Prossigamos pois e confiemos sempre!
“Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, ao abrir o livro, encontrou a passagem em que estava escrito: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres…”
Caríssimos irmãos, que tão vivamente preencheis as naves desta Sé, na Missa Crismal de 2012: Tudo é importante e decisivo agora e aqui. É-o, antes de mais, a Palavra escutada e nunca por demais recebida e apreendida.
Saúdo-vos a todos e a cada um, com especial referência aos presbíteros, que nesta Missa renovarão as promessas sacerdotais; também aos caríssimos diáconos, aos membros dos institutos religiosos e seculares, aos seminaristas e ao laicado. A todos, em nome pessoal e dos Senhores Bispos, desejo desde já a vivência plena e a consequência perfeita do Tríduo Sagrado que logo começa em toda a Igreja.
Naquele dia, como ouvimos, o Senhor Jesus leu em plena sinagoga de Nazaré um antigo texto, há muito por cumprir. Da sua boca, as palavras de Isaías saíram então com a força única que só Ele lhes podia dar: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres…”.
Caríssimos irmãos sacerdotes, a quem hoje particularmente me dirijo: Pelo sacramento da Ordem, no grau sacerdotal que recebestes, estais habilitados e mandatados para prolongar no tempo o realismo daquele sábado em Nazaré; para que também se cumpra “hoje mesmo” o que em Jesus começou por fim.
– E com que urgência o deve ser, de facto! Pobres de tantas pobrezas, antigas e novas pobrezas, rodeiam-nos, interpelam-nos, instam-nos constantemente, direta ou indiretamente o fazem… A presente “crise” atinge dum modo ou doutro a todos; e, quanto à resposta, assim deverá ser, pois a todos incumbe, especialmente aos mais capazes de a dar.
Da nossa parte, mesmo quando não temos grandes meios materiais para o fazer. Temos o que Pedro tinha, quando respondeu ao mendigo da Porta Formosa: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou: Em nome de Jesus Cristo nazareno, levanta-te e anda”. Acrescentando os Atos dos Apóstolos: “E, segurando-o pela mão direita, ergueu-o” (Ac 3, 6-7). Tudo essencial, tudo importante, neste trecho e hoje.
Disto mesmo não nos podemos dispensar, pois antes de mais o recebemos. Recebemos Cristo como resposta de Deus ao mundo; e, quanto mais O recebermos como força, substância e verdade de cada um dos nossos dias cristãos e sacerdotais, tanto mais O transmitiremos aos outros, quer como resposta a necessidades urgentes, quer como significado das circunstâncias todas, ainda as mais perplexas.
Mas deixai-me repetir, caríssimos irmãos sacerdotes: Tal acontecerá assim, e tanto mais assim, quanto mais suceder connosco mesmos, mendigos perpétuos da misericórdia divina e buscadores constantes do rosto de Cristo, que em nós se reflita para o bem de todos.
Sabemos de facto que assim é e será, como sempre o foi. Onde fixarmos o coração e o olhar interior, daí mesmo iremos ao encontro dos outros. Da montanha de Deus trouxe Moisés tanta luz, que nem o lenço lhe ofuscava o rosto; do monte Tabor desceram os discípulos, mal calando quanto tinham visto e ouvido. Eternamente fixado no Pai, o rosto de Cristo irradiava Deus: “Quem me vê, vê o Pai”, disse Ele a Filipe (Jo 14, 9).
Quem diz “Pai” refere também a origem, a fonte e a raiz; e a presente “crise”, nascida de tanto despiste de olhares e desejos, só pode resolver-se voltando à origem, à fonte e à raiz – e bem “radicalmente”.
Começando em nós, caríssimos sacerdotes. Da citada passagem dos Atos dos Apóstolos, com Pedro a oferecer o que realmente tinha – o nome seguro dum Jesus bem vivo! -, às mil e uma ações caritativas que hoje nos impendem, repetem-se as incansáveis demonstrações de que, a partir da nossa prioritária ligação a Cristo, é possível responder a muitas pobrezas, mesmo quando não haja “ouro nem prata”. No nosso ministério sacerdotal e pastoral, é esse o princípio, o tesouro e o sacramento – carisma tornado ministério, para que os gestos de Cristo se reproduzam agora.
Tudo, caríssimos sacerdotes, tudo o que pudermos fazer para aviventar entre nós a graça incontida por que o mundo espera; tudo o que pudermos incrementar de encontros sacerdotais de oração e vida; tudo o que nos ajudar a manter o coração em Cristo, na labareda viva duma vocação constante: tudo isto é importante e prioritário, para podermos responder às dificuldades acrescidas de quantos nos procuram.
– Como se tornam evidentes e incisivas nestes tempos as palavras de Cristo, há tanto recolhidas! Estas mesmas, de primeiríssima aplicação sacerdotal e pastoral: “Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois sem mim nada podeis fazer”. Para prosseguir, positivamente: “Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e assim vos acontecerá. Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como meus discípulos” (Jo 15, 5 ss).
