– O mundo, que Cristo salva pela oferta de si, espera-nos agora como sinais vivos dessa oferta em nós!
“O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim’”.
Amados irmãos: Iniciemos o Tríduo Pascal retomando-lhe o significado e o verdadeiro fruto. Assim será, de facto, ao evocarmos a Ceia do Senhor, em que Ele mesmo assinalou tudo quanto fizera e fará por nós, ou seja, a entrega da própria vida; vida que comungaremos também, para que seja substância duma humanidade nova, reconciliada com Deus e em si mesma.
A lição deste facto é tão imensa que, sendo apenas um, o temos de reapropriar muitas vezes, em reconhecimento profundo e ação de graças sempre. Permiti-me relembrar o sábio conselho de Teresa de Calcutá aos sacerdotes: “Celebra esta Missa como se fosse a primeira; celebra esta Missa como se fosse a última; celebra esta Missa como se fosse a única”.
E não só para cada um, individualmente, a Santa Missa é assim. Para todos nós também – enquanto Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo -, ela marca o ritmo da vida comunitária e representa o ápice do que devemos ser. Para nós, cristãos, a Santa Missa é a definição da vida, de Deus recebida na entrega de Cristo; ao Pai retribuída e em Cristo sempre. A doxologia final da oração eucarística, há de incluir-nos e ultimar-nos cada vez mais, num infindo Ámen: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre!”.
– Pois não nos há de admirar, nesta hora vespertina que Jesus escolheu, que sejam tantos pelo mundo além a celebrar a sua Ceia para lhe herdar a Páscoa, a “nova e eterna aliança” no seu corpo e sangue – quer dizer, na pessoa viva de Cristo Jesus, que por nós e a nós se entrega?
E isto mesmo acontecendo “na unidade do Espírito Santo”, pois só Deus nos converte a Deus e atrai a Cristo: “Ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido pelo Pai” (Jo 6, 65). É o Espírito a congregar-nos aqui, em torno da Ceia do Senhor: percebamo-lo melhor e agradeçamos muito.
Isto mesmo vivemos e celebramos, principalmente agora e geralmente pelos dias. Algo podemos dizer do seu porquê, mas só Deus realmente Se conhece e determina, no que gratuitamente nos oferece. Quanto a nós, acolhamos e imitemos a sua obra, seguindo a exortação apostólica: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos bem amados, e procedei com amor, como também Cristo nos amou e se entregou a Deus por nós como oferta e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).
“Isto é o meu corpo, entregue por vós”, assim ouvimos. E em tão poucas palavras desvenda-se uma realidade importante e oportuna. Sobre o que seja “corpo”, e um corpo entregue.
Concordaremos nós, amados irmãos e irmãs, que, se há palavras que hoje se banalizam e esvaziam, uma delas é esta do “corpo”. E o pior que sucede é reduzir-se “corpo” a objeto, falando-se dele como mera coisa. Assim referimos o nosso corpo como quem o goza, suporta ou sofre; assim o corpo dos outros, qualificando-lhe a medida ou a figura e secundarizando-lhe o significado; assim o tomamos como simples alvo de cuidado ou estética. Ouvem-se mesmo frases como esta: “O corpo é meu, faço dele o que quiser”…
Mas tal degradação do corpo, de verdadeira substância a mero objeto, é efetivamente um grave despiste antropológico e absolutamente não cristão. A deriva é antiga e nem sempre advertida. Liga-se a um espiritualismo desencarnado, que deprecia a matéria e se fixa numa pseudo “alma”, que só por si valeria ou a seu bel prazer funcionasse, com ambíguo desprezo dum “corpo” que carregava ou usava. Daqui tanto nasceram ascetismos dúbios como laxismos extremos, hostis ou indiferentes à corporeidade que realmente temos e somos. Algo destes desvios pôde verificar-se entre nós; mas não em Cristo, nem no cristianismo autêntico, que só dele ganha legitimidade.
