Homilia do Bispo do Porto na Missa da Ceia do Senhor

Amados irmãos, aqui reunidos em eterna Ceia “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim…”. É esta verdade que faz eterna a Santíssima Ceia, porque totalmente preenchida pela caridade de Cristo, que jamais acabará. Nada há, nada houve e nada haverá que fique fora deste amor completo. Da sua parte, do coração de Cristo, não restou nada que não fosse dado, oferecido, até ao fim. Sabemo-lo bem, ou não estaríamos aqui como estamos. Na verdade, não bastaria uma tradição, no sentido fraco do termo, para nos trazer aqui, nesta hora vespertina em que a paixão de Cristo de algum modo começa. É a caridade de Cristo que nos envolve e chama, e nos faz conhecê-lo vivo, porque nos atrai e seduz, com a constante actualidade do seu dom. Sim, Cristo amou-nos como nos ama agora, até ao fim. Traduzindo em serviço absoluto e humilde o seu sentimento por nós. Esse mesmo que partilha com o Pai e transborda em Espírito para nos envolver, recuperar e ultimar a todos, finalmente, felizmente! Também o percebemos por contraste… Por contraste com tanto propalado “amor” que nunca vai até ao fim, nem sequer começando por vezes. Na nossa própria incapacidade o percebemos, urgindo uma oração mais insistente, para acedermos por graça a um amor autêntico, que não conseguimos só por nós. Gritava-o Paulo – o grande Paulo! -, quase lancinante: “em mim, que quero fazer o bem, só o mal está ao meu alcance. […] Que homem miserável sou eu!” (Rm 7, 21 ss). Mas para dizer, pouco depois: “a lei do Espírito que dá a vida libertou-te, em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte” (Rm 8, 2). Amar até ao fim, não ser senão amor, tanto nas atitudes práticas como nas motivações profundas. Amar até ao fim, não deixando de fora nenhum recesso do pensamento e da vontade, da sensibilidade e do afecto; amar até ao fim, sem escolha de espaço nem redução do tempo… Amar assim, como Jesus nos amou primeiro e ama sempre, aceitando o amor com a altura que Cristo lhe deu. Com a altura que Cristo lhe deu, naquela “medida alta” que João Paulo II tão sugestivamente indicou. Sabendo, no entanto, que à luz do Evangelho escutado, a altura se traduz em humildade, abaixamento e serviço. Jesus “tirou o manto e tomou uma toalha, que pôs á cintura. Depois deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura”. Sabemos a continuação: Pedro que se espanta, protesta e se insurge. Numa atitude muito compreensível, aliás, perante um senhor que assim se fazia escravo, com gestos de escravo e serviço humílimo. E era peremptório, o pescador da Galileia: “Nunca consentirei que me laves os pés!”. Mais peremptório foi, porém o senhor feito escravo: “Se não tos lavar, não terás parte comigo”. Pois bem, irmãos e amigos: se naturalmente compreendemos Pedro e a sua atitude, sobrenaturalmente – por graça divina – temos agora de compreender Cristo, a sua palavra e o seu gesto. É certo que a revelação é tão original e inaudita que, dois milénios depois, ainda é hoje custosamente aceite e ainda mais custosamente assumida e correspondida na prática. Mas a revelação e a graça desta celebração vespertina e do Evangelho que a ilustra está precisamente aqui: toma parte com Cristo e participa da sua vida e destino apenas quem deveras aceita a quantidade e a qualidade da sua caridade. Quantidade total e qualidade humilde. Diante de cada um de nós, como da humanidade inteira, Cristo continua como possibilidade absoluta, Cristo manifesta-se nos gestos mais simples do seu corpo eclesial e de todos quantos o Seu Espírito impele. Aos cristãos de Filipos Paulo apontou um dia essa mesma qualidade do amor de Cristo, para ser convivido em Igreja, do mesmo modo também. Conhecemos o trecho, qual paralelo formal da cena movimentada que seguimos com o Evangelho de João. Ou seja, Paulo esclarece o absoluto porquê do que João descreve, soando assim: “Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens, […] rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome…” (Fl 2, 5 ss). “Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus…”. Isto dizia Paulo, remontando à origem a motivação de Cristo, que João concretizou e descreveu no lava-pés que ouvimos. Sentimentos de Cristo, compromisso nosso certamente. Também ordem sua: “Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”. Pela santíssima Eucaristia