum, da esmola e da oração, expressões do empenho da conversão, a Quaresma educa para viver de modo cada vez mais radical o amor de Cristo” (Mensagem, nº 3).

“Convertei-vos a Mim de todo o coração”, insistia Deus pela voz do Profeta. Deixemo-nos nós, nesta Quaresma, repassar profundamente pelo apelo divino, tão veemente sentido e expresso por Joel. Quando Paulo fez depois apelo idêntico, era já “em nome de Cristo”, definindo mais a que Deus nos havemos de religar.

Importantíssimo ponto é este mesmo, amados irmãos e irmãs. – Quanto despiste religioso consentiríamos, se, numa pretensa “conversão” a Deus, falhasse a humanidade, a nossa humanidade que tomou em Cristo! De oração e “espiritualidade” talvez nunca se tenha falado tanto e prometido ainda mais… Mas a reconciliação com Deus a que Paulo nos exorta, é pedida “em nome de Cristo”, Deus humanado, passando necessariamente, na oração e na vida, pela comunhão espiritual e solidária com a humanidade de todos, onde Deus sofre e nos espera.

Da sua permanente ligação ao Pai, partia Cristo para o constante serviço dos outros. E, quando nos ensinou a rezar, deixou-nos no Pai Nosso, tanto o sentido de Deus como o sentido dos outros, e dos outros por amor de Deus. Também de Deus por amor dos outros, que bem precisam que lhes transpareçamos Deus. Como o soube concluir uma admirável poetisa portuense: “Só o olhar daqueles que escolheste / Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas” (Sophia M. B. A., Não darei o Teu nome).

Esta a oração a fazer, na conversão pessoal e comunitária ao Deus de todos e de cada um. Oração de resposta à sua palavra, nunca por demais ouvida e ecoada até ao último rincão da alma e à última aplicação da caridade, que, aliás, nunca acabará. Jejum de tudo o mais, do que possa distrair-nos deste amor essencial e até esquecer-lhe a substância ou diminuir-lhe o gosto. E a própria esmola, além do que oferecermos, seremos também nós, se formos realmente mendigos de Deus, porque o receberemos a Ele mesmo, como amor compartilhável. Quaresma total, em suma, pois total é o desígnio de Deus e totais são os apelos dos pobres, antigos e novos.

 

4. Como se tornou corrente, podeis encaminhar as vossas renúncias quaresmais para o Fundo Social Diocesano, “caixa comum” para muitas necessidades, próximas ou distantes, que são apresentadas à Igreja do Porto. Desde a última Quaresma, efectivámos, designadamente, apoios a grávidas e a famílias com bebés recém-nascidos, através da “Norte Família e Vida” e da Cáritas Diocesana. Com o vosso contributo, reforçando os cerca de 120 000 euros que agora temos, poderemos ajudar muitas pessoas assistidas pelas Conferências de S. Vicente de Paulo e cujo apuramento preciso está a ser ultimado. De tudo vos voltarei a dar contas posteriormente.

 

– Em Cristo e rumo à Páscoa!

 

+ Manuel Clemente

9 de Março, Quarta-Feira de Cinzas de 2011

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