Caríssimos irmãos: nas atuais circunstâncias – como sempre, aliás -, só não responderemos ao que não permitirmos que Cristo responda através de nós. Por isso mesmo, a prioridade sacerdotal e pastoral das nossas vidas está na relação viva com Cristo vivo, que nos proporcionará sempre o que recebe do Pai, na força do Espírito. Só por nós, mesmo com a alegada “boa vontade”, conseguiríamos porventura alguma coisa que adiasse, mas nada que definitivamente resolvesse. Com Cristo, conseguiremos tudo, do “tudo” de Deus, que a nós próprios surpreenderá também. Como esclareceu São Paulo: “Tal confiança, porém, nós a temos diante de Deus, por meio de Cristo. Não é que sejamos capazes de conceber alguma coisa como de nós mesmos: é de Deus que provém a nossa capacidade. É Ele que nos torna aptos para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito” (2 Cor 3, 4-6).
Confiemos pois, especialmente nós, os sacerdotes, que nem a promessa nem os tempos que vivemos são para menos. Sobretudo, que não seja por falta de convicção nossa que diminua a esperança das comunidades ou dos que nos procuram. E repitamos a certeza de Cristo, nossa também pelo sacramento: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres”.
Repetir esta certeza vale infinitamente mais do que demorar em velhas dúvidas ou hesitações escusadas. E nem queiramos saber imediatamente como se resolverão as coisas; demos oportunidade a Deus para as resolver em nós e através de nós, do modo que Ele próprio escolher. Não há outra atitude cristã, nem há outra qualificação pastoral.
Na programação específica do corrente ano da Diocese, incidimos particularmente na problemática da família e da juventude. “Problemática”, disse, uma vez que realidades que podiam ser normais e correntes enfrentam agora desafios de monta. As famílias deparam, ou podem vir a deparar, com obstáculos grandes e de vário tipo: alguns são materiais e sociais, referentes ao que lhes devia ser proporcionado e de facto não é, como indubitavelmente merecia, para o bem comum de todos; outros são de ordem moral e cultural, por deficiente preparação humana e relacional, que tantas vezes impede os futuros ou atuais cônjuges de entenderem o que deveriam ser enquanto tais; também de ordem institucional, por falta de contemplação pública e legal da realidade familiar, como base e escola da sociabilidade humana – pela complementaridade e conjugação homem – mulher, pela vinculação afetiva, solidária e intergeracional dos seus membros, pela vida naturalmente concebida e processada, num ventre realmente materno… Em muito se denota a redução individualista da sensibilidade corrente, em que o ético e o moral pouco ultrapassam o que a cada um pareça ou apeteça, bastando que haja meios técnicos para o obter e não devendo a lei senão corresponder-lhe…
No lema diocesano que adotámos, a propósito da família e da juventude, enunciamos “viver em comunhão, formar para a comunhão”. E disso mesmo se trata, porque não se refere a junções eventuais de indivíduos, mas à conjugação fundamental de pessoas, seres em relação que assim mesmo se definem e realizam.
– Pois bem, caríssimos irmãos e irmãs – e agora nós todos, clérigos, consagrados ou leigos -, que prioridade damos a tal verdade, para que o seja concretamente nas vidas vividas e convividas? Sejam as nossas comunidades eclesiais centros ativos e assim mesmo exemplares de coexistência solidária, considerando bem o envolvimento familiar de cada um dos seus membros; atenda-se sempre mais e melhor ao crescimento global – “em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52) – de cada criança, adolescente ou jovem -, formando e apoiando os pais, os educadores e os catequistas, para que tal possa realmente acontecer. E nisto mesmo imitando a Jesus Cristo, nosso primeiro educador, que com tanta autenticidade e persistência formou os seus discípulos – esses mesmos que depois enviou para constituírem a imensa família dos filhos de Deus.
Caríssimos irmãos no sacerdócio, no diaconado, ou no comum batismo que faz de nós a Igreja de Cristo, para Deus e para o mundo: Não é esta a altura de ir mais longe em considerações, numa celebração aliás repleta de momentos significativos, como os que se seguem, com a renovação das promessas sacerdotais e a bênção dos santos óleos. Referi-me especialmente aos sacerdotes, como noutras ocasiões o tenho feito aos diáconos ou ao laicado militante. A todos dirijo uma saudação amiga e fraterna, como também aos consagrados, que tão carismaticamente integram a nossa Igreja local. A todos agradeço e por todos dou graças.
Prossigamos então. E consideremo-nos a partir de Deus e da omnipotência do seu amor, que tudo fará através de quem realmente acolha e generosamente veicule o Espírito recriador de todas as coisas em Cristo. – Prossigamos pois e confiemos sempre!
Sé do Porto, 5 de abril de 2012
D. Manuel Clemente, bispo do Porto