Homilia do bispo do Funchal na solenidade de São Tiago menor

Comunhão, na justiça e na sabedoria

São conhecidas as circunstâncias em que, em 11 de Junho de 1521 (há 499 anos) – para o ano temos de pensar em celebrações mais vistosas – a cidade do Funchal se colocou nas mãos do Apóstolo S. Tiago Menor, e como surgiu a incumbência, “para sempre em cada um dos anos do mundo” de, no dia 1 de Maio, o mesmo voto ser renovado pelos representantes da cidade.

E assim sucedeu também em 1538, quando o Guarda-Mor da Saúde, vendo inúteis os seus esforços no meio de uma epidemia que grassava no Funchal, disse no meio da Ermida de S. Tiago, dirigindo-se ao Padroeiro em alta voz: “Senhor, até aqui guardei esta cidade como pude; não posso mais, aqui tendes a vossa vara, sede vós o Guarda da Saúde”. E entregou-lhe a vara, símbolo da sua responsabilidade municipal.

O facto é que os relatos da época são unânimes em afirmar que, a partir desse momento, todos os feridos melhoraram e a peste desapareceu da cidade[1]. E são, de igual modo, unânimes em dizer que, desde esse dia, “se não voltaram a registar no Funchal casos graves de peste”[2].

Hoje, as circunstâncias da emergência sanitária que vivemos impossibilitam-nos de realizar a habitual procissão em honra do nosso padroeiro. Mas, nem por isso, queremos deixar de cumprir a entrega da defesa da nossa cidade nas mãos daquele que, há quase 500 anos, sempre nos tem protegido.

 

  1. O Apóstolo S. Tiago Menor aparece-nos nas narrações que sobre ele nos chegaram — e encontramos várias referências à sua pessoa nos escritos do Novo Testamento e noutros escritos extra-bíblicos, de autoria bem próxima do ano da sua morte — aparece-nos, dizia, mostrando-nos uma personalidade fascinante.

Referido nos evangelhos e naqueles relatos não bíblicos como “Irmão do Senhor” (expressão que, conhecendo a cultura judaica do tempo, sabemos significar referir alguém “da família próxima” — neste caso, de Jesus), ou então como “Tiago, filho de Alfeu” (como escutávamos no evangelho)[3], ou ainda “Tiago o Menor”, filho de uma Maria que estava junto à cruz de Jesus[4], tudo indica que S. Tiago fosse, como o Senhor, galileu, natural de Nazaré.

Como os demais Apóstolos, S. Tiago é referido integrando as listas dos Doze, quer dizer, como fazendo parte daquele grupo mais próximo, a quem Jesus chamou “para ficar com Ele e enviá-los a pregar” (Mc 3,14). Esteve, portanto, presente na Última Ceia, passou pelo drama da cruz, pelo abandono desorientado do Mestre, pela alegria do encontro com o Ressuscitado, e por aquele momento único do Pentecostes.

Depois da Páscoa, encontramo-lo em Jerusalém, à frente da comunidade dos discípulos, desempenhando um papel essencial na controvérsia acerca da circuncisão. Na Carta aos Gálatas, S. Paulo nota a esse propósito: “Tiago, Pedro e João, os notáveis tidos como colunas, estenderam-nos as mãos, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão” (Gal 2,9).

Com esta referência ao homem fazedor de comunhão, coincide a descrição de Hegésipo (historiador cristão do início do séc. II), que nos diz: “Entrava sozinho no Templo [de Jerusalém] e ficava de joelhos a suplicar o perdão para o povo […]. Pela sua extrema justiça foi chamado ‘o Justo’ e ‘Oblias’, o que traduzido significa fortaleza do povo e justiça”[5].

Foi a este homem, que liderava a Igreja de Jerusalém após a partida de Pedro, que os chefes judaicos quiseram persuadir a subir ao Pináculo do Templo para, perante todo o povo, renegar a Jesus. Como Tiago reafirmasse a fé no Senhor, lançaram-no dali abaixo e lapidaram-no. Ainda de joelhos,  enquanto sofria os golpes das pedras, Tiago rezava: “Peço-te Senhor, Deus Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. E foi então que um dos presentes, “pegou num bastão com o qual batia as roupas, e atingiu o Justo na cabeça, que deste modo sofreu o martírio. Foi sepultado num lugar próximo do Templo, onde ainda hoje — diz Hegésipo — é possível ver a sua lápide”[6].

Estávamos no VII ano do Imperador romano Nero, ou seja, entre os anos 61 e 62 da nossa era, sensivelmente 30 anos depois da Páscoa do Senhor.

E Eusébio de Cesareia acrescenta, como que resumindo: “Tiago era um homem que todos admiravam e conheciam pela sua justiça, de tal modo que os mais sensatos entre os judeus tomaram a sua morte como causa do cerco de Jerusalém, que teve lugar logo após o seu martírio”[7].

 

A IIª leitura de hoje foi retirada precisamente da Carta de S. Tiago — escrito que integra a Bíblia, palavra de Deus, e que, logo no início, se reclama da autoria humana do Apóstolo.

Em todo o texto, mas de um modo particular no extracto que escutámos, S. Tiago mostra a necessidade de, na fé, os cristãos ultrapassarem uma mera atitude intelectual (aquilo a que o Apóstolo chama a fé “morta”: “A fé sem as obras está completamente morta”), em favor de uma “fé viva” — aquela que se mostra nas obras do quotidiano: “Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé” (Tg 2,18).

Homem justo, cheio de sabedoria, fazedor de comunhão; homem de oração e de fé viva: eis, em traços gerais, a personalidade do Santo nosso padroeiro.

Ao mesmo tempo que hoje nos voltamos a confiar à sua intercessão,   fazendo nosso o tradicional gesto de entrega do Funchal e seus habitantes nas mãos de S. Tiago, confiando-lhe a proteção de quantos habitam a nossa e sua cidade, peçamos-lhe que nos ajude a progredir no caminho da fé — da fé viva, quer dizer: da fé que se expressa na vida, nas obras do quotidiano.

E peçamos-lhe ainda a graça de, no meio de tantas discórdias próprias da “cidade dos homens”, construirmos comunhão entre todos, na justiça e na sabedoria.

Sé do Funchal, 1 de maio de 2020

D. Nuno Brás

 

NOTAS

[1] M. GAMA, Dicionário das festas…, 398.

[2] R. CARITA, História do Funchal, 62

[3] Mt 10.

[4] Mc 15,40.

[5] Eusébio, Hist. Eccl. II,23.

[6] Ib.

[7] Ib.

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