É verdade que na alusão evangélica, tornada fórmula sacramental, Cristo diz “isto é o meu corpo”, como depois dirá “este cálice é o da nova aliança no meu sangue”. Mas qualquer biblista nos explicará que, falando de corpo e sangue, Jesus refere, na linguagem que usou, o que nós podemos traduzir por pessoa ou vida, ou seja, Ele mesmo e não algo de exterior ou indiferente a si. E também Bento XVI esclarece, a propósito: “Quando Jesus fala do seu corpo, obviamente que este não quer dizer o corpo distinto da alma e do espírito, mas toda a pessoa em carne e osso […]. Assim pode instituir agora o sacramento em que se torna o grão de trigo que morre e em que, através dos tempos, se distribui a si mesmo aos homens na verdadeira multiplicação dos pães” (Jesus de Nazaré. Parte II, Cascais: Principia 2011, p. 112).
Por isso, evocar e receber a Ceia do Senhor não pode ser para nenhum de nós algo de ocasional ou periférico, antes requer coerência de vida e totalidade de entrega, a Deus e aos outros: receber dignamente a Cristo, para O comunicar correta e diligentemente aos outros.
Estamos em Eucaristia e na Última Ceia que a assinalou. Ato pessoalíssimo de Cristo, que assim mesmo resumiu a sua vida como entrega, ao Pai e a nós, ao Pai por nós todos. Esta é a aliança, insubstituível porque total, em que n’ Ele somos refeitos, como filhos de Deus e oferta ao mundo. Nós mesmos, essenciais e sempre; não alguma coisa ou certos momentos, mas integrais e plenos, duma vez por todas. – O mundo que Cristo salva pela oferta de si, espera-nos agora como sinais vivos dessa oferta em nós!
Espera, ansiosamente espera, incluindo-se aqui o que podemos considerar a dimensão social da Eucaristia, hoje particularmente requerida. Já o escreveu Bento XVI, com grande persuasão: “… as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n’Ele a fazer-se ‘pão repartido’ para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: ‘Dai-lhes vós de comer’ (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo” (Sacramentum Caritatis, 88).
Para que tal suceda, também nós havemos de redescobrir e incentivar, na vida própria e da Igreja de todos, aquilo a que poderemos chamar a “incorporação” de Cristo e a consequência dela. Compreendamos sempre mais e melhor que a repetida “memória” que fazemos da Ceia do Senhor se concretiza na permeabilidade crescente que Ele ganha em nós, para poder prosseguir a sua entrega por todos. Falamos correntemente de vida “cristã”; mas com mais propriedade falaríamos de vida de Cristo em nós, com geral proveito e benefício.
Importa aprofundar nas nossas vidas a consciência que Paulo tinha da sua, desde que o Ressuscitado o agregara à sua Páscoa e à missão evangélica. Consciência manifestada em frases como esta, aos coríntios: “Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada no nosso corpo” (2 Cor 4, 10). Ou esta outra, aos gálatas: “Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2, 20). Paulo sabe-se de Cristo e morada do seu Espírito, em despossessão completa de si próprio. E assim nos quer a nós: “Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, […] e que vós já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo” (1 Cor 6, 19-20). E finalmente, na mais alargada das visões: “Sim, Ele [Deus Pai] tudo submeteu a seus pés [de Cristo] e deu-o, como cabeça que tudo domina, à Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que tudo preenche em todos” (Ef 1, 22-23). Poderíamos porventura dizer que, ainda mais do que O comungarmos a Ele, é Cristo que nos “comunga” a nós, quando O aceitamos como vida das nossas vidas, para através de nós se expandir, precisamente como Corpo de Deus no mundo.
Por isso mesmo a Missa se prolonga em missão, porque, uma vez oferecida a Deus, é logo remetida ao mundo, como expressão constante dum amor que nos cria e recria em Cristo. Daí também que quem recebe e comunga dignamente a Cristo, lhe prolonga necessariamente a atitude, como o lava-pés que a seguir repetiremos, sinalizando mil gestos da caridade de Cristo, em nós e através de nós, para chegar a todos, especialmente aos pés mais cansados e às vidas mais sofridas. Daí que o Evangelho escutado concluísse com uma grande exigência: “Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu vos fiz, vós façais também”.
Recolhamos então a oferta de Cristo, Recolhamo-la com inteira devoção e urgência máxima. A memória viva do que fez por nós continua no que agora quer oferecer a todos. E através de nós, indispensavelmente.
Sé do Porto, 5 de abril de 2012
D. Manuel Clemente, bispo do Porto