e o serviço apostólico que, em nome de Cristo, a celebrará até ao fim dos tempos, a caridade de Deus humanado vai-se alargando no mundo e aprofundando nos corações. O “corpo de Cristo”, nascido de Maria, estende-se agora no sacramento e na Igreja. Lembrou-o Bento XVI, como verdade antiga e actual, na exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, nº 15: “a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo”. Não deixando de tirar depois as consequências práticas: “Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo” (ibidem, nº 88). E ainda mais práticas, uma vez que a verificação e a celebração do amor de Deus por cada ser humano, nos fará insurgir contra qualquer aviltamento deste: “Precisamente, em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do ser humano, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa” (ibidem, nº 89). Quando se fala – e não desistiremos nunca de falar! – em “civilização do amor”, falamos afinal na consequência social e no “programa” irradiante da própria Eucaristia, como sacramento e activação do amor de Deus, revelado em Cristo e realizado pelo seu Espírito. Quem celebra e vive a Eucaristia de Cristo, sabe que, da Igreja para o mundo, flui um rio de graça, caridade e justiça, que, garantido em Deus, será certo na terra. De novo, Bento XVI: “O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do ser humano, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor” (ibidem, nº 90). Sim, irmãos, não deixaremos de anunciar e levar por diante a “civilização do amor”, radicados na Eucaristia que perpetua a entrega de Cristo; maior, muito maior do que toda a resistência que se lhe oponha. É o Ressuscitado que nela se oferece, com a vitória certa da caridade, em que até a morte significa vida. Lembrava-o Paulo aos coríntios e a nós: “todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha”. Na primeira leitura desta celebração, ouvimos um texto antigo, muito adequado para começar. Tirado do Livro do Êxodo, lembrava o cordeiro comido na noite da saída do Egipto e o seu sangue espalhado nos umbrais e na padieira das casas dos israelitas, para os proteger do extermínio. Isso mesmo havia de ser recordado, em lembrança de tal Páscoa e libertação: “Esse dia será para vós uma data memorável, que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor. Festejá-lo-eis de geração em geração, como instituição perpétua”. Com Cristo, verdadeiro cordeiro pascal, o que se lembrava do passado tornou-se realidade presente e futura, Páscoa garantida e disponível na celebração eucarística para cada situação existencial de agora. Neste sentido se diz que a Igreja vive da Eucaristia. Sempre com a lição evangélica que concentra a atitude de Cristo, entregue e humilde, em qualquer momento da sua vida, entre nós e para nós. Creio poder inclui aqui uma breve resposta à pergunta tantas vezes ouvida, com duas modelações diferentes: – O que faz a Igreja, ou porque é que a Igreja não publicita mais o que faz? Estranha pergunta, num país onde a grande maioria das iniciativas sociais não públicas é protagonizada por instituições católicas – e isto sem falar da acção dos católicos que trabalham nas instituições públicas. Mas, por outro lado, não se estranhe nunca que a Igreja seja discreta no que faz, precisamente nesta área. Quem se inclina para “lavar os pés” de quem sofre, não se empertiga para dar nas vistas. Os cristãos, o que teriam a ganhar, já ganharam, na caridade de Cristo, que nunca acabará e “paga a cem por um”. Por isso mesmo estão absolutamente livres e disponíveis para continuar. E a Eucaristia que celebram é, sobretudo e sempre, acção de graças! Aqui estamos pois, amados irmãos e irmãs, na Missa Vespertina da Ceia do Senhor. Está Ele, antes de mais, no eco da Palavra proclamada, na graça do sacramento celebrado, no ministério sacerdotal que O manifesta, qual Esposo da Igreja e Pastor do seu povo. Está Ele, no corpo eclesial de todos os baptizados presentes. Estará também – e já de seguida – no gesto do lava-pés, que ilustra a caridade com que nos continua a amar e a servir. E estará Ele no mundo e para o mundo, no testemunho de quantos reconhecidamente O celebram, na caridade de quantos verdadeiramente O comungam! Sé do Porto, 20 de Março de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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