O futuro da Igreja, numa imensa adoração eucarística…´
Caríssimos irmãos e irmãs
Reunidos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, dissemos já, na oração colecta, o mais importante do que nos traz aqui. Vale a pena recordá-la: “Senhor nosso Deus, que nos reunistes para celebrar a Ceia santíssima em que o Vosso Filho Unigénito, antes de se entregar à morte, confiou à Igreja o sacrifício da nova e eterna aliança, fazei que recebamos, neste sagrado banquete, a plenitude da caridade e da vida”.
Aqui está tudo quanto deve preencher estes solenes momentos: a memória viva da Última Ceia – pois não haverá outra – e o acolhimento pleno da caridade e da vida que Cristo nos oferece.
Sobre a definitividade desta Ceia, é conhecida a recomendação de Teresa de Calcutá, aos sacerdotes e a todos: “Celebra esta Missa como se fosse a primeira, celebra esta Missa como se fosse a última, celebra esta Missa como se fosse a única”. Nela se concentra tudo, como sacramento da Cruz: um Deus que em Cristo de entrega, Deus humanado, para fazer de nós humanidade divinizada; a absoluta aliança entre Deus e o homem, que, pessoalmente realizada em Cristo, sacramentalmente nos é oferecida agora; a nossa incorporação em tal realidade, por nos convertermos a ela e ela nos converter em seus sinais no mundo.
Pedimos, por fim e em resumo, tudo quanto a Eucaristia oferece, ou seja, “a plenitude da caridade e da paz”.
Meditemos um pouco mais sobre o que enunciámos e pedimos. Para isso aqui estamos e com isso mesmo vamos ao Cenáculo e ao Gólgota. Como crentes sinceros e agradecidos, mendigos do verdadeiro amor do Pai, que nos oferece Cristo; como do verdadeiro amor de Cristo, que por nós se oferece ao Pai, vida por vida, arco existencial completo e absoluto, no ímpeto do Espírito.
Há, antes de mais e sempre, a oferta de Cristo, do Pai provinda e pelo próprio consentida, no cálice que aceitou beber. É mesmo o núcleo da tradição cristã, assim transmitida por Paulo, como ele já a recebera também: “Irmãos: Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o Meu Corpo, entregue por vós…”.
De Cristo morto e entregue… Duma morte atroz e iníqua, infligida a um jovem de trinta e poucos anos, que tanto bem fizera e coisas maravilhosas dissera, ainda que exigentes e fortes. Salva-nos o facto dessa morte ser única, ainda que concentrando todas as mortes iníquas de inocentes sem conta: única por esse homem ser o próprio Deus incarnado, Deus Filho na nossa humanidade, trazendo a toda a debilidade humana a inteira caridade divina. Na Cruz assumida e sofrida, Deus Filho volta a Deus Pai devolvendo-Lhe o Espírito. E aí mesmo, onde se concentra toda a cruz do mundo, tudo recomeça também: por Ele, que nos eleva, e para nós, a quem se oferece. É precisamente este corpo entregue que a Eucaristia celebra e partilha.
De um Deus entregue, vivemos nós. Não sei se alguma vez o conseguiremos compreender e aceitar plenamente, tão imensa é esta verdade. Verdade difícil, por contrariar o que nos é mais espontâneo, ou seja, a nossa tendência para partirmos de nós, sempre de nós, teimosamente de nós. Na gramática que usamos, insistimos na primeira pessoa: “Eu quero, eu desejo, eu faço ou hei-de fazer…”. Os outros vêm a seguir, como companhia ou concorrência. Na gramática divina, cada Um só é o que é na referência ao Outro: O Pai só o é por gerar o Filho; o Filho, por ser gerado pelo Pai; o Espírito por proceder dos Dois.
Mas nós temos enorme dificuldade em ser assim. Mesmo com as melhores intenções, é de nós que partimos geralmente, para realizar projectos de curto ou longo prazo. É verdade que ainda repetimos “até amanhã, se Deus quiser”, mas é quase só por dizer e com pouca disponibilidade para que seja diferente do que desejamos ou previmos. Recordo a propósito, um trecho da Carta de Tiago, muito expressivo e realista: “E agora, vós dizeis: ‘Hoje ou amanhã iremos a tal cidade, passaremos ali um ano, faremos negócios e ganharemos bom dinheiro. Vós, que nem sequer sabeis o que será a vossa vida no dia de amanhã! O que é, afinal, a vossa vida? Sois fumo que aparece por um instante e logo a seguir se desfaz! Em vez disso, deveis dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’” (Tg 4, 13-15).
É um incisivo repto a viver eucaristicamente, de Cristo e para Cristo, segundo o desígnio de Deus Pai. São Paulo sentia-o vivamente, ao resumir-se com estas palavras, quais rasgos de alma: “Sim, o amor de Cristo nos absorve completamente, ao pensar que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. Ele morreu por todos e, portanto, todos morreram. Ele morreu por todos a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles ressuscitou” (2 Cor 5, 14-15).
Viver de Cristo e para Cristo, vivendo com Ele do Pai e para o Pai, na união do Espírito. Bastaram trinta e poucos anos a Jesus para o demonstrar na terra. Segundo São Lucas, a primeira frase de Jesus adolescente, já no templo de Jerusalém, é responder a Maria e a José: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?” (Lc 2, 49). E a última, já no alto do Gólgota, novo templo do seu corpo entregue, é, como lembramos: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46).
Irmãos e irmãs, repitamos ainda uma vez a Colecta desta Missa da Ceia do Senhor: “Fazei, Senhor, que recebamos neste sagrado banquete do amor do Vosso Filho a plenitude da caridade e da vida!”. Assim precisamos, na verdade, agora e sempre mais. Não faltam dificuldades na vida das famílias, da sociedade e mesmo da nossa Igreja. Recebamos de Cristo a oferta de si próprio, caridade e vida das nossas vidas, como na Eucaristia acontece. Recebamo-Lo e preparemo-nos para O receber com maior fidelidade e propósito, com muito maior entrega e adesão ao seu amor.
Não há outra fonte onde beber, outra força a buscar, outra luz a receber. Dizemo-lo tantas vezes, sejamos mais coerentes agora. Na exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, o Papa Bento XVI liga, com toda a pertinência, qualquer ressurgimento da Igreja à atenção eucarística retomada: “O sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo” (SC, nº 6).
São programáticas estas palavras do Sucessor de Pedro, que presidirá à Eucaristia na nossa cidade, daqui a mês e meio. Programáticas para a Igreja que queremos eucaristicamente renovada em missão, recebendo a Cristo para O levar ao mundo.
São também motivo de revisão de vida, pessoal e pastoralmente falando. Porque surgem decerto as perguntas: – Que centralidade tem a Eucaristia nos nossos Domingos e nos dias que se seguem? – Que tempo dedicamos à adoração eucarística, quer em solene exposição, quer em oração particular diante do sacrário? – Com que respeito nos comportamos nos nossos templos, diante do Santíssimo Sacramento neles guardado?
Na verdade, irmãos e irmãs, o futuro da Igreja só pode estar numa imensa adoração eucarística, pois ela vive do que lhe foi assinalado na Ceia e dado na Cruz. E a própria missão – como a que queremos redobrar este ano – é da Eucaristia que nasce e é na sua adoração que se aviva, como bom contágio da caridade de Cristo: como quem alarga uma convivência, como quem alastra a comunhão.
Oiçamos a este propósito outro trecho da mesma exortação apostólica de Bento XVI: “A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: a ‘mística’ do sacramento tem um carácter social, porque […] a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus” (SC, nº 89). E, dirigindo-se a oferta de Cristo à totalidade da indigência humana, ninguém ficará de fora da projecção eucarística, através daqueles que a recebem e transmitem a Sua imensa caridade partilhada.
Estamos assim no âmago das últimas coisas, concentradas e entregues na Cruz do Senhor, eucaristicamente celebrada e acolhida. Nela está toda a nossa glória, a atracção universal e a alegria dos corações. Total era para São João Maria Vianney, magnífico inspirador do presente Ano Sacerdotal, que não pode ficar sem citação, a concluir esta homilia. É um belo testemunho de quem o viu e ouviu, soando assim: “‘No último ano de vida […] falou-nos do amor de Deus e pôs-se a chorar’. Começava, às vezes, no púlpito, a tratar de diferentes matérias, mas sempre se voltava para Nosso Senhor, presente na Eucaristia. ‘Esse atractivo pela presença real aumentou de modo extraordinário no fim da sua vida… Interrompia a pregação e chorava. O seu rosto parecia resplandecer e só se ouviam exclamações de amor’” (Francis Trochu, O Cura d’Ars, Braga, 1987, p.608-609).
Estava no fim da sua vida, sintetizando o que ela sempre fora, desde a primeira comunhão. Estejamos com ele agora, no mesmo Cristo eucarístico, coração da Igreja e da missão.
Sé do Porto, 1 de Abril de 2010
+ Manuel Clemente